domingo, julho 27, 2008

A auto destruição do capitalismo da dívida (II)

Calma, o Gabinete de Supervisão Federal de Empresas Habitacionais (Office of Federal Housing Enterprise Oversight, OFHEO), o regulador destas GSEs, declarou-as adequadamente capitalizadas nos termos regulamentares. As autorizações existentes do Congresso para as companhias dão ao Tesouro autoridade para comprar até US$2,25 mil milhões em cada um dos seus títulos no caso de um possível incumprimento, contra um passivo total de mais de US$5 milhões de milhões. Isto equivale a uma injecção de saldo líquido de menos de meio centavo por cada dólar de passivo.

Os credit-default swaps atados à dívida principal da Fannie Mae e do Freddie Mac ascenderam de 35 pontos base para 70 pontos base desde 1 de Maio de 2008. Um ponto base é uma percentagem de 0,01. O custo para proteger a dívida subordinada das companhias do incumprimento cresceu a uma taxa mais rápida. Aquela dívida é classificada como Aa2 pelo Moody's. Os credit-default swaps nas notas subordinadas à Fannie Mae saltaram de 103 pontos base para 190 pontos base desde 1 de Maio, ao passo que contratos nas notas subordinadas ao Freddie Mac ascenderam de 103 pontos base para 190 pontos base.

A mediana do credit-default swap em dívida classificada como Aaa pelo Moody's era 26 pontos base em 8 de Julho. Ela estava a 76 pontos base da dívida classificada como A2 e a 180 pontos base da dívida classificada como Baa3, o mais baixo grau na classificação de investimento. Os custos provavelmente reflectem riscos de terceiros, ou o risco de que o banco ou a firma de títulos fracassem no outro extremo do contrato. Para a maior parte das companhias, o risco de terceiros incorporado nos custos em credit-default swap não será tão pronunciado porque o risco de um incumprimento sobre a dívida subjacente seria maior do que do banco concedendo a protecção. No caso do Fannie Mae, do Freddie Mac e de outras companhias com classificações Aas, é maior o risco de incumprimento por bancos classificados mais baixo.

Os credit-default swaps são instrumentos financeiros baseados em títulos e empréstimos que são utilizados para especular sobre a capacidade de uma companhia para repagar dívida. Eles pagam o valor facial do comprador em troca dos títulos subjacentes ou o cash equivalente se um tomador de empréstimo falhar no respeito aos seus acordos de dívida. Uma ascensão indica deterioração na percepção da qualidade do crédito; um declínio, o oposto. Um ponto base num contrato que protege uma dívida de US$10 milhões durante cinco anos é o equivalente a US$1000 por ano.

Em 11 de Janeiro de 2006, no Asia Times Online, escrevi em Of debt, deflation and rotten apples :
Nos EUA, onde a titularização de empréstimos é generalizada, os bancos são tentados a empurrar empréstimos arriscados passando-os no risco de longo prazo para investidores não bancários através da titularização de dívida. Os credit-default swaps, uma forma relativamente nova de contrato derivativo, permite aos investidores protegerem-se (hedge) contra pools de hipotecas titularizadas. Este tipo de contrato, conhecido como títulos apoiados por activos (asset-back securities), tem sido limitado ao mercado de títulos corporativos, de hipotecas convencionais de casas e empréstimos para automóvel e cartões de crédito. Em Junho último [de 2005], um novo padrão de contrato começou a ser comerciado por hedge funds que apostam sobre títulos de situação líquida de casas apoiados por empréstimos a taxa ajustável para tomadores subprime, não como estratégia de hedge mas como centro de lucro. Quando negócios na baixa (bearish trades) são lucrativos, suas apostas podem facilmente tornar-se profecias auto-cumpridoras ao disparar um ciclo vicioso declinante.
A autorização dos EUA e o papel das GSEs em garantir cerca de 46% dos US$12 milhões de milhões de hipotecas ainda não pagas leva a expectativas de que o governo sustentaria a dívida das agências. A Standard & Poor's assinalou a dívida nas classificações de topo, citando o "explícito e implícito apoio" do governo às agências.

O efeito do perigo moral

A salvação do Bear Stearns Co. arranjada pelo Federal Reserve em Março indicou ao mercado que o governo não permitiria às GSEs fracassarem ou não cumprirem as suas dívidas. É prova clara do efeito do perigo moral (moral hazard) sobre mercado financeiro com a salvação de uma instituição. Com toda a exposição que todas as instituições bancárias e não bancárias e os bancos centrais têm ao incumprimento da dívida da Fannie e do Freddie, o efeito propagador através de todo o sistema financeiro seria inacreditável se lhes fosse permitido fracassarem. Foi também prova clara da doutrina do "demasiado grande para fracassar".

