Algumas pessoas pensam que tudo é ideologia, ou que todo o ensino é ideológico. Esta ideia foi dada como óbvia por alguns comentadores na sequência do meu post "E os Perigos do Ensino Privado?", como o Jorge e o Pedro. esta ideia é dificilmente defensável, e é impossível defender que é óbvia. Pode parecer óbvia porque é um lugar-comum, mas como muitos lugares-comuns, revela-se pouco plausível quando se pensa um pouco. Vejamos porquê.
A ideia de que tudo é ideologia enfrenta, para começar, uma dificuldade óbvia. Se dizer que tudo é ideologia é dizer que tudo é mera expressão dos interesses de classe ou expressão de opções injustificáveis, então também a ideia de que tudo é ideologia é ideológica, e como tal injustificável e um mero artigo de fé. O que significa que quem discorda da ideia de que tudo é ideologia pode limitar-se a concordar com quem afirma tal coisa, para de seguida negar tranquilamente tudo o que essa pessoa disser, precisamente por ser ideológico, ou negar todos os métodos de discussão de ideias que ela propuser, por serem todos ideológicos, ou todos os sistemas de ensino que ela propuser, por serem todos ideológicos. Em conclusão, a ideia de que tudo é ideologia é obviamente incoerente. É como gritar “GRITAR É IMPOSSÍVEL!”: o próprio acto de gritar pressupõe a negação do que se está a afirmar aos gritos.
Pensa-se por vezes erradamente que este tipo de posição auto-refutante é “paradoxal”. Mas isto é confundir dois conceitos cruciais: auto-refutação e paradoxo. Um paradoxo não é uma afirmação auto-refutante. Uma afirmação auto-refutante é uma afirmação necessariamente falsa. Um paradoxo é um argumento aparentemente válido com premissas aparentemente verdadeiras que conduz a uma conclusão aparentemente falsa. O paradoxo é que nenhum argumento válido com premissas verdadeiras tem conclusão falsa e por isso algo tem de estar errado, mas não se consegue ver o que é. Quando temos um paradoxo, algo está errado nas nossas premissas ou no nosso raciocínio, e o desafio é perceber o que raio está errado. Quando temos uma afirmação auto-refutante não temos qualquer paradoxo: temos apenas a certeza de que a afirmação é falsa porque se refuta sozinha. Confundir os dois conceitos é uma psicofoda.
Mas o aspecto mais importante é a incompreensão que esta posição trai da natureza da racionalidade e da argumentação. Quando se pensa que tudo é ideológico pensa-se que a argumentação e a racionalidade são elas mesmas ideológicas porque se baseiam sempre em pressupostos que queremos proteger da livre discussão. Pensa-se que a argumentação e a racionalidade é uma questão de adoptar como artigos de fé certos axiomas e a partir daí pensar de maneira mais ou menos automática nas consequências desses artigos de fé. Isto é um disparate, e dos grandes. Talvez o melhor antídoto que conheço a esta concepção verdadeiramente palerma e infelizmente comum da racionalidade e da argumentação seja esta passagem do livro Sobre a Liberdade (1859), de John Stuart Mill, que toda a gente deveria ler:
"Há uma grande diferença entre presumir que uma opinião é verdadeira porque não foi refutada em qualquer das oportunidades que houve para a contestar, e pressupor a sua verdade para impedir a sua refutação. O que nos dá justificação para presumir a verdade da nossa opinião para efeitos de acção é uma liberdade completa para a contradizer e provar a sua falsidade; e sob nenhumas outras condições pode um ser com faculdades humanas ter qualquer garantia racional de ter razão." (p. 55)
"Se não fosse permitido que até mesmo a filosofia newtoniana fosse questionada, as pessoas não sentiriam uma tão completa certeza da sua verdade como agora sentem. As nossas crenças mais justificadas não têm qualquer outra garantia sobre a qual assentar, senão um convite permanente ao mundo inteiro para provar que carecem de fundamento. Se o desafio não é aceite, ou se é aceite e a tentativa é gorada, estaremos, ainda assim, longe da certeza; mas teremos feito o melhor que a condição presente da razão humana permite; nada teremos negligenciado que pudesse dar à verdade a hipótese de vir ter connosco: se o conjunto de crenças for mantido em aberto, podemos esperar que, se houver uma verdade melhor, será encontrada quando a mente humana estiver preparada para a aceitar; e, entretanto, podemos ter a certeza de estarmos tão próximos da verdade quanto possível, na altura presente. Esta é a quantidade máxima de certeza alcançável por um ser falível, e a única maneira de a alcançar." (pp. 57-58)
A racionalidade não é um “jogo” entre outros, no qual partimos de certas regras, admitidas como artigo de fé. A racionalidade é a abertura completa para discutir tudo, incluindo as regras da discussão. É por isso que se pode distinguir claramente um ensino ideológico, por exemplo, de um ensino não ideológico. Um ensino ideológico transmite, por exemplo, a ideia de que devemos ser ecologicamente responsáveis, respeitadores das diferenças culturais, ou cidadãos participativos. E, como dizia Orwell, o problema disto não é realmente o que está a ser dito: “O inimigo é o espírito de gramofone, quer concordemos quer não com o disco que está a tocar nesse momento.” Em contraste, um ensino que não seja ideológico permite a discussão de tudo, e impede o espírito de gramofone, que é a repetição acrítica de ideias — como a ideia de que todo o ensino é ideológico.
Por que razão as pessoas têm tanta dificuldade em compreender a racionalidade e a argumentação? Talvez, em parte, porque foram vítimas de um ensino autoritário e ideológico; foram psicofodidas desde muito cedo para aceitar certas ideias como intocáveis; erigiram nas suas mentes zonas de intocabilidade que não podem ser postas em causa. E é neste aspecto que Orwell viu bem a psicofoda ideológica: tanto faz ensinar ciência ou da astrologia, o problema é ensinar ideologicamente, acriticamente. A grande diferença entre uma e outra não se nota quando ambas são transmitidas ideologicamente, acriticamente. Mas nota-se quando estamos abertos à discussão: ao passo que uma resiste à tentativa de refutação, a outra cai às primeiras discussões livres. E é isto que distingue um ensino ideológico de um que não o é; é isto que distingue uma posição ideológica de uma que não o é. Uma, está permanentemente aberta à crítica, ao passo que a outra ergue zonas de intocabilidade, artigos de fé que não podem ser postos em causa.
Na ciência e na filosofia e nas artes TUDO pode ser posto em causa. Só na religião e na ideologia há zonas de intocabilidade, porque é da protecção cuidadosa dessas zonas que depende a sobrevivência da religião e da ideologia. Daí que todas as ideologias e todas as religiões tenham tendência para declarar que há coisas que escapam à argumentação, à racionalidade, à discussão aberta e pública: porque sabem que essa é a única maneira de proteger uma coutada de ideias que, se forem expostas à discussão aberta, se revelam menos plausíveis do que as suas concorrentes.
A melhor razão que qualquer um de nós tem para aceitar os resultados da ciência é simultaneamente a melhor razão que temos para não aceitar as revelações religiosas e as doutrinações ideológicas: é que umas são convites permanentes a toda a humanidade para as refutar, ao passo que outras apenas convidam os eleitos a aceitá-las, ao mesmo tempo que lançam o anátema sobre os que as rejeitam.
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