terça-feira, junho 10, 2008

Pensar com os pés

Os portugueses têm desde há uns dias um motivo para esquecer a crise. Chama-se Euro 2008, Campeonato Europeu de Futebol, e tem vindo a ocupar progressivamente o espaço mediático que antes era preenchido com a subida dos preços do petróleo e a crise económica a ela associada. No outro dia liguei a televisão e estava a transmitir o autocarro da selecção, visto de um helicóptero. Mudei de canal e estava a dar o mesmo autocarro, mas filmado agora de um outro helicóptero. Se ganharmos, como é o desejo geral, não quero imaginar o choque de helicópteros em disputa para filmar o autocarro no regresso.

Os desejos não são realidades. É pouco provável que ganhemos os jogos todos até à final e mais improvável ainda que ganhemos a final. Apesar de o seleccionador ser o mesmo do quarto lugar num Mundial e do segundo lugar num Europeu muitos jogadores são diferentes e as circunstâncias são também diferentes. Estou, porém, convencido de que vamos ganhar com este Euro na Suíça e na Áustria de qualquer maneira. Se ganharmos a final, vai ser, a avaliar pela enorme euforia que já hoje reina, um completo desatino. Havemos de vir em hordas para a rua em longas caravanas automóveis a berrar e buzinar, por mais elevado que esteja na altura o preço do combustível. Esqueceremos por completo a crise. Mas qual crise? Haverá alguma crise? Veremos deputados e ministros bem mais sorridentes do que temos visto. Por outro lado, se não ganharmos, também ganharemos. Ganharemos de qualquer modo, pois não teremos distracções no confronto com a crise que nos assola, sendo mais fácil tornar-nos um país competitivo noutras áreas e não apenas no futebol. Não vou torcer para que a equipa perca, mas esta hipótese não me parece má de todo.

Parece-me que as expectativas estão altas demais e temo que a ressaca seja dolorosa. De facto, estamos, no futebol, no “top ten” europeu e quase no “top ten” mundial (ocupamos o 11º lugar do “ranking” da FIFA, longe do pódio tomado pela Argentina, Brasil e Itália, mas perto do 10º, que é a Holanda). Mas afinal é em Portugal que existe uma liga relativamente fraca e muito abalada pela crise do “apito dourado” e do “apito final” (o apito pode ter sido final para o Porto na Liga dos Campeões do próximo ano). É onde há clubes da primeira liga com salários em atraso (o Boavista acumulou a suspeita de corrupção com o défice de pagamentos). É onde há casos de indisciplina e violência que incluem tanto jogadores como o seleccionador (um pecado que Scolari fez passar por virtude ao falar da “defesa do menino”). E é onde existem estádios absolutamente megalómanos para os jogos que lá se realizam (pelo menos os estádios de Aveiro, Coimbra, Leiria e Faro, construídos para o Euro 2004, foram grandes investimentos falhados) e é onde ainda há quem não tenha aprendido a lição e queira organizar um Mundial.

Diz-se que a equipa, que inclui numerosos jogadores emigrantes, vale muito dinheiro, que é até a segunda mais cara do Euro. Porém, grande parte dessa verba diz respeito a um único jogador e, mesmo sabendo pouco de tácticas, julgo que um desporto de onze não pode depender demasiado da inspiração de um só. Oxalá o faça, mas não é garantido que São Ronaldo nos valha.

Não estou a ser um velho do Restelo. Por uma razão simples: um campeonato europeu de futebol não é propriamente a descoberta do caminho marítimo para a Índia. Nem sequer é o caminho para sair da crise. Ficarei feliz se ganharmos os jogos até à final e também esta. Mas há desafios bem mais importantes para nós. Somos bons com os pés, mas não o somos suficientemente com a cabeça. Porque é que não fazemos o mesmo esforço para entrar no “top ten” da educação que fazemos no futebol? Entrar no “top ten” dos “rankings” PISA, isso sim, é que seria uma proeza que nos poderia orgulhar, a nós que estamos em literacia científica num modesto 27º lugar entre os países da OCDE. Porque é que a Galp, a TMN e a Sagres não investem aí os seus chorudos patrocínios? Porque é que só somos bons a pensar com os pés?
http://dererummundi.blogspot.com/

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