O risco que cerca a Fannie Mae foi reflectido na mais recente venda das GSEs de US$3 mil milhões de notas de referência (benchmark notes) a dois anos a rendas mais elevadas do que nas taxas de referência em ofertas anteriores. As notas a 3,25%, que vencem a 12 de Agosto de 2010, com preço para render 3,27%, ou 74 pontos base mais do que Títulos do Tesouro comparáveis. A companhia vendeu em Junho de 2008 US$4 mil milhões de notas a 3% com vencimento a 12 de Julho de 2010, com preço para render 3,036%, ou 65 pontos base mais do que os Títulos do Tesouro.

O governo tem estado a contar com a GSEs para ajudar a reviver o mercado hipotecário da habitação. O Congresso levantou restrições ao crescimento sobre as companhias, facilitou suas exigências de capital e permitiu-lhes comprar as maiores, as chamadas hipotecas jumbo, para estimular a procura por empréstimos habitacionais quando os prestamistas privados fogem do mercado. A decisão de utilizar a Fannie Mae e o Freddie Mac como parte de um plano de estímulo habitacional de US$300 mil milhões fortaleceu as percepções do apoio do governo às GSEs. Sua fatia nas novas hipotecas conformadas, ou empréstimos de US$417 mil ou menos, quase duplicou para 81% no primeiro trimestre de 2008, segundo o Office of Federal Housing Enterprise Oversight (OFHEO), o regulador. Parece que os carros de bombeiros apanharam um incêndio no seu caminho para o local do incêndio.

Kenneth Bruce, analista da Merrill Lynch, disse um relatório que as "instituições financeiras altamente alavancadas" teriam crédito antes de impostos em relação às perdas de US$45 mil milhões, sugerindo que a Fannie e o Freddie estão em vis de ter de levantar mais capital, mas o mercado não pensa que eles sejam capazes de levantar capital quando necessitarem a um custo com o qual possam conviver. O New York Times relatou na noite de 13 de Julho de 2008 (domingo) haviam aquecido quanto aos EUA assumirem o comando do Freddie Mac e da Fannie Mae antes da abertura de mercados na Ásia. A estrutura que está a ser contemplada é "conservadora", o que é permitido sob uma lei de 1992 que essencialmente limparia a situação líquida das duas GSEs permitindo que os seus empréstimos sejam geridos.

Conservadorismo é outro termo imaginoso para nacionalização. O esquema permite ao governo pretender que os passivos das GSEs não são seus mesmo depois de assumi-los. Seria necessário um veredicto do Office of Federal Housing Enterprise Oversight, o regulador das empresas, de que as GSEs estão "criticamente subcapitalizadas" para a aplicação conservadora. Até agora, o OFHEO tem enviado mensagens opostas ao público. Ele terá de anunciar uma "correcção" de 180 graus para mudar rapidamente do "adequadamente capitalizado" para "criticamente subcapitalizado" a fim de a proposta do governo funcionar.

Mas ao contrário de 1933, nos dias do New Deal quando o financiamento do défice era uma opção para ressuscitar a economia porque o governo estava relativamente livre de dívida, os EUA em 2008 já estão profundamente endividados, tendo operado com défice de financiamento num tempo de boom durante mais de duas décadas. Estimativas sugerem que por cada 10% de declínio no valor dos activos do Freddie/Fannie, resultaria uma perda de US$150 mil milhões, o equivalente do custo da Guerra do Iraque até à data. E a Fannie perdeu 80% da capitalização de mercado e o Freddie perdeu 70% até à data.

Ascensão das obrigações governamentais

Ao assumir os passivos conjuntos de US$5 milhões de milhões das GSEs, o total das obrigações do governo dos EUA dispararia de US$9,5 milhões de milhões para US$14,5 milhões de milhões. Isto elevará a dívida nacional per capita de US$31250 para US$47650. A dívida acrescida é uma vez e meia o orçamento fiscal de 2008 proposto pela administração Bush, de US$3,1 milhões de milhões. Se bem que as agências possuam activos relativos à habitação que grosso modo atinge seus passivos, o mercado habitacional ainda em colapso torna o seu valor incerto. Isto inevitavelmente forçará o dólar a cair e as taxas de juros do dólar a aumentar. Enquanto isso, a tempestade está a impedir ou mesmo paralisar as GSEs no seu papel crucial de bóia de salvação do mercado habitacional.

Um relatório do princípio de Julho de um analista do Lehman Brothers, um banco de investimento que está ele próprio à beira do colapso, provocou o pânico do mercado acerca das GSEs. A Lehman, um grande actor no mercado de títulos apoiados por hipotecas, perdeu até 20% num mesmo dia comercial com a conversa de que a PIMCO, o maior comercializador do mundo de títulos, não estava mais a efectuar negócios com a firma da Wall Street. A seguir, William Poole, um respeitando ex-chefe do St. Louis Federal Reserve, que passou a conselheiro privado de investimento a partir de 1 de Julho de 2008, observou que a Fannie e o Freddie estava tecnicamente insolventes no primeiro trimestre deste ano numa base marcação a mercado (mark-to-market). Tal informação não era novidade – num discurso em 2006, Emil Henry, então secretário do Tesouro assistente, comparou um fracasso de uma das companhias GSE a "um tiro único que desencadeia uma avalanche" – e não tinha influência sobre a solvência das GSEs em termos regulamentares. Mas a nova inquietante atenção sobre dois líderes do mercado em escala esmagadora num clima incerto lançou os mercados financeiros numa rotação descendente.

A Fannie e o Freddie foram os inventores originais do título apoiado por hipoteca, uma causa chave da bolha habitacional e da sua deflação subsequente. Estas GSEs receberam crédito e reconhecimento por sua engenhosidade em fragmentar o risco e em revender títulos apoiados por hipotecas a compradores com variados apetites para o risco no mercado global. Este foi o segredo por trás do boom habitacional nos EUA e a ideia que permitiu o mercado das finanças estruturadas. Alan Greenspan, antigo presidente do Federal Reserve, louvou-o incessantemente como um feito engenhoso que muito fez para ampliar a propriedade de lares. Mas o desenvolvimento enfraqueceu a vigilância da qualidade dos empréstimos por parte dos originadores das hipotecas.

Greenspan aceitava o risco como parte do fenómeno natural de "maus empréstimos serem feitos em bons tempos". O apoio das GSEs permitiu a titularização de hipotecas "ninja" (no income, no job or assets), empréstimos que ninguém compraria se não fossem garantidos pelo governo. Portanto a falha não jaz nos originadores das hipotecas, pois eles não seriam capazes de emitir hipotecas duvidosas a menos que houvesse um mercado para elas. O abuso das GSEs da sua alegada garantia governamental tornou a disciplina do mercado inoperante, permitindo ao sistema conduzir-se como um motorista bêbado destinado a chocar-se com um penedo. Devido à sua complexidade e distribuição ampla, quando dívidas tituladas deixam de ser cumpridas, a reestruturação é quase impossível. Não há extintor de incêndio efectivo uma vez que o fogo começa e rapidamente engolfa todo o mercado.

Quanto mais cedo a necessidade de uma reestruturação sistémica for reconhecida e efectuada, melhor seria para a saúde a longo prazo da economia, ou o futuro do próprio capitalismo de mercado regulamentado. Contudo, soluções híbridas desde paliativos a documentos sobre falhas financeiras sísmicas estão a ser propostas para permitir a evasão de responsabilidade e para vantagens políticas num ano eleitoral.

O secretário do Tesouro, Henry Paulson, em 6 de Julho deste ano disse que o governo apoiaria as GSEs "na sua forma actual na medida em que executem a sua importante missão". No domingo, o Tesouro emitiu uma declaração a indicar que
seu foco principal era ainda o apoio à Fannie e ao Freddie na sua forma actual. A Fannie Mae e o Freddie Mac desempenham um papel central no nosso sistema financeiro da habitação e devem continuar a assim fazê-lo na sua actual forma como companhias possuídas por accionistas. Seu apoio ao mercado habitacional é particularmente importante quando trabalhamos na actual correcção da habitação. A dívida das GSE é possuída por instituições financeiras de todo o mundo. Seu fortalecimento contínuo é importante para manter a confiança e a estabilidade no nosso sistema financeiro e nos nossos mercados financeiros. Portanto devemos dar passos para corrigir a actual situação quando nos movemos para uma estrutura regulatória mais forte.
A reforma regulatória, se bem que necessária, não pode ser retroactiva. Há US$5 milhões de milhões de instrumentos de dívida activos subscritos sob uma supervisão regulatória problemática que precisam ser tratados. Expressões de apoio à "forma actual" que se provaram insatisfatórias em grande medida, uma nova linha de crédito para apoiar empréstimos maus e uma proposta injecção ilimitada de capital pelo governo que certamente enfrentaria oposição do Congresso é uma receita para sair da situação de qualquer forma através de uma grande ruptura estrutural.

