segunda-feira, julho 07, 2008

Formalismo no ensino

O post da Helena “Exames sem Erros, Porém Erróneos” suscitou alguns comentários muito interessantes que apontam para o facto de algumas pessoas terem começado a dar-se conta do fenómeno a que chamo “formalismo”. O formalismo é a marca distintiva do ensino português, mas não se pense que isso é surpreendente. Todo o ensino tende para o formalismo e só professores realmente competentes e cientes da tendência podem combatê-la. O formalismo surge quando o ensino está desligado de tudo, não está integrado na vida, surge como uma excrescência que nada tem a ver com coisa alguma: uma mera formalidade para ter notas e ir à vida que a morte é certa.

As ideologias do “eduquês” que invadiram o Ministério da Educação procuram combater este conhecido fenómeno, mas combatem-no mal. Assim, em vez de se procurar estratégias para mostrar a verdadeira natureza e importância da matemática ou da geografia, eliminam-se quase todos os conteúdos destas disciplinas reconhecíveis como tal, e enche-se o currículo dos estudantes de vacuidades escolares que têm muito a ver com a vida… mas só aparentemente. Isto porque o problema é o modo como se aborda seja o que for na escola, e não os conteúdos em si. Por exemplo, os estudantes não precisam que lhes ensinem a usar o “chat” na Internet, nem precisam que lhes ensinem as abreviaturas usadas nos “chats” e nos telemóveis. Mas se tal coisa começasse a ser ensinada, seria o maior dos tédios para os estudantes e eles nada aprenderiam, apesar de ser algo ligado à vida, se, como é previsível, a abordagem fosse formatada pelo formalismo prevalecente.

Não é fácil fazer um diagnóstico iluminante do formalismo, mas pelo menos as seguintes parecem propriedades dominantes:

1) Incapacidade para explicar realmente a razão de ser das coisas. Em vez disso, afirma-se categórica e autoritariamente que é assim e pronto. Por exemplo, em vez de se explicar cuidadosamente por que razão a multiplicação de um número positivo com um negativo dá um número negativo, limitamo-nos a fazer os estudantes decorar que “mais com menos dá menos”. É por causa deste aspecto que muitos partidários do “eduquês” se insurgem contra a memorização, mas isto é um disparate (que resulta precisamente de formalismo, ironicamente). Aquilo que qualquer especialista competente da educação sabe e afirma é que a memorização não pode substituir a compreensão, e não que a memorização tem de ser eliminada do sistema de ensino. Mas como os maus técnicos de educação sofrem eles mesmos de formalismo, não sabem muito bem por que razão devemos “ser contra” a memorização, e acabam por trocar as tintas.

2) Incapacidade para escolher os conteúdos relevantes. Em qualquer área de estudos há pormenores que nunca mais acabam. E que são irrelevantes no seguinte sentido: se um estudante for correctamente exposto às matérias e métodos realmente fundamentais, poderá descobrir por si as outras ou poderá compreender um livro que as explique. É crucial escolher os conteúdos que têm uma ligação maior ao estádio cognitivo dos estudantes e que ao mesmo tempo são centrais. Caso não se faça isto, mais uma vez temos uma memorização acéfala de pormenores completamente irrelevantes. O exemplo que melhor conheço disto é a lógica aristotélica. Em si, esta lógica estuda apenas 256 formas argumentativas válidas, com apenas 4 formas proposicionais (não interessa agora explicar o que são formas argumentativas e proposicionais). Ora bem, ao longo dos séculos de mau ensino medieval, transformou-se esta lógica minúscula num bicho-de-sete-cabeças, com inúmeras falsas subtilezas e conteúdos. Resultado: os professores que decoraram várias irrelevâncias querem depois transmiti-las aos alunos, e são capazes de andar um semestre inteiro a leccionar pormenores sem qualquer interesse. No final, os alunos decoraram várias coisas, mas não aprenderam o que realmente conta. Em contraste, eu ensino esta lógica apenas numa semana (quatro horas de aulas), depois de os alunos saberem lógica de predicados. Nada há de fundamental nesta lógica que eles não saibam ou não compreendam se forem ler um livro que fale dos vários pormenores que não estudaram; porque estudaram o que conta.

3) Incapacidade para fazer perguntas com elevado grau de discriminação cognitiva. (Por “grau de discriminação cognitiva” refiro aqui a capacidade para distinguirmos os estudantes que compreendem realmente as coisas dos que não as compreendem mas as memorizaram.) Ao fazer exames o formalismo reaparece. Como? Fazendo-se perguntas que não testam realmente a compreensão que o estudante tem das matérias ou das metodologias, mas antes a mera memorização acéfala. O que significa que os alunos podem acabar os seus estudos com óptimas classificações sem no entanto fazerem a mais pequena ideia da realidade do que estudaram: aprenderam apenas a memorizar e repetir mantras sem sentido. No caso da lógica isto é particularmente evidente, como sublinhei no livro O Lugar da Lógica na Filosofia. Pensemos no seguinte: uma definição correcta de argumento dedutivamente válido é que se trata de um argumento no qual é impossível as premissas serem verdadeiras e a conclusão falsa. Se fizermos perguntas do género “Defina argumento dedutivamente válido”, não saberemos distinguir um aluno que realmente compreende a definição de um que apenas a decorou. Solução? Fazer perguntas que exijam que o aluno domine realmente a noção; por exemplo, se perguntarmos “Pode um argumento dedutivamente válido ter conclusão falsa? Porquê?”, a probabilidade de um aluno que não domina a noção conseguir responder adequadamente é mínima. E é possível fazer perguntas de resposta múltipla com o mesmo grau de discriminação ou com um grau aproximado.

4) Transposição para o ensino do formalismo herdado. Muitos de nós fomos educados no formalismo, nomeadamente académico: dissertações de mestrado e doutoramento que nada realmente dizem, que são meros resumos do que outros escreveram, sem que o autor compreenda realmente o que está a resumir; aulas intermináveis na faculdade em que o professor só está preocupado em fingir-se superior mas quase nada do que diz ele compreende cabalmente; repetição acéfala dos chavões académicos da moda ("paradigma", "construção", "identidade", etc.) sem que se pare para pensar no que estamos realmente a dizer. Como quase todos fomos vítimas deste ensino, é natural que ao ensinar perpetuemos a fraude. Para impedir isso é preciso um envolvimento activo tanto nas matérias da nossa especialidade como na actividade de ensinar, coisa que exige trabalho, amor e profissionalismo. Quando se ensina não podemos esquecer que estamos a lidar com pessoas, e se tivermos um profundo desprezo por quem estamos a ensinar é natural que não tenhamos qualquer motivação para tentar fazer melhor do que nos fizeram a nós.

Comecei por afirmar que todo o ensino tende para o formalismo. Esta afirmação é uma especulação empírica que resulta da minha observação assistemática das coisas, tanto no presente quanto na história do ensino. A ser verdadeira esta especulação, importaria tentar descobrir porquê. Penso que há uma boa hipótese de trabalho: isso acontece porque as sociedades humanas são tipicamente profundamente hierárquicas e autoritárias; a liberdade é uma coisa relativamente nova; a tradição e a autoridade sempre modelaram as relações humanas, e por isso também o ensino. Acontece que a filosofia grega introduziu novidades cruciais no mundo, novidades que deram origem à ciência: a liberdade de pensar, a paridade entre seres humanos, a substituição da tradição e da autoridade pela prova e pela argumentação. É essa revolução que custa a ser feita, mas enquanto não for feita o ensino não poderá atingir a qualidade que todos desejamos.
http://dererummundi.blogspot.com/

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