quarta-feira, julho 16, 2008

Crise Alimentar

Crise alimentar: “A maior demonstração do falhanço histórico do modelo capitalista”
“Se o governo não consegue baixar o custo de vida então tem simplesmente de sair de cena. Se a polícia e as tropas da ONU querem disparar sobre nós, está bem, porque ao fim e ao cabo, se não formos mortos pelas balas, vamos morrer de fome.” — Um manifestante em Port-au-Prince, Haiti
No Haiti, onde a maioria das pessoas consomem menos 22% das calorias mínimas necessárias para terem uma boa saúde, há quem reduza o sofrimento da fome comendo “biscoitos de lama”, feitos de uma mistura de barro, água, um pouco de óleo vegetal e sal. [1]
Entretanto, no Canadá, o governo federal está actualmente a pagar 225 dólares por cada porco morto numa verdadeira morte em massa de suínos, como parte de um plano para reduzir a produção da suinicultura. Os suinicultores, esmagados pelos preços baixos da carne de porco e por grandes custos na sua alimentação, responderam com tanto entusiasmo que a matança irá provavelmente esgotar os fundos disponíveis antes do final do programa em Setembro.
Alguns dos animais mortos poderão vir a ser dados a Bancos Alimentares locais, mas a maioria irá ser destruída ou transformada em alimentação para animais de estimação. Nenhum irá para o Haiti.
Este é o mundo brutal da agricultura capitalista – um mundo onde algumas pessoas destroem comida porque os preços são muito baixos e outros comem literalmente lixo porque os preços da comida são muito altos.
Preços recorde para os alimentos básicos
Estamos no meio de uma inflação mundial sem precedentes do preço dos alimentos que levou os preços aos níveis mais altos de há décadas. Os aumentos afectam quase todos os géneros alimentícios, mas em particular os alimentos básicos mais importantes – trigo, milho e arroz.
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação (FAO) diz que entre Março de 2007 e Março de 2008, os preços dos cereais aumentaram 88%, óleos e gorduras 106%, e lacticínios 48%. O índice de preços alimentares da FAO cresceu, no geral, 57% num ano – e a maior parte do aumento aconteceu nos últimos meses.
Outra fonte, o Banco Mundial, diz que nos 36 meses anteriores a Fevereiro de 2008, os preços globais do trigo cresceram 181% e os preços da alimentação em geral cresceram 83%. O Banco prevê que a maioria dos preços dos alimentos se mantenha, pelo menos até 2015, bem acima dos níveis de 2004.
A variedade de arroz mais popular na Tailândia vendia-se a 198 dólares a tonelada há cinco anos atrás e a 323 dólares a tonelada há um ano. A 24 de Abril o preço atingiu os 1000 dólares.
Os aumentos são ainda maiores nos mercados locais – no Haiti, o preço de mercado de um saco de 50 quilos de arroz duplicou numa semana no final de Março.
Os aumentos são catastróficos para os 2,6 mil milhões de pessoas em todo o mundo que vivem com menos de 2 dólares por dia e gastam 60% a 80% dos seus recursos em alimentação. Centenas de milhões não têm dinheiro para comer.
Este mês, a fome ripostou.


