quinta-feira, julho 24, 2008

Ninguém lhe dá cavaco

O presidente Cavaco Silva promulgou o acordo ortográfico (notícia do Público). Felizmente, tanto no Brasil como em Portugal, é previsível que a generalidade das pessoas não irá adoptar a nova ortografia. Como já referi, há três razões principais contra este acordo ortográfico.

A primeira é que qualquer legislação sobre a ortografia é tão absurda como legislar sobre a gramática ou o léxico. Imaginem o que seria uma besta de um político determinar que palavras são ou não são portuguesas.

A segunda é que este acordo ortográfico em particular é uma mentira política: apresenta-se como unificador da língua portuguesa, mas não o é, pois passamos a escrever de maneira diferente o que antes no Brasil e em Portugal se escrevia igual (os outros países de língua portuguesa sempre seguiram a ortografia e a gramática de Portugal).

A terceira é que a reforma ortográfica proposta é incoerente, introduzindo vez mais elementos ilógicos na língua. Só a título de exemplo: o princípio organizador das mudanças ortográficas é fonético e é por isso que no Brasil se continuaria a escrever "aspecto", porque pronunciam o "c", ao passo que em Portugal as pessoas seriam obrigadas a escrever "aspeto", porque não pronunciam o "c". Esta é a primeira incoerência. Mas, além disso, os brasileiros deveriam passar a escrever "Brasiu" e "Isabeu" em vez de "Brasil" e "Isabel", pois nestas palavras pronunciam o "l" como "u".

Historicamente, as sucessivas reformas ortográficas foram febres centralistas da Europa continental totalitarista, associadas à ideia de que era necessário ser "moderno". Mas podem ser bem feitas ou mal feitas. Os italianos conseguiram reformar bem a sua ortografia e fizeram da língua italiana escrita uma quase perfeita imagem da maneira como falam. Contudo, isso nunca se fez em Portugal, que sempre fez as reformas ortográficas mal, introduzindo tantas excepções e dessintonias entre a pronúncia e a ortografia quantas as que procurava eliminar. A parca capacidade cognitiva dos reformadores fazia-os introduzir distinções ortográficas tolas, como "coser" e "cozer", para distinguir ortograficamente significados diferentes, ao mesmo tempo que se declaravam preocupados com as criancinhas que poderiam ter dificuldades em escrever "philosophia". O resultado que tivemos foi este: ficámos apenas com sucessivas novas ortografias em Portugal, mas nenhuma melhor do que as anteriores, e todas cheias de coisas ilógicas e sem sentido.

Ora, o princípio crucial a ser seguido nestas coisas é o seguinte: se vamos mexer nestas coisas, ou o resultado é perfeito ou quase perfeito, ou mais vale estar quieto. Dado a falta de qualidade gritante dos estudos linguísticos no nosso país, é de esperar que qualquer nova ortografia seja tão idiota como a anterior, mas idiota por idiota, mais vale ficar com o que já temos escrito em milhares de livros que estão nas bibliotecas. Eu gostaria de ler Pessoa tal qual ele escreveu, mas não posso fazer isso sem ir a uma biblioteca especializada. Gostaria de ler Eça tal qual ele escreveu, mas não posso fazer isso. E porquê? Porque umas bestas infinitamente menos interessantes intelectualmente do que Eça ou Pessoa têm o poder, dado pelo estado (palavra que na mentalidade salazarista muita gente escreve com maiúscula majestosa), de me obrigar a ler como eles querem e não como Eça ou Pessoa escreveram. Isto é pura prepotência gratuita, dado que nenhuma genuína melhoria foi introduzida na ortografia. Basta ler as inanidades de Cândido de Figueiredo para se perceber qual era o calibre intelectual dos reformistas do passado, que não destoa do calibre intelectual de tolinhos como o Houaiss ou o Malaca Casteleiro.
http://dererummundi.blogspot.com/

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