domingo, junho 08, 2008

Pensar a golpes de martelo


Michel Onfray: pensador outsider investe no ousado projeto de recuperar os pensamentos ´vencidos´ da história da filosofia.
´Enfant terrible´ do pensamento europeu, Michel Onfray se afastou das instituições oficiais da disciplina para se dedicar a seu ´ensino livre´. Autor de obras como ´Tratado de Ateologia´, Onfray tem se dedicado a contar a história dos pensamentos vencidos da filosofia ocidental, em uma série de livros. O primeiro, ´As sabedorias antigas´, acaba de ser publicado. Confira abaixo a entrevista exclusiva com o filósofo

É bem conhecida posição de crítico do atual sistema de ensino universitário francês. Em especial, no que diz respeito à instituição acadêmica da filosofia. Em que momento, a filosofia chegou a esta configuração que você critica, em que conflitos aparentes esconderiam uma linhagem que tem em Platão seu precursor e ponto referencial?

Verdade, e esta linha de pensamento não é reivindicada como tal, já que os estudos de filosofia não ensinam como é escrita a história da filosofia! Não se pode oferecer a chave dos mecanismos desta fábula, que legitima a dominação e toda o poder desta linhagem idealista e espiritualista, proveniente do cristianismo, que tem sido o pensamento dominante na Europa há mais de mil anos. Achava-se normal rir de uma história da filosofia escrita a partir de um ponto de vista bolchevista na URSS, no entanto, ninguém ri dos pressupostos e dos ações da ideologia dominante de nosso mundo liberal. Foi depois da Revolução Francesa que houve este aumento do poder dos acadêmicos e das universidades sobre a filosofia e, logo, sobre a escrita da história da filosofia. Mal havia passado 1793 e a abolição da propriedade, o ateísmo radical, combatidos rapidamente por Robespierre (1758 -1794, revolucionário francês), tinham deixado lembranças ruins: agia-se, portanto, seguindo uma perspectiva reacionária, no sentido etimológico, de restaurar os pensamentos em torno da propriedade burguesa, da religião cristã, da obediência à lei do Estado e os professores de filosofia levaram suas pedras para edificar uma universidade conservadora, reacionária e burguesa.

Antes de seu trabalho de resgate dos pensamentos que foram silenciados na história da filosofia, há registro de outras tentativas de contar uma ´contra-história´ da disciplina?

Não, pois, caso contrário, eu não teria me lançado neste campo, que exige uma energia considerável e a mobilização uma força de trabalho importante. Este projeto inédito, no qual faço uma releitura integral da história da filosofia, há seis anos consume uma grande parte da minha energia - e vai consumir tanto tempo quanto eu julgar necessário para concluir o trabalho.

´As sabedorias antigas´, primeiro volume da contra-história, foi lançado agora no Brasil. No ´Preâmbulo geral´ do livro, você critica o modelo tradicional da história da filosofia, como excludente e pouco crítico. Quais precauções você tomou para que sua ´Contra-história´, apontando para um caminho oposto, não cometesse os mesmos erros?

Sou um homem livre, que trabalha fora da instituição, que não é pago pelo Estado, não sou funcionário do governo e nem recebo salário de máquinas sociais como o Collège de France, o Centro Nacional de Pesquisa Científica e Ecole Pratique des Hautes Etudes (Escola Pratica de Altos Estudos). Não tenho mestres a seguir, nem tampouco preciso bajular patrões ou temer que minha carreira não seja legitimada por um pequeno mundo dominante na filosofia. A verdadeira liberdade, autêntica, dispensa a prostituição de seu trabalho para agrada pessoas da instituição que, normalmente, dá de comer ao professor.

A ´Contra-história da filosofia´ é uma maneira de legitimar seu posicionamento intelectual, já que ela descreve uma linhagem em que você mesmo pode ser incluído?