Saindo para a rua
No sul do Haiti, a 3 de Abril, na cidade de Les Cayes, manifestantes construíram barricadas, fizeram parar camiões que transportavam arroz e distribuíram o alimento, e tentaram incendiar umas instalações das Nações Unidas. Os protestos espalharam-se rapidamente para a capital, Port-au-Prince, onde milhares de pessoas se dirigiram ao palácio presidencial, entoando “Nós temos fome!” Muitos pediram a retirada das tropas da ONU e o regresso de Jean-Bertrand Aristide, o presidente exilado cujo governo foi derrubado por potências estrangeiras em 2004.
O presidente René Préval, que inicialmente disse que não havia nada a fazer, anunciou um corte de 16% no preço de retalho do arroz. Isto será no máximo uma medida tampão, já que a redução é por apenas um mês e os retalhistas não são obrigados a reduzir os seus preços.
As acções no Haiti são idênticas aos protestos de pessoas com fome em mais de vinte outros países.
• No Burkina Faso, uma greve geral de dois dias dos sindicatos e dos comerciantes exigiu reduções “significativas e efectivas” no preço do arroz e outros alimentos básicos.
• No Bangladesh, mais de 20 000 trabalhadores de fábricas têxteis em Fatullah entraram em greve para exigir preços mais baixos e salários mais altos. Eles atiraram tijolos e pedras à polícia, que disparou gás lacrimogéneo contra a multidão.
• O governo egípcio enviou milhares de tropas para o complexo têxtil de Mahalla no Delta do Nilo, para evitar uma greve geral que exigia salários mais altos, um sindicato independente, e preços mais baixos. Duas pessoas foram mortas e mais de 600 foram presas.
• Em Abidjan, Costa do Marfim, a polícia usou gás lacrimogéneo contra mulheres que tinham montado barricadas, incendiado pneus e encerrado as principais estradas. Milhares dirigiram-se à casa do presidente, entoando “Nós temos fome”, e “A vida está muito cara, vocês estão a matar-nos.”
• No Paquistão e Tailândia, foram deslocados soldados armados para evitar que os pobres roubassem alimentos dos campos e armazéns.
Protestos semelhantes ocorreram no Camboja, Camarões, Etiópia, Honduras, Indonésia, Madagáscar, Mauritânia, Níger, Peru, Filipinas, Senegal, Tailândia, Uzbequistão, e Zâmbia. A 2 de Abril, o presidente do Banco Mundial afirmou num encontro em Washington que há 33 países onde a subida dos preços pode causar distúrbios sociais.
Um editor da revista Time alertou:
“A ideia de massas esfomeadas levadas pelo desespero a virem para a rua e derrubarem o antigo regime parecia uma impossibilidade desde que o capitalismo triunfou de forma tão decisiva na Guerra Fria…. E no entanto, os títulos de jornal do mês passado sugerem que a grande subida dos preços está a ameaçar a estabilidade de um crescente número de governos em todo o mundo. …. quando as circunstâncias tornam impossível dar de comer aos seus filhos esfomeados, cidadãos normalmente passivos podem rapidamente tornar-se militantes sem nada a perder.” [2]
O que está a provocar a inflação dos alimentos?
Desde os anos 1970, a produção de alimentos tornou-se cada vez mais globalizada e concentrada. Uma mão cheia de países domina o comércio global de alimentos básicos. 80% das exportações de trigo vêm de seis exportadores, bem como 85% do arroz. Três países produzem 70% do milho exportado. Isto deixa os países mais pobres, os que têm de importar alimentos para sobreviver, à mercê de disposições e políticas económicas dessas poucas empresas exportadoras. Quando o sistema de comércio global de alimentos deixa de fornecer, são os pobres que pagam o preço.
Durante vários anos, o comércio global de alimentos básicos tem caminhado em direcção à crise. Quatro questões relacionadas desaceleraram a produção e puxaram os preços para cima.


O Fim da Revolução Verde: Nas décadas de 1960 e 1970, num esforço para conter o descontentamento camponês no sul e sudeste da Ásia, os EUA injectaram dinheiro e apoio técnico para o desenvolvimento agrícola na Índia e de outros países. A “revolução verde” — novas sementes, fertilizantes, pesticidas, técnicas agrícolas e infra-estruturas — conduziu a espectaculares aumentos na produção de alimentos, particularmente de arroz. O rendimento por hectare continuou a expandir até à década de 1990.
Actualmente, não está na moda os governos ajudarem os pobres a cultivarem alimentos para outros pobres, porque “o mercado” é suposto tomar conta dos problemas. O jornal The Economist relata que “os gastos na agricultura como parte das despesas públicas totais em países em vias de desenvolvimento caiu para metade entre 1980 e 2004.” [3]. Secaram os subsídios e o dinheiro para investigação e desenvolvimento, e o crescimento da produção parou.
Como resultado, em sete dos últimos oito anos, o mundo consumiu mais cerais do que aqueles que produziu, o que significa que o arroz foi sendo retirado dos depósitos que os governos e os armazenistas têm normalmente como segurança para anos de más colheitas. As provisões de cereais mundiais estão agora no seu nível mais baixo de sempre, deixando muito pouca folga para anos maus.
Alterações Climáticas: Cientistas dizem que as alterações do clima podem reduzir a produção de alimentos nalgumas partes do mundo em 50% nos próximos 12 anos. Mas isso não é só um problema do futuro:
• A Austrália é normalmente o segundo maior exportador mundial de cereais, mas uma severa seca prolongada de vários anos, reduziu as colheitas de trigo em 60% e a produção de arroz foi completamente dizimada.
• No Bangladesh em Novembro, um dos maiores ciclones das últimas décadas fez desaparecer um milhão de toneladas de arroz e danificou de forma severa as colheitas de trigo, deixando o enorme país ainda mais dependente da importação de alimentos.
Abundam outros exemplos. É óbvio que a crise climática global já está aí, e está a afectar a alimentação.
Agrocombustíveis: Já é política oficial dos EUA, Canadá e Europa, converter alimentos em combustível. Os veículos dos EUA queimam milho suficiente para cobrir as necessidades de importação dos 82 países mais pobres do mundo. [4]
O etanol e o biodiesel são altamente subsidiados, o que significa, inevitavelmente, que culturas como o milho estão a ser encaminhadas da cadeia alimentar para os tanques de combustível, e que os novos investimentos agrícolas em todo o mundo estão a ser dirigidos para a palma, soja, canola e outras plantas produtoras de óleo. Isto aumenta directamente os preços das culturas de agrocombustíveis, e indirectamente faz subir os preços de outros cultivos ao encorajar os agricultores a mudarem para agrocombustíveis.
Como descobriram os produtores canadianos de suínos, isto também faz subir o preço da produção de carne, uma vez que o milho é o principal ingrediente da alimentação animal na América do Norte.

