segunda-feira, março 31, 2008

Sou um democrata, sou um cabrão.

Declaração de princípios de um intelectual espanhol

Não condeno o rei Fahad, agraciado pelo rei de Espanha, que corta cabeças, poda mãos e arranca olhos, que humilha mulheres e amordaça os opositores, que se assenhora sem jornais, sem parlamento nem partidos políticos, que viola filipinas e tortura indianos e egípcios, que gasta a terça parte do orçamento da Arábia Saudita com os 15 000 membros da sua família e financia os movimentos mais reaccionários e violentos do planeta.

Não condeno o general Dustum, aliado dos EUA no Afeganistão, que afogou num contentor mil prisioneiros talibãs aos quais tinha prometido a liberdade e que morreram chupando as paredes de ferro da sua prisão.
Não condeno a Turquia, membro da NATO e candidato à UE, que na década de noventa varreu da face da terra 3 200 aldeias curdas, deixou morrer à fome 87 presos políticos e aprisiona quem se atrever a transcrever para curdo o nome das suas cidades.
Não condeno o sinistro Kissinger, o mais ambicioso assassino depois de Hitler, responsável por milhões de mortes na Indochina, em Timor, no Chile e em todos aqueles países cujo nome saiu alguma vez dos seus lábios.
Não condeno Sharon, homem de paz, que dinamita casas, deporta civis, arranca oliveiras, rouba água, dá tiros a crianças, pulveriza mulheres, tortura reféns, queima arquivos, faz voar ambulâncias, arrasa campos de refugiados e que galanteia com a ideia de “amputar o cancro” de três milhões de palestinianos para reforçar a pureza do seu estado “judeu”.
Não condeno o rei Gienendra do Nepal, formado nos EUA, que desde o passado mês de Janeiro executou sem julgamento, 1 500 comunistas.
Não condeno a Jordânia nem o Egipto, que espancam e prendem os que se manifestam contra a ocupação israelita da Palestina.
Não condeno o Patriot Act, nem o programa TIPS, nem o “desaparecimento” de detidos à guarda do FBI, nem a violação da Convenção de Genebra em Guantánamo, nem os tribunais militares nem a “licença para matar” outorgada à CIA, nem o registo policial de todos os turistas que entram nos EUA procedentes de países muçulmanos.
Não condeno o golpe de Estado na Venezuela nem o governo espanhol que o apoiou, nem os jornais que, aqui e ali, financiaram, legitimaram e aplaudiram a dissolução de todas as instituições e a perseguição armada dos partidários da Constituição.
Não condeno a empresa norte-americana Union Carbide, que a 2 de Dezembro de 1984 assassinou trinta mil pessoas na cidade indiana de Bophal.
Não condeno a empresa petrolífera norte-americana Exxon-Mobil, acusada de sequestrar, violar, torturar e assassinar dezenas de pessoas que viviam num edifício propriedade da empresa, na província de Aceh (Indonésia).
Não condeno a empresa Vivendi, que deixou sem água todos os bairros pobres de La Paz, nem a Monsanto, que deixa sem sementes os camponeses da Índia e do Canadá, nem a Enron, que depois de deixar sem luz meia dezena de países, deixou também 20 000 pessoas sem poupanças.
Não condeno as empresas espanholas (BBV, BSCH, Endesa, Telefónica, Repsol) que esvaziaram os cofres da Argentina, obrigando assim os argentinos a vender o seu cabelo a fabricantes de perucas e a disputarem uma vaca morta para poderem comer.
Não condeno a Coca-Cola, que penetrou na Europa à sombra dos tanques nazis e que despede, ameaça e assassina, hoje, sindicalistas na Guatemala e Colômbia.
Não condeno as grandes corporações farmacêuticas, que acordaram matar vinte milhões de africanos doentes com sida.

Não condeno a ALCA, que viola e despedaça as trabalhadoras das fábricas de Ciudad de Juárez e que faz nascer crianças sem cérebro na fronteira do México com os EUA.
Não condeno o FMI nem a OMC, que fomentam a fome, a peste, a guerra, a corrupção e toda a cavalaria do Apocalipse.
Não condeno a UE nem o governo dos EUA, que colocam os acordos comerciais acima das medidas para a protecção do meio ambiente e que decidiram, sem plebiscito nem eleições, a extinção de uma quarta parte dos mamíferos da Terra.
Não condeno as torturas sofridas por Unai Romano, jovem basco que, faz agora um ano, foi convertido num globo tumefacto numa esquadra espanhola, ficando a tal ponto desfigurado que os seus pais só o reconheceram porque na cara ainda tinha o mesmo sinal.
Não condeno o governo espanhol, que no passado mês de Abril estabeleceu o estado de excepção sem consultar o parlamento e suspendeu durante três dias os direitos básicos reconhecidos pela nossa Constituição (a liberdade de movimentos e de expressão), com a agravante da segregação racista, ao impedir que bascos viajassem a Barcelona, por ocasião da última cimeira da UE.
Não condeno a Lei de Estrangeiros, que expulsa a homens doentes e esfomeados, os encerra em campos de detenção ou os priva do direito universal de assistência sanitária e educação.
Não condeno o “decretaço” que precariza ainda mais o emprego, elimina os subsídios e deixa os trabalhadores à mercê da carda dos empresários.
Não condeno Deus, naturalmente, quando chove, relampeja ou toa, nem quando a terra treme, nem quando o vulcão vomita o seu fogo sobre os homens.
Sou um democrata: não me importa um caralho a morte de crianças que não são espanholas; não me importa um caralho a perseguição, silenciamento e assassinato de jornalistas e advogados que não pensam como eu; não me importa um caralho a escravidão de dois mil milhões de pessoas que nunca poderão comprar os meus livros; não me importa um caralho o corte de liberdade enquanto segure eu livremente as tesouras; não me importa um caralho até o desaparecimento de um planeta no qual já me diverti bastante. Sou um democrata: condeno a ETA, os que a apoiam e os que estão em silêncio, mesmo que sejam mudos de nascença; e exijo, portanto, que se privem dos seus direitos de cidadania, 150 000 bascos, que sejam impedidos de votar, de se manifestarem, de reunirem, que se fechem as suas tabernas, as suas editoras, os seus jornais, inclusive as suas creches; que sejam logo metidos na prisão, eles e todos os seus compinchas (desde o jovem militante anti-globalização até ao escritor ressentido) e, se tudo isto não for suficiente para proteger a democracia, que se peça a intervenção humanitária das nossas gloriosas Forças Armadas, já experimentadas na heróica reconquista da ilha Perejil. Sou um democrata: condenei a ETA. Sou um democrata: só condenei a ETA e formo parte, portanto, de todos os outros grupos armados, das mais sangrentas, das mais cruéis, das mais destrutivas organizações terroristas do planeta.
Sou um democrata. Sou um cabrão.

Texto de Santiago Alba Rico, escritor e filósofo espanhol.
http://investigandoonovoimperialismo.blogs.sapo.pt/32912.html

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