O passado dia 13 deixou-nos a confirmação de que esta Europa dos mercadores não agrada aos seus cidadãos, pelo menos àqueles a quem se pergunta por ela.
Desde então abriu-se um período interessante no qual os líderes europeus tratam de explicar, tornar digerível e procurar soluções para o varapau irlandês ao projecto elitista de construção europeia. É agora que, entre risos nervosos e gestos contrariados, aqueles acabam por verbalizar o que realmente pensam e o discurso soterrado até então sai à luz sem contenção nem mesura.
Revendo as declarações e reacções daqueles que governam a União Europeia e os seus Estados membros pode apreciar se como, em linhas gerais, os termos desse discurso se centram em torno de quatro grandes eixos.
AS RAZÕES MAIS SIMPLES SÃO AS QUE SE CALAM
Em primeiro lugar, não faltaram reflexões sisudas a respeito das razões da negativa dos irlandeses a ratificar o Tratado de Lisboa. Em muitos casos, são simplesmente fogos de artificio retóricos com os quais se tenta revestir com argumentos grandiloquentes os motivos dessa rejeição em relação à Europa que, no fundamental, são bem mais simples do que nos querem vender. De facto, precisamente na sua simpleza radica a razão de que nos queiram ocultar esses motivos e eles sejam substituídos por argumentos mais sofisticadas em cortes especificamente nacionais. Como se os irlandeses fossem uns animais raros que não se representam mais que a si mesmos e sejam em tudo diferentes do resto dos europeus supostamente entusiasmados com o Tratado de Lisboa.
Não há que arranhar muito para entender que esta Europa do capital é insensível, quando não contrária, aos interesses dos seus cidadãos; padece de déficit democrático que, no caso de outros países do mundo, seria motivo mais do que suficiente para invadi los em nome da restauração da democracia e da preservação dos direitos dos cidadãos; e avança, de forma incontível, e à custa de direitos laborais e sociais que tinham sido considerados avanços para a civilização, para a consolidação de um espaço de acumulação para o capital do qual só se podem sentir orgulhosas as empresas (que, na verdade, ainda que não votem sim, decidem; se não, qual o motivo de tanto lobby solto em Bruxelas?).
Essas são, no meu modo de ver, as verdadeiras razões ou, pelo menos, as que a maior parte dos europeus teriam em comum contra a Europa que se está a construir de costas para os cidadãos. Portanto, e na medida em que parte do voto irlandês contra o Tratado obedece também a esses motivos, ainda que se tente ocultar, gostaria de saber o que opinam a esse respeito e como pensam resolvê lo as autoridades europeias.
No entanto, muito temo que podemos estar seguros de que não ouviremos nenhum líder europeu sair à arena pública com esses argumentos para, a seguir, reconhecer os erros, fazer acto de constrição e tratar de emendá los. Pelo contrário, as invectivas dirigiram-se contra os irlandeses; nada de extrair conclusões gerais perigosas que pudessem pôr em risco a construção europeia. Centremo-nos no particular e esfumemos o geral, parece ser a directriz em torno da qual aqueles se têm entrincheirado.
O MUNDO ESTÁ CHEIO DE DESAGRADECIDOS
Em segundo lugar, também chega agora o momento das recriminações, de atirar à cara aos irlandeses, e de passagem a todos aqueles países que beneficiaram dos fundos europeus para financiar o seu desenvolvimento, a sua falta de gratidão. Como é possível que eles, que em 1973 tinham uma renda per capita que mal ultrapassava 60% da média comunitária e agora representa 140% da mesma, voltem as costas ao aprofundamento institucional da Europa? Esqueceram já que, se se encontram a nadar em prosperidade, é graças ao saldo neto de mais de 55 mil milhões de euros recebidos desde então?
A recriminação vem assim alimentar a argumentação daqueles que pensam que os fundos sociais europeus deveriam desaparecer porque nem sequer servem para comprar vontades. “Que pouco rendimento para tanto dinheiro!”, deve ruminar mais do que um em Bruxelas.
