segunda-feira, junho 02, 2008

Treta da Semana: «Os Perigos da Internet»

A SIC poupou-me trabalho esta semana com o programa «Aqui e Agora» do dia 29, «Os Perigos da Internet». A legenda numa das reportagens resume bem o tom do programa: «Os perigos da Internet: a blogoesfera ajudou a denunciar abusos de regimes totalitários». É só coisas más. O Francisco Moita Flores explicou que o pior de tudo são os «blogs terroristas» e o «branqueamento de capitais, tráfico de armas e explosivos» que se fazem «através de mensagens cifradas» em blogs. Mas disse logo à partida de onde lhe veio esta ideia. É que ele “nem abre” a Internet. Talvez com medo que lhe caia uma bazuca no colo.

Surgiu várias vezes a ameaça à democracia. O Francisco Moita flores avisou que «A democracia, em nome dos valores da democracia, expõe-se à sua auto destruição». Uma reportagem afirmava que a Internet «pode ser uma arma da democracia» mas também podia ser usada contra a democracia. O Miguel Sousa Tavares defende que o «acesso à Internet» deve depender de «uma pré-identificação junto ao servidor». Isto porque alguém o acusou de plágio num blog anónimo. Para que ninguém ofenda o Miguel é imprescindível que todos que tenham «acesso à Internet» sejam devidamente identificados. E esperemos que o Miguel nunca descubra que alguém o ofendeu por telefone, por carta ou a falar na rua. Senão temos que mostrar o BI cada vez que abrimos a boca.

A Internet não é uma arma da democracia nem um perigo para a democracia. A Internet é uma tecnologia que permite a cada um comunicar com quem o queira ouvir e a liberdade de comunicar não ameaça a democracia. É a democracia. Ameaça é restringir este direito, uma ideia popular entre “figuras públicas” de meia idade mas que é contrária à democracia e fruto de uma distinção ultrapassada entre privado, pessoal e público.

Antes da Internet o pessoal e o privado eram o mesmo. Era aquilo que se fazia fora do olhar público. O que se publicava era impessoal, de natureza comercial ou profissional. Jornais, discursos, documentários e assim por diante. Os diários eram pessoais e privados. Neste contexto fazia sentido regular a expressão pública como acto profissional distinto do âmbito pessoal. Códigos deontológicos, estatuto de jornalista, penas agravadas para a calúnia ou devassa pública da vida privada e assim por diante.

Mas hoje temos que distinguir estes três aspectos de forma diferente. O privado guardamos para nós ou para aqueles que nos são mais chegados. No que é público há umas coisas de natureza comercial ou profissional e outras de natureza pessoal. Muitos blogs, por exemplo. Apesar de acessíveis ao público, textos como este não têm fins comerciais ou profissionais. Servem apenas o exercício da minha liberdade pessoal de expressão. Não faz sentido regular um blog pessoal como um jornal ou canal de televisão porque escrever um blog é um acto pessoal. Mesmo que seja acessível ao público. Por muita gente que me visite ou que eu deixe cá entrar a minha casa será sempre um espaço pessoal. Aqui o Estado tem menos autoridade legal que num lugar de negócio.

Por isso é treta que se deva legislar para impedir expressões pessoais difamatórias ou ofensivas. Faz algum sentido quando se ofende ou difama por dinheiro, e há muitos blogs que são negócios e devem ser tratados como negócios. Mas não faz sentido pôr a lei a perseguir quem ofende a título pessoal. Nesses casos a lei só devia intervir se houvesse dano material e não apenas porque o queixoso se ofendeu. Se perdeu o emprego por causa de uma calúnia merece ser indemnizado. Se amuou porque os meninos na escola lhe chamaram nomes, azar. Cresça que vai ver que passa.

É preciso mudar a mentalidade. Não de quem escreve, mas de quem lê e ouve. Tal como ninguém ligaria a um anónimo que, berrando na rua, acusasse de plágio o Miguel Sousa Tavares, ninguém, nem sequer o Miguel, deveria ligar quando um anónimo escreve essa acusação num blog. O problema é assumir que o que é publicado ou vem de “figuras públicas” tem autoridade por muito infundado ou disparatado que seja. É uma premissa falsa e assim que maioria perceber que afirmações infundadas não merecem confiança, venham de onde vierem, resolve-se o problema dos insultos e das calúnias na Internet.

Infelizmente esta solução não interessa às “figuras públicas” que ficariam sem emprego se tivessem que fundamentar o que proferem como opinadores profissionais.
http://ktreta.blogspot.com/

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