segunda-feira, junho 02, 2008

Pior que um crime

Pareceu a queda do muro de Berlim. E não somente “pareceu”. Por um momento, o cruzamento de Rafah foi a Porta de Brandenburgo.

É impossível não sentir alegria quando as massas de oprimidos e famintos rompem o muro que os oprime, de olhos brilhantes, abraçando todos os que encontram – senti lo mesmo quando foi o nosso governo que construiu aquele muro em primeiro lugar.

A Faixa de Gaza é a maior prisão da Terra. O rompimento do muro em Rafah foi um acto de libertação. Prova que uma política desumana é sempre uma política estúpida: nenhum poder pode conter uma massa de pessoas que já passou a fronteira do desespero.

Esta é a lição de Gaza, Janeiro, 2008.

Poder se ia repetir o famoso dito do estadista francês Boulay de la Meurthe [1], ligeiramente adaptado: É pior que um crime de guerra, é um disparate!

Há meses, os dois Ehuds – Barak e Olmert – impuseram um bloqueio à Faixa de Gaza e vangloriaram se disso. Depois, apertaram o nó mortal ainda mais, até que já praticamente nada podia ser levado para a Faixa. Na semana passada tornaram absoluto o bloqueio – nem comida, nem remédios. As coisas chegaram ao paroxismo quando suspenderam também o combustível. Grandes áreas de Gaza ficaram sem electricidade – incubadoras para bebés prematuros, máquinas de diálise, bombas de água e para evacuar esgotos. Centenas de milhares de pessoas ficaram sem aquecimento sob frio intenso, sem poder cozinhar, sem ter o que comer.

Uma e outra vez, a Al Jazeera levou as imagens a milhões de lares no mundo árabe. Estações de televisão de todo o mundo também as mostraram. De Casablanca a Amã, explodiram irados protestos de massas e assustaram os regimes árabes autoritários. Hosny Mubarak telefonou em pânico para Ehud Barak. Nessa noite, Barak foi obrigado a cancelar, pelo menos temporariamente, o bloqueio de combustível que tinha imposto de manhã. Aparte isso, o bloqueio permaneceu total.

É difícil imaginar um acto mais estúpido.

A razão apresentada para matar de fome e frio um milhão e meio de seres humanos, apinhados num território de 365 quilómetros quadrados, é o contínuo bombardeio sobre a cidade de Sderot e arredores.

É uma razão bem escolhida. Une as partes primitiva e pobre da opinião pública israelita. Mitiga as críticas da ONU e de governos de todo o mundo, que de outro modo poderiam falar contra uma punição colectiva que é, indubitavelmente, um crime de guerra nos termos da lei internacional.

Apresenta-se ao mundo um quadro claro: o regime de terror do Hamas em Gaza lança mísseis contra civis israelitas inocentes. Nenhum governo do mundo pode tolerar o bombardeamento dos seus cidadãos a partir do outro lado da fronteira. O exército de Israel não encontrou uma resposta militar para os mísseis Qassam. Portanto, não há outra forma senão exercer uma tão forte pressão sobre a população de Gaza, para levá la a levantar se contra o Hamas e obrigá lo a parar os mísseis.

No dia em que a produção de electricidade de Gaza deixou de operar, os nossos correspondentes militares estavam exultantes: só dois Qassams foram lançados da Faixa. Por isso, funciona! Ehud Barak é um génio!

Mas, no dia seguinte, aterraram 17 Qassams e a alegria evaporou se. Políticos e generais israelitas estavam (literalmente) fora de si: um político propôs «agir de forma mais louca que eles», outro propôs «bombardear a área urbana de Gaza indiscriminadamente por cada Qassam lançado», um famoso professor (que está um pouquinho perturbado) propôs que se exercesse o «mal absoluto».

O cenário do governo foi uma repetição da Segunda Guerra do Líbano (espera-se a publicação do relatório sobre ela nos próximos dias). Naquela altura: o Hezbollah capturou dois soldados no lado israelita da fronteira. Agora: o Hamas bombardeou vilas e cidades no lado israelita da fronteira. Naquela altura: o governo decidiu apressadamente entrar em guerra. Agora: o governo decidiu apressadamente impor um bloqueio total. Naquela altura: o governo ordenou o bombardeamento maciço da população civil, de modo a levá la a pressionar o Hezbollah. Agora: o governo decidiu provocar o sofrimento maciço da população civil, de modo a levá la a pressionar o Hamas.

Os resultados foram os mesmos em ambos os casos: a população libanesa não se levantou contra o Hezbollah, antes pelo contrário, pessoas de todas as comunidades religiosas uniram-se por trás da organização xiita. Hassan Nasrallah tornou-se o herói de todo o mundo árabe. E agora: a população une se por trás do Hamas e acusa Mahmud Abbas de colaboração com o inimigo. Uma mãe que não tenha comida para os seus filhos não maldiz Ismail Haniyeh, maldiz Olmert, Abbas e Mubarak.

Então, o que fazer? Afinal de contas, é impossível tolerar o sofrimento dos habitantes de Sderot, que vivem sob fogo constante.

O que está a ser escondido da opinião pública amargurada é que o lançamento dos Qassam poderia ser parado amanhã de manhã.

Há vários meses, o Hamas propôs um cessar-fogo. Repetiu a oferta esta semana.

Um cessar-fogo significa, na visão do Hamas,: os palestinianos deixam de disparar Qassams e morteiros, os israelitas cessam as incursões em Gaza, os assassinatos “selectivos” e o bloqueio.

Porque não aceita o nosso governo imediatamente esta proposta?

É simples: para aceitar esta proposta, devemos falar com o Hamas, directa ou indirectamente. E é isso precisamente o que o governo se recusa a fazer.

