segunda-feira, julho 07, 2008

A gratuitidade agita a cultura

Corrigindo o seu erro, o Ministério francês da Cultura espera salvar um projecto de lei sobre o direito de autor e a Internet. Redigido sob influência de poderosos lóbis industriais, da Vivendi à Microsoft, este texto foi derrotado pelo Parlamento no fim de Dezembro de 2005. Fim da caça aos “piratas”? Mas, então, como assegurar a remuneração dos criadores?

«Uma espécie de novos comunistas pretendem suprimir as incitações materiais destinadas aos músicos, aos realizadores de cinema e aos criadores de programas informáticos», advertiu Bill Gates numa entrevista de Janeiro de 2005 [1]. Deste então, esta afirmação foi retomada pelos exércitos do lóbi que reclamam a extensão do campo de aplicação da propriedade intelectual.

Nada existirá, então, entre uma visão expansionista da propriedade intelectual e o “comunismo”? Deverá a cultura optar entre a vigilância minuciosa das suas utilizações, pela tecnologia e por regulamentos privados, e um regime burocrático de economia administrada; entre uma gratuitidade destruidora da criação e a maximização do lucro retirado de cada utilização de cada obra? A tal poderíamos ser levados a crer, ao ler a maioria dos comentários que invadiram as secções de opinião e debate e os editoriais dos jornais diários depois do voto surpresa de 21 de Dezembro de 2005 na Assembleia Nacional.

Nesse dia, uma coligação pouco habitual que reunia a esquerda socialista e comunista, os Verdes e parte da União para um Movimento Popular (UMP) – conduzido por Bernard Carayon e Christine Boutin – votou, contra a posição do governo, uma alteração legislativa que propunha um mecanismo de licenciamento legal do acesso às obras na Internet.

Os deputados debatiam a lei “Direitos de autor e dos direitos vizinhos na sociedade da informação” – DADVSI. Este texto deverá transpor para o direito francês a directiva comunitária homónima (2001/29/CE) [2]. Uma das questões reside na definição do quadro jurídico em torno dos softwares e dos circuitos informáticos especializados no controle do acesso às obras: proibir-se-á o contorno destas “medidas técnicas de protecção” (MTP), que podem, por exemplo, impedir a leitura de um DVD numa plataforma não autorizada? A DADVSI deve igualmente determinar as excepções suplementares reconhecidas aos direitos de autor para diversas utilizações (pesquisa, educação, crítica, cidadãos com necessidades especiais, etc.), e precisar de que forma o exercício destes direitos de utilização será efectivo em casos em que medidas técnicas impeçam que deles se beneficie directamente. Quem teve oportunidade de ler o texto de alteração surpreendentemente aprovado a 21 de Dezembro terá tido dificuldade em perceber por que razão desencadeou ele a invocação das alternativas maniqueístas apresentadas mais acima.

“MINISTÉRIOS DOS LÓBIS”

E se as verdadeiras questões nada tivessem a ver com estas oposições? E se, pelo contrário, existissem diversas outras abordagens à remuneração dos criadores, à liberdade de acesso e de relacionamento com as obras, e também à diversidade cultural, que só se entrevêem precisamente quando recusamos pensar nestes termos? Talvez seja justamente isso que assusta. De qualquer forma, os 145.000 signatários da petição associada à iniciativa EUCD.info [3], e os 14.000 artistas signatários da moção da Spedidam [4], tiveram razão em exigir que se adiasse a votação para uma data posterior à realização de um debate de fundo. E em protestar contra a imposição pelo governo de um procedimento de urgência.

Que orientação política poderá orientar as escolhas que se impõem? Reina, neste plano, uma incompreensão absoluta entre os gestores do dossiê no Ministério da Cultura e a surpreendente união de inovadores, de criadores, de actores de políticas culturais no terreno – de “simples” cidadãos também – que propõem uma orientação diferente para o projecto de lei. De um lado, a ortodoxia incestuosa construída desde há vinte anos entre os grupos de interesse detentores de stocks de direitos [5] e uma pequena casta de juristas especializados, ortodoxia sistematicamente mantida pelos altos funcionários encarregues deste dossiê no Ministério. Esta orientação pode contar com uma sólida maioria no Conselho Superior da Propriedade Literária e Artística (CSPLA), a comissão que, desde 2000, está encarregue de aconselhar o governo sobre as questões da propriedade literária e artística.

