sábado, julho 12, 2008

As metamorfoses do desespero

Ninguém tem nada a ver se o ministro A sofre de flatulência e o B de mau hálito. Nem uma coisa nem outra servem para avaliar políticas. Também ninguém tem nada a ver se a ministra da educação é uma pessoa de gargalhada fácil ou se usa poses pussycat na sua vida privada. Ninguém tem nada a ver porque as pessoas são-no em contexto, e os ministros, mesmo que não pareça, são pessoas, e porque o liberalismo nos deixou essa cisão entre o público e o privado, para o bem e para o mal.
Por isto, e por outras tantas coisas, a última entrevista de Maria de Lurdes Rodrigues ao Expresso roça o sórdido.
1. Sobre a forma
Que a entrevista ensaia uma desconstrução da imagem arrogante e autoritária da ministra é óbvio e percebe-se porquê: exigências da sobrevivência de uma política.
A Ministra que aceitou a missão de nos próximos anos reduzir em mais de 1/3 as despesas com o pessoal docente, que pactuou com estudos mentirosos sobre o absentismo docente para legitimar a machadada, fora os estudos do professor Freire que inspiram o estatuto da carreira, e que conseguiu pôr 100 mil professores e professoras na rua, precisa, afinal, da graça de todos. Pergunte-se, então: estas fotografias destinam-se a seduzir e tranquilizar quem?
2. Sobre o conteúdo.
Apenas dois aspectos que testam o cenário de ópera bufa e o apurado trabalho de bastidores.
Confrontada com a sua afirmação de que em Portugal se chumba muito, o que sai caro ao país, a ministra desmente. Desmente e reafirma a seguir: não sai caro, mas afinal sai. Uma ministra de educação que defendesse a escola pública só teria de explicar aos cidadãos contribuintes: quando os vossos filhos chumbam na escola, vocês e os demais estão a pagar reprovações, na maior parte dos casos, à toa.
Provado que a maioria das crianças e jovens não ganha nada por levar no ano seguinte, ou mesmo no outro a seguir, mais do mesmo, além do reforço das baixas expectativas e auto-estima, a pergunta só podia ser: então, o que tem o ministério para oferecer às crianças e jovens que não obtêm sucesso, mesmo quando a maioria dos professores e professoras faz o que sabe para que o tenham? Nada. O governo do PS nada fez para construir uma sociedade responsável pelo futuro, nem ao nível do que e do como se aprende, nem ao nível de redes de prevenção e protecção dentro e fora da escola.
Mas a pergunta de eleição surge logo a seguir: "Como podemos ter confiança num sistema de ensino onde a quase totalidade dos professores não quer ser avaliada?" A Ministra não desmente nem confirma o embuste da pergunta, e dá-se ao luxo de andar às voltas sobre a avaliação como uma exigência da história. E não precisa mesmo de fazer mais nada porque a sua avaliação vai matar dois coelhos de uma cajadada só: reduzir os custos com o pessoal docente e mudar os dados do insucesso.
É preciso que se saiba que a pressão para o sucesso administrativo é uma realidade nas escolas dos e das áulicas da ministra. Quando um conselho executivo e um conselho pedagógico aprovam que, à revelia do parecer de departamentos e de grupos disciplinares, a meta do sucesso de uma escola é 90% (e até aqui nada de necessariamente mau, porque não pode perdurar a conivência mole com o insucesso), mas que no item dos resultados escolares das fatídicas fichas o professor só tem "excelente" se ultrapassar em 7% a meta definida, está a fazer o quê? Agora imagine-se esta perversão nas mãos de um director, e o filme de terror aprimora-se.
Professores e professoras terão de fazer do próximo ano um ano de luta pela preservação da escola pública e não poderão permitir que aquilo que é responsabilidade do Estado, das famílias, da escola, assente sobre a sua pele.
O insucesso e o abandono não são responsabilidade individual de nenhum professor ou professora. A avaliação só pode recair nas escolas como um todo, inserido num contexto. Elas devem ser responsabilizadas, na parte que lhes cabe, depois de terem levantado a realidade das crianças e jovens para as quais trabalham e depois de terem exigido aos poderes os meios de que carecem para ultrapassar os problemas. Só aí é que cada escola será responsabilizável pelo que não fez e podia ter feito pela qualidade do sucesso dos seus alunos e alunas.
Cecília Honório
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