QUANDO O ERRO É A DEMOCRACIA
Em terceiro lugar, também foram produzidas declarações questionando até os próprios fundamentos da democracia. Neste caso, a via de argumentação foi dupla.
Por um lado, estão aqueles que pensam que uma coisa tão relevante como uma Constituição – que é, em definitivo, e como já escrevi em seu momento [1], aquilo que o Tratado de Lisboa é – não pode ser submetida ao livre arbítrio dos cidadãos que serão governados com ela. E isso porque estes andam sempre carentes de tempo – e menos terão uma vez aprovadas as 65 horas semanais! – e de capacidades para compreender as sofisticações jurídicas do texto em questão.
Neste sentido, o editorial do El País de 14 de Junho fazia se eco de dito posicionamento sem nenhum tipo de pudor: «Há outros argumentos para explicar a rejeição. Têm a ver com o absurdo de submeter a referendo questões tão complexas como as que albergam as quase 400 páginas de documento de Lisboa». Fica claro, não?
Isso sim, se os irlandeses tivessem aprovado a ratificação do Tratado, outro galo cantaria. Nesse caso, ninguém duvidaria agora de que sabiam o que estavam a votar, conheciam no, compreendiam e aprovavam. Com o que nos encontramos perante o fantástico caso de que as faculdades cognitivas dos cidadãos se fazem dependentes da avaliação do texto em questão e só são reconhecidas àqueles que o aprovam e estão conformes com o seu conteúdo. Todo aquele que o recuse, ainda que seja de forma argumentada, será classificado, no mínimo, de néscio.
O corolário final é evidente: a Irlanda está cheia de néscios e no resto da Europa somos uns iluminados que, conscientes da nossa sabedoria, delegamos a nossa capacidade de decidir nos nossos representantes políticos para que eles o ratifiquem em nosso nome. Afinal de contas, eles sabem bem o que nos convém a todos; assim, para que nos havemos de incomodar no dificultoso acto de votar?
E, por outro lado, estão aqueles que argumentam que o voto dos cidadãos de um país, ainda que as regras do jogo se tenham fixado previamente para que a tomada de decisões se adopte por unanimidade, não pode paralisar um projecto que implica mais de 500 milhões de pessoas.
Mais, abunda a ideia de que os irlandeses representam apenas 1% da população total da Europa ou, levada ao extremo e com tintes dramáticos, sublinha se que a diferença entre o avanço e a paralisação institucional da Europa dependeu tão só da vontade de 110 mil votantes, isto é, do número de votos de diferença entre os partidários da recusa da ratificação do Tratado e daqueles que o queriam ratificar.
A democracia transforma-se, então, numa questão de aritmética pura e dura e não num mecanismo de decisão colectiva que, sobretudo, tem que velar pela preservação dos direitos das minorias e que, em consequência, transcende a simples aritmética eleitoral e se torna complexa em si mesma.
No entanto, tudo isso se está a ignorar neste momento. Mais, obvia se até que, para a aprovação do Tratado, a regra da unanimidade vinha imposta à partida e era definidora do processo de tomada de decisões. Bastaria que se reconhecesse essa questão para que qualquer discussão e todas as declarações a esse respeito ficassem definitivamente atalhadas. Se um membro não quer, o processo não avança. Não há mais que falar.
QUE FAZER AGORA: IGNORAR OU REPETIR?
E, finalmente, o debate actual também não escapa à questão das possíveis soluções para a crise institucional gerada pelo resultado do referendo irlandês.
Assim, para além das declarações de pesar, ainda que com altíssimo conteúdo político, como as do chefe de Política Externa da União Europeia, Javier Solana, quando afirmou que «a vida deve continuar» [2], os chefes de estado e autoridades europeias andam empenhados em afirmar que o Tratado de Lisboa continua vivo, que a União Europeia vive em permanente crise e que, portanto, o que ocorreu não é nenhuma novidade.
