domingo, junho 22, 2008

A dissonância cognitiva em acção — Um problema grave também em Portugal

"A dissonância cognitiva (segundo a Wikipedia) assemelha-se à ambivalência e descreve pensamentos ou crenças conflitantes que se verificam em simultâneo. Pode ser constituída pela filtragem da informação que entra em conflito com aquilo que já se acredita, num esforço para ignorar aquela informação e reforçar as próprias crenças.
Esta "incapacidade irracional para incorporar informação racional" talvez seja a percepção mais comum da dissonância cognitiva". (Tavrin e Aronson)

Abastecimento de urânio

No programa Radio 4 Today da BBC, difundido em 29 de Maio de 2008, a co-autora Carol Tavrin foi entrevistada por Evan Davis, quando esta apresentou o conceito de dissonância cognitiva. O ponto seguinte foi uma discussão com Sir David King, outrora cientista-chefe do governo Blair. Ele é um apóstolo do "renascimento" nuclear, sendo um forte advogado de centrais nucleares por proporcionarem segurança de abastecimento, e por efectuarem a produção de electricidade com emissões relativamente livres de carbono.

Como o Reino Unido não tem minas de urânio e confia no combustível importado para a sua produção nuclear, muito provavelmente no futuro proveniente do construtor nuclear francês Areva, a sua percepção (cognition) das segurança de abastecimento é combinado com uma percepção oposta de que a mineração de urânio, que de qualquer forma proporciona apenas 60% da procura, está em declínio. Além disso, espera-se que os outros 40% provenientes dos chamados abastecimentos secundários reduzam-se a muito pouco em 2013.

Para evitar esta dissonância, na entrevista, ele afirma que "há uma grande quantidade de urânio neste país". Outros na fraternidade nuclear juntaram-se-lhe argumentando que o stock de urânio do Reino Unido em combustível gasto (que fica em piscinas de arrefecimento), em restos de enriquecimento e em urânio empobrecido (armazenado em cilindros de gás como urânio hexafluorido) representa uma fonte valiosa de combustível. Em Sellafield algum dos elementos de combustível gasto foram dissolvidos em ácido e o plutónio retirado para fabricar um óxido de combustível misto (mixed oxide fuel, MOX) com uma parte do urânio reciclado.

A Nuclear Decommissioning Authority (NDA), proprietária de Sellafield, estimou que o combustível que poderia ser fabricado a partir do seu stock de urânio e plutónio seria capaz de abastecer três reactores de um gigawatt durante o seu tempo de vida, portanto apenas 15% da necessidade de combustível da expansão prevista. Contudo, mesmo esta moderada contribuição está sujeita a maciças despesas de capital em fábricas e em custos operacionais em Sellafield. Seria necessário equipamento adicional, incluindo centrifugadoras de enriquecimento a gás, as quais seriam empregadas de forma mais relevante se fizessem uma melhor utilização dos abastecimentos de urânio natural agora em declínio.

As agências nucleares afirmam que uma ascensão no preço do urânio permitirá a abertura económica de novas minas com baixos teores, estendendo portanto as reservas. Ao invés de apoiar esta defesa habitual da indústria, Sir David preferiu "obrigar a sua mente a adquirir novos pensamentos ou crenças" na sua advocacia das centrais nucleares e ao assim fazê-lo proporcionou um exemplo da dissonância cognitiva em acção.

A utilização do carro e o pico petrolífero

O Departamento de Transportes do Reino Unido exibe colectivamente dissonância cognitiva nas suas políticas rodoviárias.

A rápida ascensão dos preços da gasolina e do gasóleo levou a pedidos de que o imposto sobre combustíveis seja cortado e isto provavelmente significará que futuros ajustamentos em alta serão abandonados. Até agora geralmente foi aceite que acrescentar pistas a rodovias atrai mais tráfego até que elas sejam mais uma vez congestionadas, enquanto a estrada actua nesse intervalo para aumentar a frustração. Está para ser visto quão alto os preços dos combustíveis têm de aumentar a fim de ter um efeito significativo sobre a utilização das estradas. É provável que em zonas urbanas prósperas os custos virão a ser absorvidos, ao passo que em áreas rurais a utilização diminuirá pois as viagens aguardarão uma acumulação de necessidades.

Dois relatórios, o "Roads and Reality" do RAC em Dezembro de 2007 (RAC Foundation 2007) e "The Eddington Transport study" (Eddington 2006) do governo, argumentam fortemente por mais investimentos rodoviários juntamente com a cobrança de portagens. Nenhum dos dois relatórios considerou o efeito do pico petrolífero sobre a utilização das estradas ou de qualquer escassez real de combustíveis. Os relatórios examinaram os efeitos do tráfego acrescido nas estradas sobre as alterações climáticas. Apesar de a melhoria de eficiências dos motores, os combustíveis e os meios de propulsão alternativos terem sido discutidos, a única restrição à utilização era através de portagens e possivelmente impostos sobre combustíveis.

Mesmo antes da escalada recente dos preços, os novos registos de carros atingiram um pico em 2003 com 2.563.631, caindo para 2.344.864 em 2006 (SMMT 2007), o que é uma redução bastante significativa de 9,1%. Não há dúvida, a queda em novas compras de carros reflecte a congestão crescente e a falta de capacidade em algumas estradas. Assim, mesmo sem o efeito do aumentos dos preços dos combustíveis, a fabricação de carros na e para a Grã-Bretanha está em declínio.