Sim, você tem razão... Respondi a uma pessoas que não conheço, mas me disse um dia que prazer não foi o suficiente para fazer uma filosofia. Defendi que sim, naturalmente, e me pus a fazer história... Daí saiu uma série, da qual seis volumes já foram publicados e outros quatro ainda serão. Assim, me inscrevi, efetivamente, na esteira, na linhagem na qual é possível encontrar os materialistas, atomistas, sensualistas, ateus pensadores de esquerda e hedonistas e eudemonistas.

Em um volume de sua ´Contra-história´, ainda inédito no Brasil, você trata Sade como um precursor do fascismo. Esta interpretação vai de encontro à leitura dos surrealistas, que o consideravam um revolucionário, um verdadeiro precursor do movimento. Em que ponto a interpretação deste grupo estava errada?

Houveram os bons momentos dos surrealistas e da nova era intelectual proporcionada pelos manifestos de Breton (poeta, líder do grupo surrealista francês). No entanto, era um engodo científica e acabaram escrevendo muitos disparates: notadamente sobre sexualidade. A condenação da homossexualidade, a crítica da libertinagem em nome do amor por uma só pessoa e outras posições conservadoras sobre este assunto não fazem dos surrealistas, em minha opinião, detentores de verdades absolutas... Eles usaram a obra de Sade como uma obra libertadora e tiveram a confirmação do que queriam ver a priori. Esta primeira análise não resiste a uma leitura informada pela lição dos campos da morte nazista.

Em todo o mundo, você é um dos principais intelectuais militantes do ateísmo. Qual o problema com religiões?

Elas nos vendem mentiras, ilusão, fábulas, ficções, idéias mágicas e respostas feitas para cérebros de crianças. Ora, um filósofo não pode consentir com isso! Além disso, todas as religiões nos convidam a morrer em nossas vida para ganhar uma vida eterna depois, só que esta vida eterna não existe... As religiões nos fazem ignorar a vida, o único bem que, de fato, possuímos.

As literaturas histórica e sociológica não identificaram experiências de sociedades sem religião. Você acredita ser possível estabelecer uma civilização ateísta?

Não. Toda civilização se constrói para depois se alimentar dessas fábulas, ficções e ilusões... Uns poucos espíritos lúcidos é que podem ser conscientes na vasta cortina de fumaça que sempre é uma religião. Mas não convém à filosofia compartilhar os erros da grande maioria. A batalha está perdida de antemão, mas ela deve ser realizada…

FIQUE POR DENTRO

Um novo olhar sobre velhos pensamentos

Seria preciso uma certa dose de má vontade para não reconhecer o mérito da idéia de Michel Onfray, batizada de ´Contra-história da filosofia´ e concretizada numa série de 10 livros. Por mais de uma vez, pensadores esquecidos - ´póstumos´, para usar a idéia do alemão Friedrich W. Nietzsche - foram retomados e contribuíram para o avanço da disciplina. Onfray vai além: que fazer um inventário detalhado daqueles que foram esquecidos, que tiveram suas idéias multiladas ou silenciadas pelos vencedores da batalha pela verdade filosófica. ´As sabedorias antigas´, primeiro volume a ser lançado no Brasil, traz o programa do autor e inicia o panorama, cobrindo os pensadores da Antigüidade. Polêmicas a parte, Michel Onfray é responsável por uma releitura dos filósofos que entraram para a história da disciplina como o rótulo genérico de ´pré-Socráticos´ - mesmo que alguns tenham sido seus contemporâneos ou, mesmo, lhe sobrevivido em muitos anos, como alerta do autor. Ele chama atenção para a necessidade de pensar este conjunto como uma falsa categoria, que reúne pensamentos bem diferentes entre si. Merece particular atenção as leituras de Sócrates feitas por outros textos, para além dos clássicos platônicos. Onfray também relê, a partir desta linhagem ´rebelde´, pensamentos incluídos na história tradicional da filosofia, como Demócrito e Lucrécio.

Dellano Rios
Repórter

*Colaborou Iracema Sales, da editoria Reportagem

http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=544198

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