segunda-feira, junho 30, 2008

Como definirias “ateísmo”?

O Helder passou-me um questionário com dez perguntas (1), mas esta interessa-me mais que as outras. À letra, parece perguntar o que eu faria se decidisse como definir “ateísmo”. Não definia. A palavra “sinistrado” é útil mas não precisamos de uma palavra para quem não teve um acidente. Da mesma forma, basta conceitos como cristianismo, budismo e hinduismo para designar o atropelamento por uma dessas religiões. Não é preciso um termo para quem se safa.

Mas a palavra já foi definida pelos crentes e carrega séculos de preconceitos. A questão agora é explicar o que é que “ateísmo” tem a ver comigo, visto que já não me safo da etiqueta. Para os gregos, o ateu estava privado de deuses, coitado, e na idade média o ateísmo era a ruptura deliberada da relação com Deus. Não admira que até ao século XVII, “ateu” fosse sempre uma acusação que se fazia aos outros e nunca algo que se assumisse. Até porque seria arriscado. Do século XVIII para cá a convivência de muitas culturas e a liberalização de algumas sociedades mudou a situação mas permanece o problema de acharem que o ateísmo é um ismo acerca de deuses (2). Foi uma palavra mal escolhida e enviesada à partida.

Um ismo fundamenta-se numa premissa saliente, que considera inegável, mas que é disputada por outros ismos. Cristianismo, judaísmo, budismo, marxismo, e assim por diante. Por isso não é de estranhar que julguem que o ateísmo se fundamenta na premissa que deus não existe. Mas a inexistência de deuses não é premissa nem fundamento do ateísmo. O fundamento do ateísmo é a distinção clara entre o que é, o que julgamos ser, e o que gostaríamos que fosse. O resto é consequência de compreender que estes três conceitos são distintos. Se acham que isto é tão banal que não merece um nome, muito menos um ismo, estou de acordo. É como ter uma palavra para quem não foi atropelado. Mas as consequências desta distinção são significativas.

Porque a realidade e o que penso dela são coisas diferentes posso exigir que toda a afirmação de factos tenha um fundamento empírico. Alguns interpretam esta exigência como dizendo que só o observável é real, mas não é isso. Admito a possibilidade de haver coisas que não podemos observar. Simplesmente não devemos afirmar que alguma dessas coisas exista porque isso é especular sem fundamento. Isto é consensual para unicórnios invisíveis ou extraterrestres de outras dimensões. Podem existir, mas se não se observam não se justifica afirmar que existem. Só que alguns chamam-me ateu porque aplico o mesmo critério ao que me dizem dos seus deuses.

Porque distingo o que julgo ser verdade daquilo que gostaria que fosse a minha confiança em cada hipótese depende das evidências que a destacam das alternativas. Por isso rejeito a astrologia e acho o criacionismo um disparate. E é também por isso que não tenho fé. A fé faz do desejo uma opinião na qual se confia mais do que merece. Os que professam uma religião focam este detalhe e chamam-me ateu por não partilhar a fé deles.

E a distinção entre realidade e desejo deixa-me insatisfeito com mistérios. Para pôr a realidade como eu quero tenho que perceber primeiro como ela funciona. Por isso não gasto dinheiro no professor Bambo e prefiro ciência em vez de bruxaria. E muitos crentes concordam com isto. Mas chamam-me ateu porque também rejeito o hocus-pocus na hóstia, os milagres a as missas.

A palavra já está definida mas, infelizmente, foca uma parte insignificante daquilo que refere. Sim, discordo que haja deuses. Mas mudava de ideias se o Sol nunca nascesse quando o faraó fizesse greve ou se em cada trovoada visse um tipo de toga a atirar raios cá para baixo. Não é isso que importa. A questão da existência de alguns deuses só vem à baila por causa dos que insistem que o seu é que é verdadeiro. Há imensos deuses que se pode rejeitar sem ninguém achar nada de estranho.

Por isso, a quem quiser perceber o ateísmo recomendo que esqueça a parte dos deuses. Esqueça até a palavra, que só engana. Ateísmo é só usar o bom senso que todos têm, mas sem abrir excepções para a religião que saiu na rifa.

1- Helder Sanches, 15-6-08, O Meme Ateísta
2- Wikipedia, Atheist
http://ktreta.blogspot.com/

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