sábado, maio 24, 2008

A dança macabra ritual da democracia estilo EUA

O antigo presidente da Tanzânia, Julius Nyerere, certa vez perguntou: «Por que não temos todos o direito de votar nas eleições dos EUA? Certamente toda a gente com um receptor de TV ganhou esse direito simplesmente por aguentar o bombardeamento impiedoso a cada quatro anos». Tendo coberto quatro campanhas para eleições presidenciais, dos Kennedy a Nixon, de Carter a Reagan, com os seus zeppelins de platitudes, seguidores robotizados e os rictos das esposas, posso simpatizar com ele. Mas que diferença faria o voto? Dos candidatos presidenciais que entrevistei, apenas George C. Wallace, governador do Alabama, falou a verdade: «Não há uma diferença que valha um cêntimo entre os Democratas e os Republicanos», disse ele. E ele foi alvejado [1].

O que me impressionou, ao viver e trabalhar nos Estados Unidos, foi que as campanhas presidenciais eram uma paródia, divertidas e muitas vezes grotescas. Elas são uma dança macabra ritual de bandeiras, balões e asneiradas, destinadas a camuflar um sistema venal baseado no poder do dinheiro, na divisão humana e numa cultura de guerra permanente.

Viajar com Robert Kennedy em 1968 foi revelador para mim. Para as audiências com os pobres, Kennedy apresentava-se como um salvador. As palavras “mudança” e “esperança” eram utilizadas incansavelmente e cinicamente. Para audiências de brancos timoratos, ele utilizava códigos racistas, tais como “lei e ordem”. Com aqueles que se opunham à invasão do Vietname, ele atirava “pôr os rapazes americanos na linha de fogo”, mas nunca dizia quando os retiraria. Naquele ano (depois de Kennedy ter sido assassinado), Richard Nixon utilizou uma versão do mesmo discurso maleável para ganhar a presidência. Desde então, ele foi utilizado com êxito por Jimmy Carter, Ronald Reagan, Bill Clinton e os dois Bush. Carter prometeu uma política externa baseada nos “direitos humanos” – e praticou o exacto oposto. A “agenda da liberdade” de Reagan foi um banho de sangue na América Central. Clinton “prometeu solenemente” cuidados de saúde universais e destruiu a última rede de segurança da Depressão.

Nada mudou. Barack Obama é um lustroso Pai Tomás que bombardearia o Paquistão. Hillary Clinton, outra bombista, é anti-feminista. Uma das distinções de John McCain é que ele bombardeou pessoalmente um país. Todos eles acreditam que os EUA não estão sujeitos às regras do comportamento humano, porque é “uma cidade sobre uma colina”, pouco importando que a maior parte da humanidade os vejam como um brutamontes monumental que, desde 1945, derrubou 50 governos, muitos deles democracias, e bombardeou 30 países, destruindo milhões de vida.

Se questionar porque é que este holocausto não é uma “questão” na actual campanha, pode perguntar à BBC, a qual é responsável pela cobertura da campanha para grande parte do mundo, ou melhor ainda, a Justin Webb, o editor da BBC para a América do Norte. Numa série da Radio 4 no ano passado, Webb exibiu a espécie de servilismo que evoca o apaziguador Geoffrey Dawson da década de 1930, então editor do London Times. Condoleezza Rice não pode ser demasiado mentirosa para Webb. De acordo com Rice, os EUA estão «a apoiar as aspirações democráticas de todos os povos». Para Webb, que acredita que o patriotismo americano «cria um sentimento de felicidade e solidez», os crimes cometidos em nome deste patriotismo, tais como apoio à guerra e à injustiça no Médio Oriente durante os últimos 25 anos, e na América Latina, são irrelevantes. Na verdade, aqueles que resistem a tais épicos assaltos à democracia são culpados de “anti americanismo”, diz Webb, aparentemente inconsciente das origens totalitários desta expressão abusiva. Jornalistas na Berlim nazi condenavam os críticos do Reich como “anti-alemães”.

Além disso, a sua panaceia acerca dos “ideais” e “valores nucleares” que compõem o “conjunto de ideias acerca da conduta humana” santificado pela América nega-nos o verdadeiro sentido da destruição da democracia americana: o desmantelamento da Carta de Direitos, do habeas corpus e da separação de poderes. Eis Webb no rastro da campanha: «[Isto] não é acerca da política de massa. É uma celebração do relacionamento um a um entre um americano individual e o seu putativo comandante-em-chefe». Ele chama a isto «vertiginoso». E Webb sobre Bush: «Não esqueçamos que enquanto os candidatos vencem, perdem, vencem outra vez... há um mundo para ser dirigido e o presidente Bush ainda está a dirigi-lo». A ênfase no texto da BBC realmente faz link para o sítio web da Casa Branca.

Nenhuma desta baba é jornalismo. É anti-jornalismo, digno de um cortesão menor de uma grande potência. Webb não é excepcional. O seu patrão, Helen Boaden, director da BBC News, enviou esta resposta a um telespectador que tinha protestado pela preponderância da propaganda como base das notícias: «É simplesmente um facto que Bush tentou exportar democracia [para o Iraque] e que isto tem sido penoso».

E a fonte dela para este “facto”? Citações de Bush e Blair a dizer que é um facto.

[1] A tentativa de assassinato, em 1972, foi motivada por um desejo de fama (NT).

John Pilger
http://www.infoalternativa.org/autores/pilger/pilger084.htm

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