Ora, as orientações propostas por este grupo opõem-se radicalmente à realização das missões do Ministério. O ministro, Renaud Donnedieu de Vabres, recusando a criação de excepções para a investigação e o ensino ou para as bibliotecas, condena os programas de digitalização de arquivos educativos e culturais – nos quais, não obstante, se investiu dezenas de milhões de euros de há vinte anos para cá. O Parlamento seguiu-o rejeitando as alterações que previam estas excepções, ainda que sejam devidamente autorizadas pela directiva que pretende transpor. Eis o voto que deveria suscitar os editoriais indignados dos tenores da cultura... mas apenas silêncio. Felizmente, enfrentando o “Ministério dos Lóbis” [6], um tecido muito rico de cidadãos e de actores culturais defende uma visão mais ambiciosa para a cultura.

Mas isto não é o mais grave. O ministro da Cultura opôs-se também, com um sucesso que se espera provisório, à aprovação de uma alteração que estabeleceria de forma clara que o direito de citação se aplica a todos os tipos de obras, nomeadamente audiovisuais. Uma disposição deste tipo foi adoptada na transposição alemã da mesma directiva europeia. Trata-se de uma questão essencial: ter-se-á o direito, por exemplo, de difundir num blogue pessoal excertos vídeo de um programa de televisão, apenas com o intuito de reforçar a afirmação de que a apresentação repetida de faits divers e a ordem dos temas nos jornais das televisões introduzem uma deformação? Quando o Estado se transforma em gabinete de prevenção das perdas dos lucros das majors, a inquietação não advém tanto do facto de que se consagram assim as preferências das indústrias culturais ou tecnológicas. Trata-se sobretudo de se deixar de ter qualquer política da cultura. Desde há meses, Donnedieu de Vabres declara de todas as formas que não pretende prejudicar os softwares livres, nem entravar a expressão de cada um na Internet ou atentar contra a protecção de dados. Isto não o impediu de deixar o CSPLA dar seguimento a uma alteração legislativa redigida pela Vivendi-Universal [7] que prevê colocar à margem da lei a Internet, a Web e todos os outros instrumentos de troca de ficheiros que não integrem medidas técnicas de protecção que garantam as restrições de acesso e de utilização de obras previstas.

Esta alteração parlamentar foi apresentada pela UMP e pela União para a Democracia Francesa (UDF). Por seu turno, o ministro da Cultura propôs, no curso do debate diante da Assembleia, uma série de medidas que instituíam uma “resposta gradual” em caso de partilha de ficheiros que os detentores de direitos tomassem como ilícita. Estas disposições visam aplicar regulamentos (de vigilância das utilizações dos internautas) e uma “justiça” (sob a forma de sanções automáticas sem processo), ambas de natureza privada. É provável que a alteração Vivendi-Universal/CSPLA e a “resposta gradual” (verdadeiramente anticonstitucional) sejam sacrificadas à “moderação”. Mas podemos temer que a filosofia que possibilitou estas aberrações venha a dar origem a novas alterações do mesmo tipo.

Os modelos comerciais que assentam na organização tecnológica de uma escassez artificial não podem com efeito sobreviver senão destruindo qualquer potencial social e cultural das técnicas de informação. Ora, pretender definir e controlar pela tecnologia o que é ou não é legítimo, colocar fora da lei aquilo que permita outras utilizações, tornar à partida impossíveis a troca e o tratamento da informação, é tentar travar um rio com as mãos, exigir um polícia tecnológico para cada gota de água. Não chegará sequer tornar ilegais os softwares livres. Seria preciso, como previa uma recente proposta de lei americana [8], interditar qualquer sistema capaz de digitalizar imagens e sons (da fotocopiadora ao gravador de voz...) que não contenham dispositivos de reconhecimento e de aplicação das restrições previstas para proteger os potenciais detentores de direitos destas imagens e destes sons.

Dito de outra forma, todos aqueles que defendem as trocas livres e a confiança entre utilizadores e criadores deverão aceitar submeter-se a constrangimentos e a trabalhar com instrumentos concebidos por inquisidores que assimilam cada cidadão a um ladrão herético. Aceitar esta filosofia pode equivaler a uma regressão de dezenas de anos em matéria de informação e de meios de comunicação social materiais (som e imagem animada), o equivalente ao tempo dos escribas para a escrita. Como ficar surpreendido que tal perspectiva não entusiasme uma proporção cada vez maior da população francesa [9], que experimenta a extraordinária libertação que consiste em exprimir-se dirigindo-se a todos os internautas, e todos aqueles que já beneficiam das ideias e criações de outros tantos novos autores?