Apoio governamental

A capacidade das GSEs para levantarem novo capital e crédito de fontes privadas está totalmente dependente do apoio governamental. Portanto o plano para apoiar estas GSEs em aflição será muito mais custoso se tiver de ser feito através de incentivos ao lucro privado. O resultado provavelmente será uma nova contracção na oferta, e aumento no custo, das finanças hipotecárias – mais uma vez diminuindo as oportunidades de uma recuperação precoce no mercado habitacional e na economia em geral. O incentivo ao lucro privado a esmagar o interesse público pôs as GSEs em dificuldades. Como se pode esperar que mais incentivos ao lucro privado as tire das dificuldades?

O Fed anunciou que permitirá à Fannie Mae e ao Freddy Mac tomarem emprestado no seu guichet de desconto, aberto normalmente apenas para bancos comerciais e desde Março de 2008 também para bancos de investimento como parte da salvação do Bear Stearns. De acordo com uma proposta em três partes do Tesouro, também será dado ao Fed um papel consultivo no estabelecimento de requisitos de capital e de outros padrões regulatórios para a Fannie e o Freddie, como parte de uma evolução destinada a torná-lo o principal regulador e fiscalizador do sistema financeiro do país.

O antigo presidente do Fed, Paul Volcker, exprimiu a preocupação de que ao expandir o seu papel de prestamista de último recurso a instituições além dos bancos comerciais o Fed possa ter aberto para si próprio perigos de risco moral (moral hazard) uma vez que grandes instituições podem acreditar que o seu comportamento aventureiro será caucionado pelo Fed.

Com o Fed, cuja perspectiva tende a alinhar-se com a dos seus bancos membros, assumir o comando de muitos dos poderes regulatórios da Security Exchange Commission, cujo mandato original era proteger o interesse de pequenos investidores, o interesse público pode deparar-se mais uma vez com uma protecção mais diminuída.

Mas o mercado financeiro mudou irreversivelmente com a emergência das finanças estruturadas nas quais a titularização de empréstimos veio a tomar empréstimos que outrora tinha de permanecer nos balanços dos bancos emissores mas agora são titularizados e vendidos por correctores a investidores institucionais de todo o mundo. O incumprimento de um grande corrector, tal como a Fannie e o Freddie, será tão danoso quanto o fracasso de um grande banco e provocará um colapso catastrófico do mercado de crédito.

Em 1968, o então presidente Lyndon Johnson, como parte do seu programa Grande Sociedade, transformou a Fannie numa companhia possuída por accionistas no âmbito de uma política nacional de habitação para fazer o capitalismo financeiro financiar a nacionalização da habitação. Era o princípio de um socialismo corporativo de mercado em nome da democracia económica populista. O público só podia beneficiar-se se os interesses institucionais corporativos e financeiros pudessem antes lucrar. E o público deve pagar se o capitalismo de mercado fracassar de modo sistémico, absolvendo as perdas de corporações e instituições financeiras instáveis.

Em 1970, a indústria das caixas económicas, invejando o enorme lucro obtido pelos bancos comerciais e de investimento com a Fannie Mae, pediu e recebeu aprovação do Congresso para uma GSE sua e o Congresso criou o Freddie Mac. Tal como o programa de Renovação Urbana da década de 1950, as GSEs serviram uma coligação de interesses que incluíam liberais que pretendiam ajudar famílias de baixo rendimento, promotores imobiliários que queriam procura garantida, construtores de casas que queriam um mercado garantido, políticos locais que queriam receitas fiscais, bancos que queriam empréstimos lucrativos livres de risco e congressistas que queriam contribuições de campanha dos prestamistas hipotecários.

Demasiado bom para ser verdade

Os eleitores de baixo rendimento inicialmente ficaram deslumbrados com as novas casas que podiam adquirir sem dinheiro de entrada e com pagamentos mensais financiados com empréstimos imobiliários quando os preços das casas subia. Eles actuaram como o Pinóquio numa Ilha do Prazer – que logo seriam transformados em asnos a serem vendidos para trabalhar em minas de sal. As instituições financeiras estavam a confortar as suas dores de consciência quanto a retirar empréstimos dos seus balanços já que o faziam desculpando-se com a ideia de que estavam a tornar hipotecas de baixo custo disponíveis para milhões de compradores de casas. Economistas neoliberais estavam a celebrar o milagre estado-unidense do capitalismo em massa que não precisa de capital.

