segunda-feira, julho 21, 2008

O Diabo

Quando se fala de religião é costume falar de Deus. Se existe, se não existe, se é real ou imaginário, se criou o Homem ou vice-versa. Mas este é o meu 666º post. Parece-me mais adequado dedicá-lo ao Seu alter ego.

Tal como com o jovem Clark Kent em Smallville, no princípio era só Ele. Os relatos mais antigos na Bíblia mostram o mal como sendo essencialmente desobedecer a Deus. O resto é tudo Ele. A serpente no Génesis foi mais tarde reinterpretada como Satã, mas no contexto original é mais razoável ver o episódio como uma adaptação do épico sumério de Gilgamesh, a quem o segredo da imortalidade também foi roubado por uma serpente espertalhona. E a serpente era tradicionalmente um símbolo dos aspectos temíveis e misteriosos da Natureza, não necessariamente do mal.

De resto no Êxodo podemos ver que foi Deus que deu a Moisés os poderes mágicos para impressionar o Faraó, foi Deus que mandou as pragas e também foi Deus que «endureceu o coração de Faraó»(Ex, 9:11) para que este não deixasse partir os Judeus. Nesta altura isto parecia justo. Afinal, era Deus, e Deus podia fazer o que bem Lhe apetecesse.

Mais reveladora ainda é a diferença entre os relatos de 2 Samuel e 1 Crónicas acerca do recenseamento que David mandou fazer. Os recenseamentos eram sempre mal vistos. Inevitavelmente, visavam a cobrança de impostos, o recrutamento militar ou ambos. Ninguém gostava quando os reis mandavam fazer um. 2 Samuel foi escrito antes do exílio dos Judeus na Babilónia, e relata que «A ira do Senhor tornou a acender-se contra Israel, e o Senhor incitou a Davi contra eles, dizendo: Vai, numera a Israel e a Judá.» (2 Sam 24:1).

O contacto com a cultura Persa deu aos Judeus uma visão mais zoroástrica do conflito entre o bem e o mal como a luta constante de duas forças opostas. Esta foi muito mais popular em todos os géneros de ficção, dentro ou fora da religião, e influenciou os autores das Crónicas, escritas após o exílio: «Então Satanás se levantou contra Israel, e incitou Davi a numerar Israel» (1 Cró 21:1). Qual cabine telefónica, este encontro cultural transformou Jeová, que nunca foi propriamente mild mannered, num verdadeiro badass. A partir de agora era a sério.

Durante a idade média muitos e doutos teólogos tentaram perceber quem seria Satanás, porque se teria virado contra Deus e como eram as hierarquias de querubins, serafins e outros perlimpimpins. A Enciclopédia Católica tem um artigo interessante sobre o assunto. Entretém, e dá uma ideia do tempo que se perdeu com este disparate (1).

Mas os tempos mudaram. Hoje em dia os católicos mais esclarecidos vêem o Diabo como uma metáfora para as falhas humanas ou um símbolo para o incompreensível, o absurdo, aquilo que está totalmente fora da razão. Curiosamente parecido com Deus em muitos aspectos. Um regresso às origens, de certa forma.

A história do Diabo dá-me esperança. No princípio não se distinguia de Deus. O bem e o mal eram o mesmo, o que importava era saber quem mandava. Mais tarde alguém desconfiou que isso não estava certo e separaram as personificações. O muito bom de um lado, o bicho papão do outro, mas nós ainda cá em baixo acagaçados. Com o evoluir das ideias deu-se mais um passo. O mal afinal é um conceito, uma falha, um símbolo. Não é um ser com existência autónoma. Não é um tipo encarnado de cornos e barbas com quem se possa ter uma relação pessoal, pedir coisas e prometer outras em troca.

A esperança é que dêem o próximo passo neste raciocínio e bejam que Deus está na mesma categoria. É uma ideia, um símbolo, uma marca do limite das nossas capacidades. Nada mais. Se compreendem que o Super-Homem não existe deve ser fácil perceber que o Clark Kent também é fantasia.

1- Catholic Encyclopedia, Devil
http://ktreta.blogspot.com/

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