segunda-feira, junho 09, 2008

Publicidade de “boas maneiras”


No meu dia, Dia da Criança, gostava que me levassem ao [nome de um centro comercial] para ver o espectáculo musical [designação do grupo musical].
Um beijinho,
[espaço para a criança escrever o seu nome]


Estas são as palavras de um bilhete com design agradável que me chegou às mãos, via escola, pouco tempo antes de 1 de Junho.

A estratégia que aqui está subjacente não é nova, já a descobri há alguns anos, mas parece-me que tem vindo a ganhar terreno e a tornar-se comum.

Refiro-me, muito concretamente, a certas ligações que empresas e marcas estabelecem com escolas: financiam projectos, obras, materiais, ou, simplesmente, propõem-se ilustrar, apoiar a leccionação de temáticas curriculares nas mais diversas áreas como a saúde, a cidadania, a cultura...

Sem ter feito qualquer investigação para perceber em profundidade as características e extensão de tais ligações, baseando-me apenas e só na constatação que o quotidiano permite, darei exemplos, que fui guardando, daquilo que refiro.

- Escolas do Ensino Básico promovem um concurso de desenho. O vencedor vê o trabalho impresso em sacos de supermercado com o seu nome e da instituição a que pertence.
- Uma escola decide transformar um dos seus ginásios em anfiteatro. As obras são patrocinadas por um Banco a troco da afixação de um enorme cartaz publicitário na parede mais exposta aos olhares de quem passa;
- Escolas implementam o cartão electrónico para controlo de entradas e saídas e de outros passos dos alunos com o apoio de fábricas da região. O logótipo dessas fábricas consta, naturalmente, nos ditos cartões.
- Escolas do 1.º ciclo do Ensino Básico recebem um escritor. Num cartaz, onde se destaca a editora, solicita-se aos meninos que comprem um livro.
- Jardins-de-Infância levam as crianças a um certo centro comercial, onde alunos de medicina ou enfermagem simulam uma consulta aos bonecos que os petizes levam e explicam os riscos de apanhar Sol. Trazem para casa amostras de um certo protector solar.
- Escolas do 1.º ciclo do Ensino Básico deixam entrar profissionais da saúde para elucidar as vantagens da higiene bocal. Trazem para casa amostras de pasta de dentes, elixir, e uma escova de uma certa marca.

Poderia dar outros exemplos, mas penso que estes são suficientes para tecer algumas considerações.

Em todos os casos, a coberto de um bem intencionado e abnegado apoio à educação, que vai de encontro ao desenvolvimento da criatividade e à promoção da leitura, da segurança e bem-estar dos alunos, além de complementar o trabalho de educadores e professores, a publicidade infiltra-se num terreno fácil e fértil na obtenção de resultados em seu próprio proveito, à revelia das regras que, no geral, lhe são imposta por lei.

Por outro lado, as orientações da tutela para a educação vão no sentido de se estabelecerem ligações entre a escola e o meio envolvente, de se sensibilizarem as crianças e os jovens para os problemas do quotidiano, e para se envolverem em situações concretas, pressupondo-se que, assim, o seu interesse pelas aprendizagens aumenta e estas se tornam mais significativas.

Além disso, não tenho dado conta de que os pais ou encarregados de educação se queixem. Pelo contrário, o que ouvi foram elogios às práticas que descrevi.

Parece, então, estar tudo certo.
Mas não está, está tudo errado.

Sob o ponto de vista da publicidade, as crianças e os jovens são um público apetecível: além de ficarem a conhecer empresas e marcas, de que serão potenciais clientes durante os longos anos de vida que terão pela frente, levam para casa um conhecimento paralelo ao escolar e, portanto, com o mesmo peso ou um peso maior. Isto, claro, sem falar na persuasão que este público exerce sobre os adultos para comprar isto e aquilo, ou isto em vez daquilo.

Mas não é às empresas e marcas que se deve imputar, em primeiro plano, a responsabilidade da situação de que falo, mas sim às escolas.

A lógica das primeiras é sabida: imporem-se no mercado e terem lucros. Por isso, a publicidade a que recorrem foi, é e será interesseira. Sempre poderemos alegar que os meios não justificam os fins, mas não iremos longe com este argumento.

Já as escolas deveriam fazer jus ao que uma certa retórica indica: serem centros de aprendizagem crítica. Ou seja, o que se ensina, deveria ensinar-se livremente sem amarras políticas, religiosas ou… económicas. Logo, não tem sentido que a publicidade, pela sua própria natureza sectária, lá entre. E, no entanto, pelo que percebo, ganha cada vez mais espaço nos manuais escolares, nos muros das escolas, nos materiais escolares, nos projectos em que os alunos se envolvem.

Paradoxalmente, isto acontece ao mesmo tempo que circulam no sistema de ensino diversos programas de educação para o consumo consciente e para a gestão do pecúlio, que têm, geralmente, lugar na área curricular não disciplinar que se designa por Formação Cívica.

Vejo, ainda, um outro problema na intrusão a que me refiro: quando, empresas e marcas entram na escola e contactam directamente com crianças e jovens estão em vantagem, por exemplo, em relação a investigadores. Estes, para realizarem os seus estudos em ambiente escolar público com alunos menores, têm de submeter os seus pedidos e obter autorizações por escrito das seguintes entidades e pessoas: (1) Comissão Nacional de Protecção de Dados; (2) Direcção Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular; (3) Agrupamento de Escolas ou Escola; (4) Professores (caso se justifique); e (5) Pais/encarregados de educação.

Devo, a terminar, esclarecer que não defendo uma escola fechada sobre si própria, mas a abertura ao mundo que a cerca tem de ser criteriosa: a porta não pode estar franqueada a tudo e a todos; por sua vez, os alunos, nessa qualidade, não podem ser conduzidos a qualquer lado.
http://dererummundi.blogspot.com/

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