(imagem retirada de http://nerdapproved.com/misc-gadgets/pig-corn-holder/)

Preços do Petróleo: O preço dos alimentos está ligado ao preço do petróleo porque os alimentos podem ser transformados em substitutos do petróleo. Mas a subida do preço do petróleo também afecta o custo de produção dos alimentos. Fertilizantes e pesticidas são feitos à base de petróleo e gás natural. A gasolina e o gasóleo são usados nas plantações, colheitas e no transporte. [5] Calcula-se que 80% do custo da produção de milho sejam custos com combustíveis fósseis – por isso não é surpresa que os preços dos alimentos subam quando sobem os preços do petróleo.
No final de 2007, a redução do investimento no terceiro mundo, a subida do preço do petróleo, e as alterações climáticas, fizeram abrandar o crescimento da produção e os preços subiram. Boas colheitas e um forte crescimento das exportações teriam mitigado a crise – mas não foi isso que aconteceu. O gatilho foi o arroz, o alimento base de três mil milhões de pessoas. No início deste ano, a Índia anunciou que iria suspender a maior parte da exportação de arroz, de forma a aumentar as suas reservas. Umas semanas mais tarde, o Vietname, cujas culturas de arroz foram atingidas por uma praga de insectos, anunciou uma suspensão de quatro meses nas exportações, para assegurar que tinham o suficiente para o mercado interno.
A Índia e o Vietname juntos somam normalmente 30% de todas as exportações de arroz, por isso os seus anúncios foram suficientes para fazer transbordar o já periclitante mercado global de arroz. Os compradores de arroz começaram imediatamente a comprar as reservas disponíveis, açambarcando todo o arroz que conseguiam, na expectativa de futuros aumentos do preço do arroz, e foram negociando o preço de colheitas futuras. Houve uma escalada dos preços. Em meados de Abril, as notícias eram de "compras em pânico" dos futuros de arroz na Bolsa de Comércio de Chicago, e houve falhas de arroz mesmo nas prateleiras de supermercados no Canadá e EUA.


Bolsa de Comércio de Chicago


Porquê a revolta?
Já antes houve picos no preço dos alimentos. De facto, se tivermos em conta a inflação, os preços globais dos alimentos básicos eram mais altos na década de 1970 do que hoje em dia. Então porque é que esta explosão inflacionária provocou protestos massivos por todo o mundo?
A resposta é que desde os anos 1970 os países ricos do mundo, ajudados por agências internacionais que eles controlam, minaram sistematicamente a capacidade dos países pobres de alimentarem as suas populações e de as protegerem de uma crise como esta.
O Haiti é um poderoso e chocante exemplo.
O arroz foi cultivado no Haiti durante séculos, e até há vinte anos atrás os agricultores haitianos produziam cerca de 170 000 toneladas de arroz por ano, o suficiente para 95% do consumo interno. Os produtores de arroz não recebiam subsídios governamentais, mas, como em qualquer outro país produtor de arroz na altura, o seu acesso a mercados locais era protegido por taxas sobre as importações.
Em 1995, como condição para o fornecimento de um empréstimo de que desesperadamente necessitava, o Fundo Monetário Internacional exigiu que o Haiti reduzisse as suas taxas alfandegárias sobre o arroz importado de 35% para 3%, as mais baixas das Caraíbas. O resultado foi um enorme fluxo de arroz dos EUA que era vendido a metade do preço do arroz haitiano. Milhares de produtores de arroz perderam as suas terras e modos de vida, e hoje três quartos do arroz consumido no Haiti vem dos EUA. [6]
O arroz norte-americano não derrubou o haitiano por ter um melhor sabor, ou porque os agricultores dos EUA são mais eficientes. Venceu porque as exportações de arroz são altamente subsidiadas pelo governo dos EUA. Em 2003, os produtores de arroz dos EUA receberam 1,7 mil milhões de dólares em subsídios, uma média de 232 dólares por hectare de arroz cultivado [7]. Esse dinheiro, que grande parte dele foi para um punhado de grandes latifundiários e empresas agrícolas, permitiu aos exportadores norte-americanos venderem o arroz 30% a 50% abaixo dos seus reais custos de produção.
Resumindo, o Haiti foi forçado a abandonar a protecção governamental da agricultura interna – e os EUA usaram então a sua protecção governamental para conquistar o mercado.
Há muitas variações deste exemplo, em que os países ricos do norte impõem políticas “liberalizadoras” a países pobres e endividados do sul e depois aproveitam-se dessa liberalização para capturar o mercado. Os subsídios governamentais representam 30% das receitas agrícolas nos 30 países mais ricos do mundo, um total de 280 mil milhões dólares por ano [8], uma vantagem imbatível num mercado “livre” onde são os ricos que escrevem as regras.