O programa de transferir empréstimos insustentáveis para investidores sem rosto beneficiou também especuladores de terra, construtores de casas, agentes imobiliários, banqueiros de investimento, financeiros estruturados e fornecedores de mobiliário. Uma vez que o propósito principal do programa GSE era ajudar compradores de casas de rendimento baixo e moderado, a oposição era considerada não democrática.

Mas toda a gente sabe que as GSEs enfrentam um risco de taxa de juros nas suas hipotecas a longo prazo se as taxas ascenderem durante o período do empréstimo. Para protegerem-se dos riscos das taxas de juros, as GSEs utilizaram derivativos para proteger-se contra esse risco.

O OFHEO foi criado em 1992 pelo House Banking Committee presidido pelo populista Henry Gonzalez com poder mínimo para regular as duas GSEs gigantes com o argumento de que estas GSEs eram instituições destinadas a apoiar a política nacional de um país de proprietários de casas através de empréstimos habitacionais acessíveis e deveriam ser isentas da regulação das instituições comerciais.

O problema desta boa intenção política era que durante a era de ascendência neoliberal, a ligeiro ambiente regulatório era utilizado para negar uma lei económica mais fundamental: a necessidade de aumentar o rendimento do trabalhador para cumprir os pagamentos da hipoteca, subsidiados ou não.

As GSEs tiveram êxito financeiramente porque elas combinavam o apetite do sector privado pelo lucro com o acesso ao crédito apoiado pelo governo a baixas taxas de mercado. Era um meio de nacionalizar a habitação através do capitalismo de livre mercado. O problema era que a manipulação financeira não podia substituir a necessidade de adequado crescimento do rendimento. A divergência entre o rendimento e o preço do activo é a definição de uma bolha financeira. As pessoas estavam a comprar casas com crédito barato a preços que o seu rendimento não podia permitir. Quanto mais os preços das casas subiam devido ao crédito barato, mais os seus proprietários caíam na armadilha da dívida.

Mas em todas as actuais conversas acerca da descoberta de caminhos para lidar com a crise, não se ouve nem uma única voz nos círculos oficiais acerca da necessidade de aumentar o rendimento do trabalhador. Ao invés disso, falsas esperanças de estimulantes através de descontos em impostos efectuados uma única vez são saudados como a grande mágica.

Subitamente neste Verão, o capital relativamente anémico da Fannie e do Freddie tornou-se uma séria preocupação para o mercado. Numa semana em Julho, as acções da Fannie mergulharam para US$10,25, uma baixa de 74% em 2008. As acções do Freddie também afundaram, fechando a US$7,575, uma perda de 77% este ano.

Mesmo quando os investidores debandam destas acções sovadas, os sicofantas do capitalismo de livre mercado em Washington, conduzido pelo secretário do Tesouro Paulson e pelo presidente do Federal Reserve Ben Bernanke, apressam-se a tranquilizar o mercado, destacando que os reguladores dos gigantes das hipotecas haviam confirmado que as companhias estavam "adequadamente capitalizadas", tentando dar a impressão de que os reguladores seguravam o problema firmemente nas mãos e que nenhum novo capital era preciso para estas GSEs.

Mas estes dois líderes perderam muita credibilidade desde Agosto de 2007 quando apregoaram uma lenga-lenga semelhante a dizer que os problemas no mercado hipotecário estavam "contidos" nos empréstimos subprime e não se difundiriam mais além. O presidente da SEC, Christopher Cox, tentou acalmar investidores dizendo-lhes que o Bear Stearns passara numa revisão financeira, poucos dias antes pedira um plano de salvação arquitectado pelo Fed junto ao JP Morgan Chase com empréstimos do Fed.

O que está em risco é mais do que a adequação do capital. A credibilidade da equipe com a responsabilidade pelo sistema monetário do país e do seu mercado financeiro está a rumar para o colapso. Infelizmente, é muito mais fácil perder credibilidade do que recuperá-la. (Ver America's Untested Management Team Asia Times Online, June 17, 2006.)

Ansiedade recorrente

A ansiedade acerca dos passivos da Fannie e do Freddie de mais de US$5 milhões de milhões a ficar demasiado grande para a autoridade de financiamento do Federal Reserve, uma linha de crédito de uns miseráveis US$2,5 mil milhões, tem sido uma preocupação recorrente em muitos lados nestes últimos anos. Mesmo depois que ambas as GSEs foram descobertas infestadas com irregularidades contabilísticas (o Freddie Mac em 2003 e a Fannie Mae em 2004), o Congresso fracassou na sua actuação – excepto para fazer com que o regulador requeresse às GSEs possuírem mais 30% de capital do que o mínimo anteriormente requerido, limitando com efeito a sua capacidade para comprar hipotecas quando a bolha habitacional aproximava-se do pico.

