quarta-feira, junho 25, 2008

O falso processo de Guantánamo é um crime

O disfarce de raptos, de sequestros e de torturas em pseudoprocessos não altera a natureza destes actos: no que diz respeito ao direito internacional, o que se passa em Guantánamo constitui crimes. Thierry Meyssan observa a aprovação que os grandes meios de comunicação social trazem implicitamente a estas atrocidades e interroga se sobre os motivos desta cumplicidade intelectual, ela mesma condenável em direito internacional de acordo com a jurisprudência de Nuremberga.

Sublinhei frequentemente que a polémica sobre os atentados do 11 de Setembro de 2001 só prossegue porque a Justiça nunca se pronunciou para designar os autores deste crime. Não existe até agora “versão oficial”, no sentido em que é entendida em democracia, quer dizer, versão estabelecida pelos tribunais na sequência de um debate contraditório, mas unicamente uma “versão bushiana”, apoiada por uma comissão de inquérito presidencial.

Esta incerteza reflecte se sobre a intervenção anglo-estado-unidense no Afeganistão, em 2002, a qual foi, de acordo com a Casa Branca, um «acto de legítima defesa», mas, de acordo com o Kremlin, uma «agressão ilegal». Por consequência, o apoio militar aduzido pela OTAN e os Aliados à presença militar anglo-saxónica no Afeganistão continua igualmente a ser considerado por uns como um apoio na guerra ao terrorismo e por outros como a participação numa operação colonial. Assim, foi devido à polémica que abri sobre os verdadeiros comanditários dos atentados do 11 de Setembro que o Senado do Japão recusou enviar novas tropas para o Afeganistão [1]. Ao passo que, por exemplo, o governo Sarkozy, que adere à versão bushiana dos factos, decidiu reforçar o contingente francês no Afeganistão.

Para esvaziar esta crítica, a administração Bush instaurou um tribunal e abriu em Guantánamo o processo de 14 suspeitos (ou mesmo 16, não se sabe exactamente), entre eles 2 crianças-soldado, acusadas de ter participado na conspiração do 11 de Setembro.

Ora, cada um pode constatar – e isto não é de todo contestado, excepto pelos porta-vozes oficiais da administração Bush – que este processo não é mais do que uma paródia sem relação com as exigências da justiça democrática: não se trata aqui de um tribunal judicial onde teriam lugar juízes independentes, mas de um tribunal militar de excepção cujos juízes são designados pelo Executivo (ou seja, estando a administração Bush posta em causa, julgar-se-á a ela própria, declarar-se-á inocente e aos réus culpados); segundo o modelo clássico da Inquisição, este tribunal não funciona com base em provas, mas com base em confissões, as quais são extorquidas sob tortura (mas a Inquisição não pretendia estabelecer a Verdade, que “conhecia” já, visava apenas salvar a alma do pecador forçando-o à confissão); por último, os debates não serão nem públicos, nem contraditórios (o público vê do tribunal apenas as imagens que o seu presidente decide transmitir; quanto aos direitos fundamentais da defesa, nenhum é respeitado).

A escolha da administração Bush de pôr em cena confissões obtidas sob tortura dando-lhes a aparência visual de um processo, forma de se desculpar de qualquer responsabilidade na organização e perpetração dos atentados do 11 de Setembro de 2001, prova em si mesma a sua vontade de esconder a verdade sobre estes atentados.

Eis que ao crime de ter morto ou ter deixado matar 2.973 pessoas no dia 11 de Setembro de 2001, a administração Bush acrescentou o crime de ter raptado indivíduos e de os ter torturado, provavelmente amanhã de matá los, na esperança de escapar à sua responsabilidade perante tribunais democráticos. Com uma surpreendente preocupação do detalhe, a administração Bush tomou mesmo o cuidado de perpetrar este novo crime em Guantánamo, ou seja, num território cubano que ocupa ilegalmente, de forma a estar certa de não ter de prestar contas ulteriormente perante tribunais estado-unidenses.