E o pior de tudo é que têm razão: o Tratado continua vivo. De facto, o Tratado é a mesma Constituição Europeia que, ao ser recusada pela França e pela Holanda, se transmutou no Tratado de Lisboa e que, agora, ao ser recusado pela Irlanda, voltará a transmutar se no Tratado de “pensamos-continuar-a-tentar-até conseguir”.
(Por certo, e permitam-me o sarcasmo, não acham que seria interessante saber se a Igreja Católica considera pecado a manipulação genética de Tratados?).
Em todo o caso, também no âmbito das soluções, e dando por adquirido que o Tratado de Lisboa voltará a transmutar se em algo similar que se tentará aprovar a todo o custo, apresentam se duas opções que me parecem especialmente preocupantes.
Por um lado, desvalorizar o resultado irlandês, isto é, ignorar a decisão dos cidadãos do único país que submeteu a referendo o Tratado. Ou, o que é o mesmo, desvalorizar o resultado da vontade de um povo democraticamente expressa e que era vinculante para o resto da União Europeia a partir do momento em que, como dissemos, para a aprovação daquele rege a regra da unanimidade.
Evidentemente, isso só está a ser proposto porque a negativa provém da Irlanda. Se este resultado tivesse sido obtido na Alemanha ou na França, outras teriam sido as vias de solução propostas. Ou será que, quando a França votou não à Constituição Europeia, a alguém ocorreu propor que se tinha que avançar a todo o custo na construção europeia ainda que isso implicasse configurar uma Europa a duas velocidades na qual a França iria na última carruagem? Pois sim.
E, por outro lado, estão os que num primeiro momento sugeriram a possibilidade de que a Irlanda repetisse o referendo e que agora a vão consolidando. Assim, os líderes da União Europeia estão a propor já abertamente que a Irlanda repita o seu referendo em Junho de 2009, coincidindo com as eleições para o Parlamento Europeu e assegurando lhe, previamente, que manterá alguns privilégios (entre eles, a conservação do seu comissário).
Está visto que esses líderes têm uma percepção um tanto sui generis da democracia e entendem que os resultados das votações só podem ser válidos quando coincidem com os esperados. Ai dos cidadãos daquele Estado membro que se atrevam a opor se à vontade daqueles que não submetem a aprovação de uma Constituição ao veredicto da cidadania! Serão condenados sem remédio, e numa espécie de versão pós moderna do mito de Sísifo, a repetir a votação até que o resultado seja o previsto.
O RESULTADO FINAL: A DEMOCRACIA SEQUESTRADA
Estas são, grosso modo, as linhas gerais dos discursos que se puderam escutar por parte dos líderes europeus depois da vitória do “não” no referendo irlandês. Como se pode apreciar, encontram se bem longe dos que qualquer cidadão minimamente formado e informado poderia considerar como democráticos. De facto, muitos deles sustentam se em posições radicalmente antidemocráticas.
O problema é que, enquanto esses líderes querem avançar na conformação de uma União Europeia dos mercadores, numa Europa mais preocupada em ser um mercado único que uma sociedade de bem-estar, aos cidadãos já nem sequer restam os mecanismos democráticos para expressar a sua opinião e tentar inflectir o projecto europeu noutra direcção.
A Europa anda empenhada em roubar-nos a democracia porque pensam que não sabemos usá la; porque entendem que não somos responsáveis para decidir quais são os nossos interesses e como geri los; porque supõem que o mundo deve ser governado por técnicos e políticos profissionais em perfeita conivência: técnicos que servem um projecto político, políticos que servem interesses económicos. Entretanto, a cidadania só pode participar como espectadora e, quando lhe for requerido, ir às urnas para votar a favor de um resultado, aquele que eles previamente determinaram.
Perante este panorama, e sequestrada a democracia, o que nos resta? Resignação ou revolução? Vocês escolhem.
[1] Alberto Montero, Así entiende la democracia el Parlamento Europeo, 21/02/2008.
[2] El Tratado de Lisboa continúa vivo, dicen ministros de la Unión Europea, La Jornada, 17/06/2008.
Alberto Montero Soler
Rebelión
http://www.infoalternativa.org/europa/e110.htm
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