Calma, foi permitido à Fannie e ao Freddie posarem como companhias de alto crescimento cujas acções eram bastante seguras para viúvas e órfãos. A fatia de mercado das GSE caiu para 45% no pico da bolha habitacional. Após o estouro da bolha, ascendeu a 68% no primeiro trimestre de 2008.

Depois de as vazias tranquilizações oficiais terem deixado de convencer o mercado porque estava claro para todos verem que os passivos directos e garantidos das duas GSEs eram quase 65 vezes o seu capital regulamentar no fim do primeiro trimestre de 2008, a prioridade a curto prazo era restaurar a confiança evanescente dos compradores da dívida da Fannie e do Freddie, muitos dos quais são estrangeiros. Ao aumentar a linha de crédito das GSEs e pressionar por autoridade para injectar capital fresco se necessário, o proposto plano do Tesouro parece ser destinado a acalmar temores de incumprimento generalizado de terceiros e fracasso de mercado. O Freddie não parecia ter problemas sérios ao descarregar US$3 mil milhões de papel novo na segunda-feira 14 de Julho, embora corresse o rumor de ter sido preciso persuadir bancos a comprá-lo.

O maior problema para Washington é que simplesmente estabilizar a Fannie e o Freddie não é suficiente. Com os bancos americanos seriamente combalidos pela crise de crédito, as GSEs, que possuem ou garantem 22% dos US$24,3 milhões de milhões de dívidas activas tomadas como empréstimo pelas famílias americanas e pelo sector não financeiro, são uma fonte importante de crédito. Mas o mercado está claramente inconfortável com a incapacidade das GSEs para manter seus balanços super intumescidos. As opções são ou contrair os balanços drasticamente, e assim exacerbar a crise de crédito, ou procurar uma injecção maciça de capital novo, tanto uma como outra exigindo acção do governo numa escala sem precedentes.

Apesar destas medidas ad hoc, as quais podem ou não recebe aprovação do Congresso, todo o mundo sabe que a capacidade de crédito está a encolher drasticamente no mercado. Há rumores de que os EUA estão a pressionar bancos centrais estrangeiros a adquirirem mais dívida GSE, mas o mercado está inundado com temores de novas crise antes que o mercado habitacional se recupere. E o mercado habitacional jaz em estado de coma, em cuidados intensivos com um tanque de oxigénio de novo crédito prestes a esvaziar-se.

Quando o mercado habitacional entra em colapso, ambas as companhias GSE estão a relatar perdas pronunciadas. Mas o colapso das hipotecas subprime também tornou as GSEs mais importantes do que nunca para a manutenção do sector financeiro da habitação. Uma vez que os mercados de crédito estão presos, a Fannie e o Freddie recuperaram seu papel central nas finanças hipotecárias depois de perderem uma fatia significativa de mercado para bancos de investimento durante o boom habitacional. Eles emitiram a vasta maioria dos títulos hipotecários vendidos nos últimos seis meses porque os investidores perderam a confiança em negócios colocados juntos por grandes bancos de investimento.

Em Fevereiro de 2008, espicaçado pelo Tesouro, reguladores federais anunciaram estarem a facilitar restrições sobre a concessão de empréstimos pela Fannie e o Freddie. Então, em 19 de Março, o governo federal anunciou que estava a facilitar aquelas restrições num esforço para acalmar a tempestade que afligia os mercados hipotecários. Responsáveis disseram que a mudança podia permitir às duas GSEs investirem mais US$200 mil milhões em hipotecas.

Alarmada pela erosão aguda da confiança do mercado nas duas GSEs do país, as maiores companhias financeiras de hipotecas, no domingo 13 de Julho a administração Bush anunciou planos para pedir ao Congresso que aprovasse um pacote de resgate completo que daria aos responsáveis o poder de injectar fundos ilimitados nas companhias sitiadas através de investimentos e empréstimos.

Num anúncio separado, o Federal Reserve disse que a pedido do Tesouro disponibilizaria um dos seus programas de empréstimos temporários a curto prazo no guichet de desconto para as duas GSEs, "para promover a disponibilidade de crédito hipotecário habitacional durante um período de stress em mercados financeiros". O programa para as GSEs finalizaria quando o Congresso aprovasse o proposto plano do Tesouro.