Porquê? Simples de novo: porque Sderot é apenas um pretexto – assim como os dois soldados capturados foram um pretexto para algo completamente diferente. O verdadeiro propósito de todo o exercício é derrubar o regime do Hamas em Gaza e evitar uma tomada de poder do Hamas na Cisjordânia.

Em palavras simples e claras: o governo sacrifica o destino de toda a população de Sderot no altar de um princípio sem esperança. É mais importante para o governo boicotar o Hamas - porque é agora a ponta de lança da resistência palestiniana – do que pôr fim ao sofrimento de Sderot. Todos os media colaboram com este fingimento.

Já se disse que é perigoso escrever sátira no nosso país – demasiadas vezes a sátira torna-se realidade. Alguns leitores talvez se lembrem de um artigo satírico que escrevi há alguns meses [1]. Nele, descrevi a situação em Gaza como uma experiência científica projectada para descobrir até que ponto se pode ir, em matar de fome uma população civil e transformar a sua vida num inferno, antes de ela levantar as mãos em rendição.

Esta semana, a sátira tornou se política oficial. Comentaristas respeitados declararam explicitamente que Ehud Barak e os chefes militares estão a trabalhar sob o princípio da “tentativa e erro” e mudam diariamente os seus métodos conforme os resultados. Suspendem o combustível para Gaza, observam como isto funciona e retrocedem quando a reacção internacional é demasiado negativa. Suspendem o fornecimento de medicamentos, vêem como funciona, etc. O objectivo científico justifica os meios.

O homem encarregado desta experiência é o Ministro da Defesa, Ehud Barak, um homem de muitas ideias e poucos escrúpulos, um homem cujo modo de raciocinar é basicamente inumano. Ele é agora a pessoa mais perigosa de Israel, mais perigosa que Ehud Olmert e Benyamin Netanyahu, perigoso para a própria existência de Israel a longo prazo.

O homem encarregado da execução é o Chefe do Estado Maior. Esta semana, tivemos a oportunidade de ouvir discursos de dois dos seus predecessores, os generais Moshe Ya’alon e Shaul Mofaz, num fórum com pretensões intelectuais inflacionadas. Descobriu-se que ambos tinham pontos de vista que os colocam algures entre a extrema-direita e a ultra-direita. Ambos têm uma mente assustadoramente primitiva. Não há necessidade de desperdiçar uma palavra sobre as qualidades morais e intelectuais do seu sucessor imediato, Dan Halutz. Se estas são as vozes dos três últimos Chefes do Estado Maior, o que dizer do actual, que não pode falar abertamente como os outros? Será que esta maçã caiu mais longe da árvore?

Até há três dias, os generais ainda podiam entreter a opinião de que a experiência estava a resultar. A miséria na Faixa de Gaza atingira o clímax. Centenas de milhares estavam ameaçados de facto pela fome. O chefe da UNRWA [Agência de Apoio Humanitário da ONU para a Palestina] avisou sobre o risco de catástrofe humana iminente. Só os mais ricos podiam ainda conduzir um carro, aquecer as suas casas e comer conforme as suas necessidades. O mundo manteve-se aparte e mexeu a sua língua colectiva. Os líderes dos Estados árabes pronunciaram frases vazias de simpatia sem moveram um dedo.

Barak, que tem talentos matemáticos, podia calcular quando entraria finalmente em colapso a população.

E então algo aconteceu que nenhum deles previu, embora fosse o evento mais facilmente previsível do planeta.

Quando alguém põe 1,5 milhões de seres humanos numa panela de pressão e não pára de aumentar a temperatura, ela explodirá. Foi o que aconteceu na fronteira Gaza-Egipto.

A princípio houve uma pequena explosão. Uma multidão irrompeu no posto de fronteira, polícias egípcios abriram fogo, dúzias ficaram feridos. Isso foi um aviso.

No dia seguinte veio o grande assalto. Combatentes palestinianos romperam o muro em muitos sítiios. Centenas de milhares irromperam em território egípcio e respiraram fundo. O bloqueio estava rompido.

Mesmo antes disso, Mubarak estava numa posição insustentável. Centenas de milhões de árabes, mil milhões de muçulmanos viram como o exército de Israel tinha fechado a fronteira de Gaza em três pontos: pelo norte, pelo leste e pelo mar. O quarto lado do bloqueio foi fornecido pelo exército egípcio.

O presidente egípcio, que clama a liderança de todo o mundo árabe, foi visto como colaborador numa operação inumana conduzida por um inimigo cruel, para obter o favor (e o dinheiro) dos norte-americanos. O seu inimigo interno, a Irmandade Muçulmana, explorou esta situação para o aviltar aos olhos do seu próprio povo.

É duvidoso se Mubarak podia ter persistido nesta posição. Mas as massas palestinianas aliviaram no da necessidade de tomar uma decisão. Decidiram por ele. Irromperam como uma onda de um tsunami. Agora, ele tem de decidir se sucumbirá à exigência de Israel de reimpor o bloqueio contra os seus irmãos árabes.

E quanto à experiência de Barak? Qual será o próximo passo? As opções são poucas:

1. Reocupar Gaza. O exército não gosta da ideia. Percebe que isto exporá milhares de soldados a uma guerra de guerrilha cruel, diferente de qualquer intifada anterior.

2. Apertar novamente o bloqueio e exercer pressão extrema sobre Mubarak, incluindo o uso da influência israelita no Congresso dos EUA, para privá-lo dos milhares de milhões que recebe anualmente pelos seus serviços.
Uri Avnery
http://www.infoalternativa.org/autores/avnery/avnery084.htm

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