Qualquer que seja a sua opinião sobre os atentados do 11 de Setembro, a imprensa, que reivindica o papel de vigia nas sociedades democráticas, deveria hoje denunciar claramente esta sórdida mascarada. Ora, como acabo de explicá-lo, denunciando o crime que constitui o falso processo de Guantánamo, a imprensa deveria interrogar se porque é que a administração Bush o empreende, e pela mesma razão tomar posição sobre a vontade da Casa Branca de esconder a verdade sobre os atentados do 11 de Setembro.

Incapazes de reconhecer os seus erros ou devotados a apoiar a OTAN, os grandes meios de comunicação social encontram-se armadilhados. Tentam por conseguinte minimizar o crime de Guantánamo. Em relação às normas do Tribunal de Nuremberga, esta Colaboração intelectual é uma forma de cumplicidade.

A título de exemplo, o Wall Street Journal de 4 de Junho de 2008 publicou sem vergonha um artigo de opinião do vice-almirante Mark Buby, antigo comandante do centro de tortura de Guantánamo, intitulado “Guantánamo é realmente uma prisão modelo”.

Um outro exemplo de banalização do crime pode ser encontrado em Le Monde, um diário francês que adquiriu os seus pergaminhos e o seu prestígio nos anos 50-60 denunciando sob riscos e perigos a tortura praticada pelo exército francês na Argélia. Titula a sua edição de 7 de Junho de 2008: “O processo do 11 de Setembro abre se por fim em Guantánamo”. Consciente da abjecção que consiste em qualificar de processo a mascarada de Guantánamo, o Le Monde publica um desenho procurando desdramatizar a situação. Intitulado “Ainda a tortura em Guantánamo”, representa um suspeito sujeito a choques eléctricos. Mas o gerador é uma televisão que difunde uma imagem do presidente Bush. A vítima urra «Pare com isso, é insuportável”, enquanto um tecnocrata lhe responde “Oh, é só por mais alguns meses”, fazendo alusão ao encerramento anunciado do centro de tortura.

Os agentes do FBI que tinham sido transportados a Guantánamo para assistir aos interrogatórios tentaram opor se ao que viram e foram expulsos [2]. Os jornalistas que cobrem o falso processo de Guantánamo nada viram, nada verão, nada querem ver. Longe de se oporem ao que se passou e ao que se passa, dão uma aparência de respeitabilidade à barbárie.

O falso processo deve ser terminado e o centro de tortura deve ser fechado o mais tardar a 4 de Novembro próximo. Nesta data, as polémicas sobre os atentados do 11 de Setembro, sobre a guerra ao terrorismo, sobre os raptos, sobre a tortura e sobre o falso processo de Guantánamo serão consideradas como fechadas pelos grandes meios de comunicação social. O novo presidente dos Estados Unidos pronunciará de uma maneira ou de outra a amnistia da administração cessante. Assegurar-nos á que o seu país mudou e que tudo segue doravante pelo melhor no melhor dos mundos. A maior parte dentre nós ficará tão feliz por poder por fim dormir de consciência tranquila que fará passar por perdas e lucros as centenas de milhares de mortes desta política e esquecerá os 21.000 prisioneiros que estagnam nos 17 centros de tortura secretos do Navy [3].

[1] Ler a transcrição das audições do Senado do Japão de 11 de Janeiro de 2008, Rede Voltaire, 21 de Janeiro de 2008.
[2] A Review of the FBI’s Involvement in and Observations of Detainee Interrogations in Guantanamo Bay, Afghanistan, and Iraq, U.S. Department of Justice, Office of Inspector General, Washington D.C., Maio de 2008.
[3] Duncan Campbell e Richard Norton-Taylor, EUA acusados de manter suspeitos de terrorismo em navios prisão e Prison ships, torture claims, and missing detainees,
Thierry Meyssan
Voltaire
http://www.infoalternativa.org/midia/midia097.htm

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