Significa isto que tudo deveria ser autorizado e gratuito? Nem uma coisa nem outra. Trata-se sobretudo de fazer com que o modo de entender os direitos e o modo de remunerar os criadores não se revele destruidor do potencial de um mundo onde abundam fontes de expressão e de criação. Aquilo que desencadeou a agitação, na alteração que cria uma licença global, é que ela vem lembrar a existência de soluções alternativas, não apenas simples mas que permitem também garantir ao conjunto dos criadores rendimentos pelo menos equivalentes aos que actualmente auferem. Elas assentam sobre um mutualismo social do financiamento da remuneração dos criadores, sem contradizer assim um princípio fundamental do direito de autor, ou seja, que o nível de remuneração dependa das escolhas do público em escutar ou ver uma coisa em vez de outra.

Diferença fundamental relativamente às medidas técnicas de protecção (MTP) e outros DRM (sistema de gestão de direitos digitais): a apreciação da legitimidade das utilizações não se vê transferida dos juízes para aparelhos controlados por um punhado de multinacionais. De resto, não existe qualquer necessidade de vigiar as utilizações individuais: uma análise do tráfego da rede permitiria medi-las. Soluções deste tipo existem já numa série de domínios (cópia privada, rádio), ainda que de forma injusta e limitada, uma vez que os criadores de obras de livre acesso não beneficiam delas e que elas não se aplicam senão a actividades sem o impacte positivo das trocas na Internet. A rede deveria, por conseguinte, permitir às comunidades de criação e de partilha elaborar mecanismos mais justos que exprimissem essa nova natureza da relação entre o público e os artistas. Conseguirá a licença global passar desta vez? Tratar se á apenas de um adiamento pois, independentemente do que decida a Assembleia, o projecto em que assenta a alteração contestada não desaparecerá. É o projecto de um mundo onde muitos se dirigem a muitos, criam, atingem um público alargado e beneficiam das criações de uma multidão de fontes. Neste mundo, os títulos mais influentes subsistirão, mas será cada vez mais difícil para as majors fazê-los de antemão recorrendo a engenharias. Produzir-se-ão ainda obras de qualidade e encontrar-se-ão sempre editores que as reconhecerão e ajudarão a aparecer. Neste mundo, serão um pouco menos os que receberão rendimentos do direito de autor, mas haverá sempre trabalho para os artistas, para os produtores, para os editores... e para os juristas.


[1] C-Net, News.com, 5 de Janeiro de 2005.
[2] O essencial dos pontos que suscitaram polémica refere-se a disposições que não são tornadas obrigatórias pela transposição.
[3] Um sítio de informação sobre a EUCD (Directiva Europeia sobre o Direito de Autor), lançado pela FSF France (Fundação para o Software Livre), www.eucd.info.
[4] Sociedade de cobrança e de distribuição de direitos dos artistas-intérpretes de música e dança. Esta sociedade, que representa principalmente os artistas-intérpretes, faz parte com a ADAMI (Sociedade Civil para a Administração dos Direitos dos Artistas e Músicos Intérpretes) da coligação que se encontra na origem da proposta da licença legal para as trocas entre parceiros: www.spedidam.fr.
[5] Trata-se sobretudo das majors musicais e cinematográficas, da Sociedade de Autores Compositores e Editores de Música (SACEM) e dos herdeiros de autores e de compositores falecidos.
[6] Num texto que se pretende moderado, Joëlle Farchy, membro-chave do CSPLA, onde é vice-presidente da comissão de distribuição de obras on-line, acreditou poder diluir a acusação de estar ao serviço dos lóbis num “tudo é lóbi” que predomina face à demissão do político. Deveremos lembrar-lhe que os anglo-saxónicos, que conhecem o tema, distinguem eles próprios os lóbis (grupos de interesse) e os advocacy groups (defensores de uma visão particular do interesse geral)?
[7] O CSPLA ajustou ao mínimo detalhe a emenda para a tornar menos (aparentemente) aberrante, sem lhe alterar a orientação.
[8] Digital Content Security Act de 16 de Dezembro de 2005, que constitui urna generalização da emenda Vivendi Universal a outros tipos de aparelhos e situação (http://www.publicknowledge.org/issues/hr4569).
[9] Segundo o Le Monde de 3 de Janeiro de 2006, 10 por cento dos franceses teriam um blogue.
Philippe Aigrain
http://www.infoalternativa.org/cultura/cultura056.htm

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