quarta-feira, agosto 27, 2008

Treta da Semana (passada): A democracia é só para alguns

A ideia que a democracia serve melhor umas culturas que outras ataca pela calada e raramente é defendida por quem se apercebe que o faz. Mas porque há demasiado respeito por culturas e tradições e insuficiente compreensão da democracia esta ideia insidiosa é frequente. O Xiquinho deu um exemplo quando explicou porque é que a democracia é menos importante para a China.

«Se perguntares a [um] chinês médio o grau importância que dá à democracia também és capaz ficar surpreendido pois rapidamente chegarás à conclusão que está tudo muito mais interessado no caroço do que nos direitos humanos. Claro que haverá excepções, mas não me parecem ser significativas. Pode parecer estranho mas o conceito de democracia não é absoluto em todo o mundo nem tão pouco garantia automática de liberdade e justiça. Muito menos na China.»

É verdade que países diferentes implementam os detalhes de maneiras diferentes. Parlamentos, ministros, processos de aprovação de leis e assim. Mas o importante não é isso. Como o Xiquinho reconheceu, «os valores de uns e outros são muito diferentes». O fundamento da democracia é o respeito por essas diferenças. A Declaração Universal dos Direitos Humanos mostra-o bem. Delimita uma esfera de direitos que todos podem exercer sem privar outros de direitos iguais e exclui o Estado dessa esfera. Escolher se rezamos e a quem, com quem vivemos, o que pensamos ou dizemos não compete ao Estado mas a cada um de nós. O Estado é como a administração do condomínio. Trata das partes comuns mas não entra em casa das pessoas.

O Estado democrata intervém apenas na gestão dos interesses comuns e na resolução de conflitos. Porque tem que respeitar os valores de cada um a gestão dos interesses comuns é por voto da maioria ou por representantes eleitos. E, pela mesma razão, a resolução de conflitos tem que considerar igualmente todos os valores, mesmo os minoritários. Daí que seja legítimo a maioria decidir quanto se investe em educação ou saúde mas não que 90% votem para escravizar os outros 10%. A democracia não é seguir a vontade da maioria mas sim respeitar o melhor possível os valores de cada um.

Há quem contraponha que isto é apenas individualismo ocidental e que outras culturas podem dar prioridade à família, sociedade ou nação. Mas na nossa espécie todos os valores vêm do indivíduo. É o indivíduo que dá valor à família, à nação ou a si próprio. Se fossemos formigas inteligentes talvez cada formigueiro pensasse colectivamente ou só as rainhas tivessem valores. Mas não somos. Cada um de nós pode pensar por si, ter os seus valores e concordar ou discordar dos outros. Em rigor, nem a cultura nem a sociedade nem a tradição têm valores. Quem tem valores é cada pessoa. É nisso que a democracia se baseia.

É por isso que defendo a democracia como obrigatória e universal. Não obrigatória para as pessoas. Não faz sentido obrigar alguém a ter direitos. E não como forma de governo porque não há uma só forma de governo democrático. Mais que uma forma de governo, a democracia é o limite do poder legítimo de quem governa. É obrigação do Estado exercer o seu poder apenas com a aprovação dos cidadãos, gerir o que é de todos no interesse de todos e impor-se a cada indivíduo só quando necessário para proteger outros de imposição mais grave. Qualquer governo que respeite isto acaba por ser reconhecível como democracia.

Estes limites à legitimidade de obrigar os outros a fazer o que queremos não dependem da cultura, tradição ou posição no Comité Central. São iguais para todos em virtude precisamente da grande diversidade de valores que seguimos. E são transversais aos problemas da pobreza, violência ou guerra civil. O abuso do poder de quem governa é sempre em benefício dos governantes e sempre em prejuízo dos governados.
http://ktreta.blogspot.com/

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