Acompanhar a crise global através das análises económicas da grande imprensa está cada vez mais difícil. Num dia a depressão, noutro a euforia, o fim da crise. Esse transtorno ciclotímico segue o “humor” das bolsas que é o indicador mais visível, mas nem sempre o mais importante para avaliar a crise. O que ainda não apareceu, não é contabilizado, mesmo suspeitando-se da existência de cadáveres fechados a sete chaves nos armários das empresas privadas e das instituições governamentais. A esses devem juntar-se muitos outros, pois a inadimplência no setor imobiliário, cozinhada em fogo brando, só deu os seus primeiros sinais. A crise, que se manifesta como uma crise do crédito, e que teve início nos EUA, alastra-se por toda economia mundial. O consumidor americano, responsável por 70% do PIB e com endividamento superior as suas condições financeira, já não consegue honrar outras dívidas. Por outro lado, os mecanismos utilizados para rolagem das dívidas acham-se travados pelo enorme prejuízo do setor financeiro Ocidental, calculado até agora em 600 bilhões de dólares. Se os cálculos de que para 1 dólar perdido os bancos deixam de emprestar 20 estiverem corretos a coisa está muito feia.
Pouco se vê pela imprensa menção aos circuitos deficitários, principalmente ao asiático(1), que tem levado os países superavitários dessa região, principalmente China e Japão, jogar, a custo zero, bilhões de dólares no financiamento do déficit americano, e que teve importante papel na expansão da bolha do setor imobiliário após o colapso das bolsas em 2001 e no aumento do consumo em geral. Ajustes nesses circuitos, que necessariamente devem acontecer com o agravamento da crise, reduzirão significativamente o retorno dos dólares a esse mercado, inibindo o consumo e as importações. O FED e os demais bancos centrais da Europa e de outros países capitalistas, que já disponibilizaram mais de um trilhão de dólares para segurar a falência do setor financeiro e manter em alta o ânimo do consumidor, além da redução dos juros e devolução de impostos ao contribuinte feito pelo Governo, hão de por suas máquinas de capital fictício cuspindo moeda dia e noite para melhorar a liquidez. Porém, não há nenhuma garantia de que tais medidas amorteçam a crise.
Numa situação em que a economia real não consegue mais acumular e para retardar a crise bolhas são geradas, onde ativos financeiros, numa dança louca, multiplicam-se milagrosamente sem nenhuma correspondência com a produção real, resta saber qual próxima bolha vai substituir a que murchou. Até agora nada de novo se vislumbra apesar da corrida dos bancos em dificuldade aos recursos dos fundos soberanos(2), antes vistos com desconfiança pelos Governos dos países do Ocidente, para concertar seus balanços afetados pela bolha em implosão e a existência de certa liquidez nos países em desenvolvimento. No entanto, a relutância de alguns fundos soberanos comprarem qualquer coisa que lhes seja oferecido, mesmo estrategicamente importante, mostra a preocupação dos Governos detentores desses fundos de como a crise vai bater em vossa porta. Podem estar também à espera de melhores oportunidades para adquirirem ativos reais. A volatilidade global das bolsas acompanhando o mercado americano mostra que a tola teoria do descolamento de uma parte do mundo da crise não passa de desejo de afogados.
Ora, se “jogar dinheiro de avião” como vem fazendo o Governo americano e de outros países não tem dado resultados, se os circuitos deficitários tende a se ajustar reduzindo o fluxo de capital para as grandes praças financeiras, se há relutância de quem tem dinheiro entesourado de superávits comerciais abrirem as burras, a tendência é de uma retração ainda maior do crédito com impacto negativo no consumo e no emprego. A fogueira que nessa crise queima o capital fictício, principalmente nos EUA, tem acarretado deflação de ativos reais e financeiros por um lado, e inflação dos produtos de consumo por outro, desvalorizando o dólar e esvaziando o bolso do consumidor numa velocidade maior do que os mecanismos monetários de contenção de crise podem repor. Esses mecanismos que se resumem na distribuição de dinheiro, mesmo sem substância, para que o ávido consumidor vá às compras, tende acentuar a inflação e pode não o levar a consumir. Desconfiado e endividado, pode utilizar esse dinheiro para saldar dívidas ou até mesmo entesourar em aplicações aparentemente seguras se sua percepção é de que vai necessitar desses recursos para atravessar os tempos difíceis que se anunciam.
Portanto, o capital financeiro, tão duramente surrado por setores da esquerda e grupos ditos nacionalistas alinhados muitas vezes a tendências anti-semitas, com a crise da economia real a partir dos anos 80, tornou-se instrumento de “alavancagem” na produção de mercadorias que inundam o mundo e aprofunda a crise ecológica, mesmo sendo sua origem suspeita e fictícia. A crise aparentemente conjuntural e financeira é um agravamento da crise estrutural do capitalismo que se não conseguir gerar novas bolhas para mais uma vez adiar um desfecho dramático, pode entrar num processo de regressão sem precedente. A emancipação e a superação da sociedade da mercadoria, uma possibilidade maior hoje pelos conhecimentos acumulados e pelos meios técnicos que dispõe a sociedade, não é garantida. Por enquanto o que se prenuncia é uma luta fratricida dos “sujeitos automáticos” pelo espólio do Estado burguês e por qualquer coisa que prometa ser transformada em dinheiro, como mostram as guerras de extermínio dos bandos armados em algumas regiões do mundo já colapsadas, acentuando a violência e a barbárie que devem ser denunciadas com determinação.
Rall
(1) Rall, “O circuito asiático da economia mundial” (Rumores da crise, 2005).
(2) Rall, “O Brasil está imune a crise?” (Rumores da crise, 2007)
http://rumoresdacrise.blogspot.com/
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