A produção global de petróleo bruto tem estado estagnada (flat), sustida pela contribuição de petróleo bruto sintético de areias betuminosas e de outras fontes não convencionais, mas a tendência subjacente é para que a produção do petróleo convencional que já passou do pico venha a declinar. Embora os preços na bomba tenham ascendido, tem havido abastecimento suficiente. Uma vez que o conjunto de todas as ofertas (convencional + não convencional) decline, os países ricos manterão os seus abastecimentos a expensas dos países pobres por pagarem mais, mas então a competição entre eles pelos abastecimentos inevitavelmente conduzirá à escassez e a prioridades de partilhas.

A dissonância cognitiva "está muitas vezes associada à tendência de as pessoas resistirem à informação em que elas não querem pensar, porque se o fizessem isto criaria tal dissonância, e talvez lhes exigisse que actuassem de maneiras que se afastariam dos seus hábitos confortáveis".

O governo recusou-se a admitir o início do pico petrolífero, apesar de a situação nos campos do Mar do Norte proporcionar uma ilustração clássica do fenómeno. Isto significa o esvaziamento progressivo das estradas e o colapso da indústria motorizada, que actualmente emprega mais de 500 mil pessoas. Perversamente, ele tem advogado pela portagem nas auto-estradas e autorizou mais despesas na construção de estradas, negando assim o problema do abastecimento, enquanto se atem a problemas de congestionamento que não podem ser senão temporários.

Em lugar disso, o governo "adquiriu ou inventou novos pensamentos ou crenças" com a actual preocupação quanto à mudança climática, a qual proporciona uma desculpa conveniente para reduzir a queima de combustíveis com as emissões que lhe são associadas, sem admitir a inevitabilidade da contracção do uso de combustíveis fósseis.

Tráfego áereo e pico petrolífero

Cópias do artigo "Flight-Path Britain" (Busby 2007) publicado em Real Resources Review foram enviadas a agências governamentais relacionadas com o assunto e aos media, mas eles não conseguiram produzir uma resposta. O artigo foi apresentado e submetido como documento no inquérito público sobre a expansão do Aeroporto de Stansted, o qual ainda não apresentou relatório, e será enviado ao inquérito a seguir acerca de uma segunda auto-estrada.

Ele mostra que se os gráficos do pico petrolífero, os quais aparecem em sucessivas edições da newletter da ASPO, forem reais, então o tráfego aéreo de passageiros e mercadorias declinará, de modo que não são necessárias novas auto-estradas. Enquanto isso, o declínio já está a caminho com fusões, bancarrotas e aviões no solo. Mas até agora não há qualquer sinal de o governo admitir que a expansão de Heathrow (que leva à destruição de comunidades inteiras e provoca a miséria a milhões que vivem na Londres Ocidental) é desnecessária.

O aeroporto de Heathrow já é servido por uma vasta infraestrutura rodoviária, de modo que a escassez de combustível automóvel e de jet fuel terá um duplo impacto sobre a sua actividade. O novo Terminal 5 provavelmente será suficiente para servir os negócios residuais dentro de uns poucos anos e os terminais a serem demolidos não precisam ser reconstruídos.

Dissonância cognitiva "pode ser a filtragem de informação que entra em conflito com o que já se acredita, num esforço para ignorar aquela informação". No caso do tráfego aéreo, a redução na actividade significará o cancelamento de encomendas por aviões novos e mais eficientes. O Reino Unido juntou-se à Europa ao subsidiar a Airbus com empréstimos do Estado a fim de assegurar o empregos em Broughton, ao Norte de Gales. Mas sem novas pistas de aviação não haverá espaço para aumento de tráfego; de modo que sem a expansão contemplada a Airbus entrará em colapso e com ela os empréstimos que serão cancelados. A "informação" do pico petrolífero tem portanto de ser ignorada.

Percepção pública

Como o declínio iminente do abastecimento de petróleo não foi admitido pelo governo, a "percepção" pública do actual choque de preços conduziu apenas à aplicação de um "imposto discreto". Mas a "desculpa" oficial para a aplicação de elevados impostos sobre os produtos petrolíferos tem sido dada como uma medida necessária para combater o "aquecimento global", donde se conclui que – com este modesto imposto – o próprio argumento das alterações climáticas para aumentar impostos foi (oficialmente) negado.

Isto significa que os inevitáveis protestos relativos aos combustíveis continuarão e que os impostos serão reduzidos. Já é demasiado tarde para o governo admitir que os seus planos para estradas e auto-estradas são mal concebidos; a "dissonância cognitiva" do público ignorará o pico petrolífero como profecias do "juízo final".

Era claro a partir dos protestos após o ano 2000 que era necessário uma mudança de estilo de vida. Foi perdida uma oportunidade de instilar uma mudança da direcção económica e o então novo governo fracassou em abraçar a sua oportunidade para fazer-nos entrar numa sociedade magra de energia.

Entretanto, há um movimento nascente de Cidades em transição (Trasition Towns, Hopkins 2008) iniciado em Kinsale, Irlanda, a seguir em Totnes, em Devon, e agora a espraiar-se a fim de incluir Lewes em Sussex e Lampeter em Wales para advogar e criar a revisão do estilo de vida.

Ele precisa tanto do (re)conhecimento (re"cognition") público como do governo.
John Busby
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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