No domingo o secretário do Tesouro Paulson anunciou dramaticamente os passos a serem dados pelo Tesouro: "O presidente pediu-me para trabalhar com o Congresso para activar este plano imediatamente. A Fannie Mae e o Freddie Mac desempenham um papel central no nosso sistema financeiro habitacional e devem continuar assim na sua forma actual como companhias possuídas por accionistas. Seu apoio ao mercado habitacional é particularmente importante quando trabalhamos para a correcção da actual situação habitacional".

O paradoxo de Paulson

Se bem que responsáveis em sucessivas administrações, tanto republicanas como democratas, tenham durante muitos anos negado reiteradamente que os milhões de milhões de dólares de dívida emitidos pela Fannie e pelo Freddies fossem garantidos pelo governo, o pacote de Paulson, se adoptado, traria o Tesouro mais perto do que nunca de expor os contribuintes a novos passivos potencialmente enormes. Espera-se que as duas GSE enfrentem novos perdas significativas este ano pois a onda de arrestos de habitações continua e aumenta. Paulson parecia sugerir que não há escolha excepto a intervenção do governo. O plano proposto, exigindo que o Congresso desse autoridade ao Tesouro para comandar fundos ilimitados para estabilizar as GSEs, está baseado na esperança de que a própria disponibilidade de fundos ilimitados tornaria desnecessário utilizá-los. O investimento os elementos de concessão de empréstimos do plano proposta são para dois anos.

Durante o fim de semana, responsáveis do Tesouro procuraram garantias de firmas da Wall Street de que o leilão de segunda-feira do Freddie Mac de US$3 mil milhões de dívida a curto prazo decorreria sem obstáculos. Apesar de US$3 mil milhões ser uma quantia relativamente pequena para uma instituição do porte do Freddie, responsáveis disseram que não queriam arriscar-se nem mesmo a um pequeno passo em falso que poderia disparar um novo round de problemas. Apesar de garantias repetidas por altos responsáveis de que as companhias tinham cash adequado para aguentar a actual tempestade financeira, a Fannie e o Freddies sofreram uma contundente estouro de confiança na semana anterior. Em resultado, o Freddie foi confrontado com uma oferta de dívida incerta na segunda-feira. Se a Fannie e o Freddie falhassem, US$5,3 milhões de milhões em dívida hipotecária ficariam comprometidos. Como isto aconteceu, a oferta correu suavemente mas todos sabiam que não era um mercado normal.

O Freddie Mac continuou a tentar levantar capital junto a investidores privados mesmo após um plano de resgate do governo, dele e da sua companhia irmã Fannie Mae, ter sido anunciado na semana anterior, indicando a preocupação de que o plano do governo possa ser atrasado no Congresso. Na sexta-feira, 18 de Julho, o Freddie Mac arrumou um dos últimos obstáculos para levantar novo capital através de uma planeada oferta de acções de US$5,5 mil milhões quando recebeu aprovação para registar-se com reguladores de títulos estado-unidenses. Contudo, a capacidade do Freddie Mac para atrair capital muito necessário de novos e existentes accionistas tem sido potencialmente diminuída pela possibilidade de um futuro interesse do governo que possa colocar restrições ao negócio. Também há pouca clareza respeitante ao lugar na estrutura de capital que governo pode investir, e quão diluente seria um tal movimento para os accionistas existentes.

O plano de resgate do governo, que daria ao Tesouro poderes ilimitados até o fim de 2009 para aumentar sua linha de crédito à Fannie Mae e ao Freddie Mac e investir nas suas acções, encontrou algumas fortes resistências vocais em audiências no Congresso durante a semana anterior a 18 de Julho.

Enquanto muitos esperam que o Congresso não tenha opção excepto aprovar o plano Paulson, uns poucos cépticos exprimem a sua oposição em audiências públicas. O senador Jim Bunnig, republicano do Kentucky, descreveu Paulson como "a pedir um cheque em branco ... para esta intervenção sem precedentes nos nosso mercados livres". Ele também prometeu tentar tudo para travar uma proposta que daria ao Federal Reserve novos poderes abrangentes destinados a proteger o abalado sistema financeiro do país. Bunning afirmou que o Federal Reserve "não pode ser confiado com o poder que já tem". Afirma ele que as políticas do Fed nos últimos anos contribuíram para desgraças económicas, incluindo inflação crescente, dólar declinante e a quebra habitacional.

