terça-feira, julho 22, 2008

Irlanda

Imaginemos que, logo que tivesse sido anunciado um veredicto de absolvição por um júri popular, um presidente de tribunal voltasse a dar a palavra ao procurador para que ele completasse o seu requisitório. E que, desta vez, ele conseguisse a condenação do acusado. Porque não, se no dia 12 de Junho último, pouco depois da recusa, por uma larga maioria dos irlandeses, do Tratado de Lisboa (que não pode entrar em vigor se não for adoptado pela totalidade dos vinte e sete Estados membros da União), a maioria dos dirigentes europeus fez saber que o processo de ratificação iria continuar… A “Europa” já está habituada a que as suas elites atentem contra a soberania popular. Isso tornou-se a sua imagem de marca, mesmo quando ela se apresenta como a rainha da democracia na Terra.

Porque rejeitaram um tratado “simplificado” tão ininteligível que o primeiro-ministro Brian Cowen teve que admitir que não conseguiu lê-lo e compreendê-lo por inteiro, os irlandeses teriam, segundo um deputado europeu, ressuscitado a lembrança de uma «democracia popular». «Não é por acaso», confirmou um dos seus colegas «que o referendo é o procedimento mais utilizado pelos ditadores» [1]. E o presidente do Parlamento Europeu, Hans-Gert Pöttering, concluiu: «O “não” irlandês não pode ser a última palavra» [2]. Haverá pois um segundo referendo sobre o Tratado de Lisboa, depois talvez um terceiro: em Dublin, votar-se-á até que se obtenha um sim, visto que os Estados cujos eleitores nunca foram consultados o reclamam…

Os irlandeses são culpados! Ingratos, egoístas, populistas, eles têm dificuldade em elevar-se ao nível de generosidade e de abnegação da sua classe dirigente. Excepto quando, confiando-lhe o poder, eles lhe dão o mandato para promoverem “reformas corajosas”. Mas, nesse caso, eles não voltam a votar. Nisso, são muito europeus…

O encanto quebrou-se. A marca Europa não parou de se alargar e de se vender evocando a paz, a prosperidade, a justiça, a igualdade. Produziu belos cartazes com um céu muito azul e crianças que dançam de mãos dadas; ela dispõe de uma turba de jornalistas e de artistas com um militantismo infatigável; colóquios, reuniões, subvenções, produzem Europa com a mesma certeza com que os moinhos agitam o vento. Mas ninguém agita as suas cores. A sua identidade parece neste ponto tão evanescente que, quando ela imagina uma moeda comum, a única face impressa sobre as notas é a da vida cara.

A Europa fala de paz, mas envolve-se nas guerras incertas do exército norte-americano. Fala de progresso, mas organiza a desregulamentação do trabalho. Fala de cultura, mas redige uma directiva, a Televisões Sem Fronteiras, que vai multiplicar a frequência dos spots publicitários. Fala de ecologia e de segurança alimentar, ao mesmo tempo que levanta um embargo de onze anos sobre a importação de frangos americanos que foram imersos num banho de cloro [3]. Por fim, fala de liberdade. E aprova uma “directiva da vergonha” que prevê que os estrangeiros em situação irregular possam ser detidos durante dezoito meses antes de serem expulsos.

Manter a promessa europeia imporia harmonizar pelo topo: liberdades, direitos sociais, fiscalidade progressiva, independência. Em nome da unificação, conseguiu-se pelo contrário diminuir os ganhos dos Estados mais avançados. E o que há é a detenção prolongada, o trabalho de noite estendido às mulheres, o comércio livre, o atlantismo. Uma tal política acabou por fazer nascer uma Europa social: a que diz “não”. Observando que na Irlanda as mulheres, os jovens entre os 18 e os 29 anos, os operários e os empregados rejeitaram em massa o texto que lhe propunham, o semanário The Economist ironiza: «Um colégio eleitoral próximo dos do século XIX, isto é, reduzido aos proprietários idosos do sexo masculino, teria produzido um “sim” maciço ao Tratado de Lisboa.» [4] Mas que Europa se espera construir com um regresso ao sufrágio censitário?

[1] Respectivamente, Jean-Louis Bourlanges na France Culture, 22 de Junho de 2008, e Alain Lamassoure no Le Figaro, 16 de Junho de 2008.
[2] Le Monde, 17 de Junho de 2008.
[3] José Manuel Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia, explicou que «colocar uma barreira a estas importações seria considerado incompatível com as regras do comércio internacional», L’Express, 19 de Junho de 2008.
[4] The Economist, Londres, 21 de Junho de 2008.

Serge Halimi
http://www.infoalternativa.org/autores/halimi/halimi0005.htm

Sem comentários: