terça-feira, abril 01, 2008

A tripla culpa dos grandes bancos privados

Desde Agosto de 2007 que os bancos norte-americanos e europeus são o tema quente da actualidade devido à crise extremamente severa que estão a atravessar e que eles fazem atravessar ao sistema económico neoliberal no seu todo. O montante actual da desvalorização de activos por eles operada ultrapassa os 200 mil milhões de dólares. Diversos estudos sobre bancos e economistas experientes consideram que a factura deverá ultrapassar um milhão de milhões de dólares [1] .

Como é que os bancos atingiram um montante de dívidas tão irracional? Ávidas pelo lucro, as entidades que concedem créditos hipotecários emprestaram a um sector da população já fortemente endividado. As condições desses empréstimos de alto rendimento (para a entidade que empresta) são uma verdadeira cilada: a taxa começa por ser fixa e razoável durante os dois primeiros anos, depois aumenta exponencialmente. As entidades concessoras de créditos diziam sempre às pessoas que solicitavam empréstimos que o bem que estes estavam a comprar rapidamente adquiriria valor por causa do aumento dos preços no sector imobiliário. Mas o busílis da questão é que a bolha do sector imobiliário acabou por rebentar em 2007 e os preços começaram a baixar inexoravelmente. Como o número de faltas de pagamento cresceu consideravelmente, as entidades concessoras de créditos hipotecários tiveram dificuldade em pagar as suas dívidas. Os grandes bancos, para se protegerem, recusaram conceder-lhes novos empréstimos e exigiram taxas muito mais elevadas. Mas a espiral não parou por aí pois os bancos tinham comprado obrigações hipotecárias em quantidades enormes, claramente fora do balanço, criando sociedades específicas chamadas "Structured Investment Vehicles (SIV)", que financiavam a compra das obrigações hipotecárias de alto rendimento transformadas em títulos ("CDO, Collateralized Debt Obligations").

A partir de Agosto de 2007, os investidores deixaram de comprar os "commercial papers" emitidos sem garantia pelos SIV, cuja saúde e credibilidade se tinham deteriorado fortemente. Consequentemente, os SIV ficaram sem liquidez para comprar os créditos hipotecários titularizados e a crise amplificou-se. Os grandes bancos que haviam criado esses SIV tiveram que assumir os seus empreendimentos para evitar que estes falissem. Viram-se obrigados a contemplar as dívidas dos SIV nos seus orçamentos, o que até ao momento não acontecia, ou seja, as operações dos SIV não faziam parte da sua contabilidade, o que lhes permitia dissimular os riscos corridos.

Resultado: pânico a bordo! Nos Estados Unidos, 84 sociedades de créditos hipotecários faliram ou cessaram parcialmente a sua actividade entre 1 de Janeiro e 17 de Agosto de 2007, contra apenas 17 em todo o ano de 2006. Na Alemanha, o banco IKB e o Instituto Público SachsenLB foram salvos por um triz. Recentemente, a Inglaterra teve de nacionalizar o banco Northern Rock que entrou em falência. No passado dia 13 de Março, o fundo Carlyle Capital Corporation (CCC), conhecido pela sua proximidade ostensiva com o clã Bush, afundou-se: as suas dívidas ultrapassaram 32 vezes os seus próprios fundos. No dia seguinte, o prestigioso banco estado-unidense Bear Stearns (5º banco de negócios dos Estados Unidos) vendo-se com pouco dinheiro apelou à ajuda da Reserva Federal dos Estados Unidos (Fed) para obter um financiamento de urgência. O Bear Stearns foi comprado pelo banco JP Morgan Chase por um pedaço de pão.

Vários segmentos do mercado da dívida formam construções instáveis em vias de se afundar. Arrastam nos seu infortúnios os bancos poderosos, os "hedge funds", os fundos de investimento que lhes deram origem. As operações de salvamento das instituições financeiras privadas são realizadas graças à intervenção massiva dos poderes públicos. A privatização de benefícios e a socialização das perdas são mais uma vez convenientes.

Mas há uma questão que se impõe: por que razão os bancos, que hoje em dia não hesitam em apagar dívidas duvidosas de dezenas de milhares de milhões de dólares, recusaram sempre anular as dívidas dos países em vias de desenvolvimento? Com isso eles estão a demonstrar que é perfeitamente possível e francamente necessário. Lembremos que na origem das actuais dívidas reclamadas pelos bancos a esses países se encontram ditaduras criminosas, regimes corruptos, dirigentes fiéis às grandes potências e aos credores. Os grandes bancos emprestaram sem olhar a quem, a regimes pouco recomendáveis, como é o caso de Mobutu no Zaire, de Suharto na Indonésia, às ditaduras latino-americanas dos anos 1970-1980 sem esquecer o regime do apartheid na África do Sul. Como é que esses bancos podem continuar a impor o jugo da dívida sobre povos que sofreram com os regimes ditatoriais que esses mesmos bancos financiaram? No plano jurídico, numerosas dívidas odiosas figuram nos seus livros de registo e não têm de ser reembolsadas. Mas os bancos continuam a exigir os seus reembolsos.

Lembremos igualmente que a crise da dívida do chamado terceiro mundo foi provocada em 1982 pela subida brutal e unilateral das taxas de juros determinada pela Fed. Anteriormente, os bancos privados tinham emprestado desmesuradamente, num regime de taxa variável, a países já sobre-endividados, o que os tornava incapazes de fazer face a mais despesas. Actualmente a história repete-se, mas no Norte, desta vez, e de maneira específica: os agregados familiares sobre-endividados dos Estados Unidos tornaram-se incapazes de reembolsar os empréstimos hipotecários contraídos em regime de taxa variável porque a bolha do imobiliário rebentou.

Os cancelamentos de dívidas que os bancos têm realizado dão razão a todos os que, como o CADTM, reivindicam uma anulação da dívida dos países em desenvolvimento. Porquê? Porque a dívida a longo prazo dos poderes públicos do chamado terceiro mundo para com os bancos internacionais atingia os 181,9 mil milhões de dólares em 2006 [2] . Desde Agosto de 2007, esses bancos já cancelaram um montante bem superior, e ainda não terminaram…

Os grandes bancos privados foram triplamente culpados:
• eles amontoaram desastrosamente dívidas privadas que conduziram à catástrofe actual;
• eles emprestaram às ditaduras e obrigaram os governos democráticos que lhes sucederam a reembolsar até ao último cêntimo essa dívida odiosa;
• eles recusam-se a anular dívidas de países em vias de desenvolvimento, quando o seu reembolso implica a deterioração das condições de vida das populações.
Por todas estas razões, deve exigir-se que os bancos prestem contas das suas acções ao longo das décadas passadas. Os governos dos países do Sul devem realizar auditorias da sua dívida, como faz o Equador actualmente, e repudiar todas as dívidas odiosas e ilegítimas. Os banqueiros mostram que isso é perfeitamente possível. Tratar-se-á do primeiro passo para devolver à finança a função que lhe assiste, a de instrumento ao serviço do ser humano. De todos os seres humanos.
Notas
[1] O estudo do Goldman Sachs estimava no dia 7 de Março de 2008 perdas no valor de 1156 mil milhões de dólares, George Magnus da UBS avançava em Fevereiro um número superior a 1000 mil milhões, Nouriel Roubini da Universidade de Nova Iorque fala na hipótese de uma perda de pelo menos 1000 mil milhões de dólares (ver http://www.rgemonitor.com/blog/roubini ).
[2] Banco Mundial, Global Development Finance, 2007.
Damien Millet e Éric Toussaint
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/

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