Durante demasiado tempo, mostrando o provincianismo e o preconceito que ainda marcam o debate das ideias em Portugal, muitos foram os que consideraram que a expressão neoliberalismo não passaria de um slogan sem qualquer dignidade intelectual, usado apenas pela "extrema-esquerda" para efeitos de propaganda.
No entanto, um olhar de relance por alguma literatura académica, sobretudo anglo-saxónica, nas áreas da economia política, da sociologia, dos estudos de desenvolvimento ou da história das ideias facilmente revela que este termo é há muito usado de forma rigorosa e bem fundamentada.
Para além da ênfase nos processos de privatização, de liberalização financeira e comercial ou de desregulamentação das relações laborais, uma das dimensões que tem sido recentemente sublinhada nos estudos sobre o neoliberalismo, como conjunto de ideias que inspiram as políticas públicas, é a sua aposta numa profunda reconfiguração do Estado e das suas funções. O objectivo, sobretudo nos países mais desenvolvidos, é agora encontrar soluções institucionais e de financiamento que favoreçam a progressiva entrada dos grupos privados nas áreas tradicionais da provisão pública, associadas não só ao chamado Estado Social (saúde, educação ou segurança social), mas também à gestão e controlo de equipamentos e infra-estruturas públicas. Usar o Estado e os recursos financeiros que este controla para abrir novas áreas de negócio, onde os lucros estão relativamente garantidos, é a orientação de fundo. A célebre questão da redução da sua dimensão (em termos, por exemplo, do peso das despesas públicas no PIB), ao contrário de alguma retórica neoliberal, nunca foi realmente central para este projecto de transformação.
Como sempre, o capitalismo anglo-saxónico aponta o caminho. Um estudo governamental recente revelou que um terço dos serviços públicos britânicos (representando quase 6% do PIB) já é assegurado pelo nebuloso "terceiro sector" e, sobretudo, pelo sector privado (Financial Times, 10/07/2008). Da gestão de serviços sociais, à provisão de serviços de saúde ou de educação, são muitas as oportunidades de negócio agora disponíveis numa área em rápida expansão. Esta é crescentemente dominada por empresas multinacionais que, obviamente, se constituem como poderosa força de pressão para a continuação deste processo.
Um dos mecanismos fundamentais na neoliberalização do Estado é, assim, a crescente separação entre o financiamento e a provisão, ou seja, os recursos que são de todos passam a ser canalizados para a provisão, crescentemente privada, dos bens e serviços que serão, por enquanto, usufruídos por quase todos, embora se vá alargando – porque afinal é de engenharia mercantil que estamos a falar – o princípio do utilizador-pagador e se vá corroendo a ideia de provisão pública universal e do éthos igualitário que lhe subjaz. A direcção do plano inclinado, aberto politicamente e mantido ideologicamente pela retórica das virtudes ilimitadas da empresa privada, da concorrência e da escolha individual, é então clara: aproximar-nos, tanto quanto possível, da utopia de uma sociedade reduzida ao nexo mercantil. Este objectivo, esta "mercadorização" de esferas crescentes da vida, envolvendo agora opacas parcerias público-privadas, complexas subcontratações ou dispendiosos subsídios e incentivos fiscais, requer um activismo estatal permanente e constante e, dados os custos de transacção envolvidos nos contratos a desenhar, avultados recursos públicos. O Estado forte é, então, parte integrante do neoliberalismo. Nos países com Estados fracos, caso de Portugal, estas transformações são simplesmente muito mais predatórias e a sua perversidade socioeconómica, paradoxalmente, torna-se muito mais rapidamente visível.
O aumento das desigualdades e a desestruturação social que isto gera, em conjugação com o esvaziamento progressivo do Estado Social assente na provisão pública universal, têm levado, em muitos dos países desenvolvidos onde estes processos foram mais longe, como é o caso do Reino Unido, a um reforço das áreas de actuação do Estado associadas à repressão e à punição, ou seja, à emergência e reforço do que o sociólogo Loïc Wacquant chamou o Estado Penal. Não é por acaso que o mesmo Reino Unido tem assistido a um fulgurante aumento da sua população prisional. É claro que as prisões, agora também geridas por privados, podem ser um excelente negócio…
Nota: atrevo-me a remeter o leitor interessado nestes temas para o Ladrões de Bicicletas (www.ladroesdebicicletas.blogspot.com), blogue de economia política de que sou co-autor.
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