O jogo global da alimentação está viciado, e os pobres ficaram com poucas colheitas e sem protecção.
Para além disso, durante várias décadas o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional recusaram-se a fazer empréstimos a países pobres, a não ser que eles aceitassem “Programas de Ajustamento Estruturais” (PAE) que exigiam que quem recebia os empréstimos desvalorizasse a sua moeda, reduzisse impostos, privatizasse serviços, e reduzisse ou eliminasse programas de apoio a agricultores.
Isto tudo foi feito com a premissa de que o mercado produziria crescimento económico e prosperidade – pelo contrário, aumentou a pobreza e os apoios à agricultura foram eliminados.
“A aposta em pacotes de investimento e apoio à agricultura foi abafada e desapareceu eventualmente na maior parte das zonas rurais de África com os PAE. Abandonou-se a preocupação com a melhoria da produtividade dos pequenos agricultores. Não só os governos recuaram como decaiu também a ajuda estrangeira à agricultura. Os fundos do Banco Mundial para a agricultura diminuíram marcadamente de 32% do total de empréstimos em 1976-8 para 11.7% em 1997-9.” [9]
Em anteriores ondas de inflação dos alimentos, os pobres tinham pelo menos acesso a alimentos que eles próprios produziam, ou a comida que era cultivada localmente e disponível a preços definidos localmente. Os mercados globais determinam agora os preços locais – e muitas vezes os alimentos disponíveis são importados de bem longe.



A alimentação não é apenas mais um produto — é absolutamente essencial para a sobrevivência humana. O mínimo que a Humanidade deve esperar de qualquer governo ou sistema social é que ele tente evitar a fome – e acima de tudo que não promova políticas que neguem alimentos a pessoas com fome.
É por isso que o que o presidente venezuelano Hugo Chávez disse a 24 de Abril está absolutamente correcto, descrevendo a crise alimentar como “a maior demonstração do falhanço histórico do modelo capitalista.”
O que é necessário fazer para acabar com esta crise e para assegurar que ela não torna a acontecer?
A segunda parte deste artigo irá examinar estas questões.
Notas
[1] Kevin Pina. “Mud Cookie Economics in Haiti.” Haiti Action Network, 10/02/2008. http://www.haitiaction.net/News/HIP/2_10_8/2_10_8.html
[2] Tony Karon. “How Hunger Could Topple Regimes.” Time, 11/04/2008. http://www.time.com/time/world/article/0,8599,1730107,00.html
[3] “The New Face of Hunger.” The Economist, 19/04/2008.
[4] Mark Lynas. “How the Rich Starved the World.” New Statesman, 17/04/2008. http://www.newstatesman.com/200804170025
[5] Dale Allen Pfeiffer. Eating Fossil Fuels. New Society Publishers, Gabriola Island BC, 2006. p. 1
[6] Oxfam International Briefing Paper, Abril 2005. “Kicking Down the Door.” http://www.oxfam.org/en/files/bp72_rice.pdf
[7] Idem.
[8] OECD Background Note: Agricultural Policy and Trade Reform. http://www.oecd.org/dataoecd/52/23/36896656.pdf
[9] Kjell Havnevik, Deborah Bryceson, Lars-Erik Birgegård, Prosper Matondi & Atakilte Beyene. “African Agriculture and the World Bank: Development or Impoverishment?” Links International Journal of Socialist Renewal, http://www.links.org.au/node/328

http://investigandoonovoimperialismo.blogs.sapo.pt/34749.html

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