domingo, março 16, 2008

Um texto de Maria João Teles

*Tristeza*

*(...)
Por isso, fiquei muito surpreendida quando, esta manhã, acordei com uma
vontade intensa de procurar o endereço do meu blog ( até me esqueço dele!) e
desabafar.
Desabafar porque a tristeza que tem tomado conta de mim, nos últimos tempos,
já não se contenta em ser verbalizada com alguns colegas de trabalho
(poucos!) que, infelizmente, vão partilhando estes sentimentos de desalento
e angústia.
Desabafar porque estou a sentir-me inútil, enxovalhada, descartável e uma
peça partida de um jogo de xadrez qualquer, jogado por aprendizes dessa arte
ancestral e que requer tanto inteligência como habilidade. Ou será que se
tratam antes de foliões que, num pub rasca qualquer, vão atirando dardos a
um alvo para passarem o tempo?
Desabafar porque, quando me perguntam qual é a minha profissão, eu já não
sei se devo responder orgulhosamente "Sou professora!" ou, em vez disso,
"Faço parte de uma companhia circense e, conforme o dia, vou sendo a
mulher-palhaço, contorcionista, malabarista, domadora de feras...Olhem!
Acumulo funções!"
Aproximam-se a passos largos os meus quarenta e três anos. Desde os seis que
estou ligada ao ensino. Nunca cheguei a sair da escola. Fui aluna e depois
professora. Comecei a leccionar ainda como estudante universitária e esta
profissão faz parte de mim como a minha pele. No entanto, hoje sinto-me como
uma cobra: com uma urgente necessidade de a mudar e arranjar uma nova.
Pela primeira vez, questiono a sabedoria da escolha que fiz relativamente à
minha profissão. Escolha consciente, diga-se em abono da verdade...a culpa
foi toda minha, ninguém me obrigou e pessoas avisadas bem me alertaram.
Mas, também existiam outras que pensavam de forma diferente.
Relembro nomes de antigos professores... daqueles que, por si só, já eram
uma aula e não precisavam de recorrer a metodologias e estratégias
inovadoras (já agora...se alguém souber de alguma que ainda não tenha sido
tentada, não seja egoísta e partilhe-a comigo...eu já não consigo inventar
mais!).
Recordo como esses professores me incentivaram a seguir esta carreira-"Foste
feita para ensinar, miúda! Vai em frente!"- e como um deles, quando o
encontrei já bem velhote, comentou com um sorriso "Eu bem sabia! Sempre lá
esteve o bichinho!"
Que diriam, todos os meus professores que já partiram, sobre tanto decreto
regulamentar que, em vagas sucessivas, vai transformando a nossa Escola e os
seus professores num circo de muito má qualidade, cheio de artistas
saturados, humilhados, mal pagos e fartos de trabalharem num trapézio sem
rede?
Sou regulada por um Ministério que espera que eu seja animadora cultural,
psicóloga, socióloga, burocrata, legisladora, boa samaritana, mãe
substituta...
Espera-se que tenha doses industriais de paciência e boa vontade, que me
permitam aguentar a falta de educação de meninos mal formados, de meninos
dos papás, de meninos que estão na escola apenas porque não têm ainda idade
para trabalhar (porque bom corpo isso têm!), de meninos que estão na escola
a enganar os pais, que até se deixam enganar por conveniência, de meninos
que frequentam os Cursos de Educação e Formação e os Profissionais porque
acham que é uma forma de fazer turismo com os livros debaixo do braço
(desculpem, enganei-me...vou rectificar- "sem os livros debaixo do braço"),
de meninos que vêm para a escola para não deixarem que outros meninos, estes
últimos sim, com aspirações e provas dadas, possam seguir em frente até
serem os homens que os primeiros nem sequer conseguem projectar
mentalmente...
Além disso, tenho reuniões: de departamento, de conselho de turma, de equipa
pedagógica, de Assembleia de Escola (pois foi...também caí na patetice de
aceitar presidir a este órgão...mais uma vez a culpa foi minha, pois pessoas
avisadas bem me alertaram!), de grupos ad-hoc, de reuniões para decidir
quando faremos mais reuniões...
Tenho legislação para ler. Labirintos de artigos em que o próprio Minotauro
marraria vez após vez num ataque de fúria! Um dédalo legislativo, no qual
nem Teseu conseguiria encontrar a ponta do fio.
Há papelada para preencher. Pautas dos profissionais, grelhas de observação
para cada um dos alunos, registos das actividades de remediação...
Não esquecer a reposição de aulas. As dos alunos que faltam por doença, por
namoro, por jogo dos matraquilhos...desde que a justificação do Encarregado
de Educação seja aceite, lá tenho eu de arranjar actividades de remediação
para quem não quer ser remediado!
Proibi a mim própria adoecer, visto que também tenho de repor essas aulas,
mais as das greves, as das visitas de estudo dos alunos nas quais a minha
disciplina não participa ( mesmo estando eu a cumprir o meu horário na
escola...não faz mal, depois ofereço um bloco ou dois de noventa minutos
gratuitamente!), as das minhas ausências em serviço oficial...
A questão é saber quando e como vou repor essas aulas, dado que o meu
horário e o dos alunos é incompatível durante os períodos lectivos! Claro
que isso não faz mal: dou dias das minhas férias! Afinal, não consta por aí
que os professores estão sempre a descansar?
Tenho aulas para preparar. Testes e trabalhos para corrigir.
Devo investir na minha formação. Quando? Como? Onde?
E isto é a ponta de um rolo de lã que, bem aproveitadinho, dava uma camisola
e pêras! Ou então uma camisa de onze varas!
Fazendo o ponto da situação, sobra-me pouco tempo para aquilo que gosto
realmente: ensinar.
Pouco tempo para aquilo que me dá prazer: fazer circular o conhecimento.
Pouco tempo para conseguir que esse conhecimento ocupe o espaço que, na
maioria dos casos, é ocupado por uma crassa ignorância.
Agora, dizem-me que vou ser avaliada ( tudo bem, não tenho nada contra o ser
avaliada...talvez assim, com as novas emoções, eu descongele, pois há tanto
tempo que estou no frigorífico laboral!), mas parece-me que vou voltar a uma
espécie de estágio ainda pior do que aquele que enfrentei há dezassete anos
atrás.
Tenho receio que as escolas se transformem num circo ainda maior.
Um circo de palhaços ricos e palhaços pobres.
Um circo de compadrios e vingançazinhas pessoais.
Um circo em que uma meia dúzia de artistas vai andar vestido de lantejoulas
e seguido de cãezinhos amestrados, uma outra meia dúzia vai tornar-se perita
na arte do contorcionismo, para evitar obstáculos, e a grande maioria da
companhia vai ter de engolir fogo para o resto da vida profissional.
Ah! Não posso esquecer que, se tudo correr de feição a este Ministério da
Deseducação, até o senhor Zé da padaria vai poder presidir a um órgão de
gestão das escolas.
Esta não é a profissão para a qual eu me preparei anos a fio.
Por isso, estou triste.
Estou triste.
E não escrevi sobre tudo a que tinha direito.
E esta tristeza, para que eu a consiga despejar convenientemente, tem de ser
escrita, gravada com letras...não me chega falar dela.
Até porque, ultimamente, também já não me apetece falar.*

(recebido por mail)

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