"Ontem quando vi meu jornal, pensei ter acordado em França. Mas não, verifica-se que o socialismo está vivo e bem na América. O secretário do Tesouro está a pedir um cheque em branco para comprar tanto quanto a dívida da Fannie e do Freddie ou quanto de acções quiser. A compra do Fed dos activos do Bear Stearns era socialismo amador comparado com isto", trovejou o senador republicano contra o secretário do Tesouro do seu próprio partido. No discurso político estado-unidense, socialismo é uma palavra suja, embora o que Paulson proponha não seja de modo algum próximo do socialismo como é habitualmente entendido no resto do mundo, mas um esquema para utilizar fundos públicos para salvar o capitalismo da dívida ao frustrar o direito de fracassar no capitalismo de mercado.

Concessão de empréstimos predatórios

Ron Paul, congressista republicano do Texas, disse a Bernanke que o Federal Reserve é um "prestamista predatório". Mas ele não mencionou que por lei prestamistas predatórios perdem qualquer direito de cobrança.

A passibilidade do prestamista está corporificada numa lei comum e estatutária que cobre um vasto espectro de alegações respeitantes à concessão de empréstimos predatórios. Se um prestamista reconhecidamente empresta a um tomador que obviamente é incapaz de efectuar utilização benéfica razoável dos fundos, ou leva o tomador a assumir responsabilidades que obviamente estão para além da capacidade do tomador, o prestamista não só arrisca-se a perder o empréstimo sem recurso como também é passível pelo dano financeiro ao tomador provocado por tais empréstimos. Por exemplo: se um banco empresta a um cliente de conta poupança (trust account) que é menor, ou alguém que não tem experiência em negócios para começar um empreendimento arriscado que resultou na perda não só do empréstimo como da conta poupança, o banco pode ser obrigado pelo tribunal a devolver tudo ao cliente.

Nos Estados Unidos, embora o empréstimo predatório não seja definido por lei federal, e vários estados definam o empréstimo abusivo de diferentes formas, ele habitualmente envolve práticas que espoliam a situação líquida do possuidor da casa, ou a situação líquida de uma companhia, ou condenam o devedor a uma servidão perpétua. As práticas de concessão de empréstimos predatórios ou abusivos podem incluir efectuar um empréstimo a um tomador sem considerar a capacidade do tomador para repagá-lo, refinanciar repetidamente um empréstimo dentro de um curto período de tempo e cobrar altos pontos e comissões a cada refinanciamento, cobrar taxas e comissões excessivas a um tomador que se qualifica para taxas e/ou comissões mais baixas ofertadas pelo prestamista, ou impor novos termos injustificavelmente duros para girar (rolling over) uma dívida existente. A predação rompe as ligações entre a dotação de recursos agregados de uma economia e o consumo agregado, bem como entre a distribuição interpessoal de dotações e a distribuição interpessoal de consumo.

A opção de alguns em se tornarem predadores diminui o consumo agregado, tanto porque os recursos dos predadores são desperdiçados como porque os produtores sacrificam a produção ao reservarem recursos para se defenderem contra predadores. Grande parte da teoria económica do bem estar (welfare economics) baseia-se no conceito do Óptimo de Pareto, o qual assevera que os recursos são distribuídos de forma óptima quando um indivíduo não pode mover-se para uma posição melhor sem colocar algum outro numa posição pior. Numa sociedade global injusta, o Óptimo de Pareto perpetuará a injustiça.

Agora, há um estreito paralelo da maior parte das dívidas do Terceiro Mundo e dos pacotes de resgate do Fundo Monetário Internacional (FMI) com os exemplos acima de actividade predatória, onde refinados banqueiros internacionais concedem empréstimos para esquemas dúbios em países em desenvolvimento meramente para obterem as suas comissões (fees) e juros elevados, sabendo que "países não podem ir à bancarrota", como Walter Wriston, antigo presidente do Citibank, outrora proclamou.

A argumentação para o esquecimento da dívida do Terceiro Mundo contem grandes doses da passividade dos prestamistas e a concessão de empréstimos predatórios. A titularização da dívida permite a banqueiros predatórios transferirem o risco para mercados globais de crédito, socializando o dano potencial depois de desnatarem os lucros privatizados. A bolha habitacional foi criada em grande medida pela concessão de empréstimos predatórios sem qualquer responsabilidade do prestamista. A argumentação para o esquecimento da dívida ao Terceiro Mundo também é aplicável a tomadores de hipotecas de rendimento baixo e moderado nos EUA. Deixem-nos ouvir alguns compromissos proactivos dos presumidos candidatos de ambos os partidos políticos ao invés de retórica vazia de campanha populista.

Henry C. K. Liu
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

Sem comentários: