Indubitavelmente a democracia é o melhor modelo de organização política que a humanidade já excogitou. No entanto, lá onde se introduziu no contexto de relações capitalistas de produção, vive em permanente crise. Por sua própria lógica interna, tais relações produzem desigualdades sociais e exclusões que corroem pela base a ideia mesma de democracia. Democracia que convive com miséria e exploração transforma-se numa farsa e representa a negação da própria democracia. É notório que a democracia sempre parou na parta da fábrica. Lá dentro vigora, com elogiosas excepções, a ditadura dos donos e dos seus administradores. Não obstante esta contradição, nunca cessa a vontade de fazer da “democracia, valor universal”, sonho imorredouro do notável teórico italiano, Norberto Bobbio, ou a “democracia sem fim” de Boaventura de Sousa Santos, quiçá o melhor pensador político português, quer dizer, a democracia como projecto a ser realizado em todos os âmbitos da convivência humana e indefinidamente perfectível.
Em todas as partes se procura romper o pensamento único e o modo único de produção capitalista, inventando formas participativas de produção e abrindo brechas novas pelas quais se possa concretizar o espírito democrático.
Recentemente, tive a oportunidade de assistir ao exercício democrático de produção dentro de uma fábrica de cerâmica na cidade de Neuquén no sul da Argentina, na porta de entrada da Patagónia. Trata-se da Cerâmica Zanon, que pertencia a um grupo económico multinacional, cujo dono principal era Luis Zanon, da empresa Ital Park, testa de ferro da privatização das Aerolineas Argentinas e um dos cem empresários mais ricos na Argentina. Este empresário, em 2001, estava prestes a decretar a falência da empresa. Chegou a demitir 380 operários e, ao mesmo tempo, tomava milionários empréstimos de vários organismos financeiros, para com a falência sair enriquecido. Tratava-se, portanto, de uma falência fraudulenta, como depois foi provado.
Os operários resistiram, começaram a organizar-se e articular-se com outras entidades sindicais, movimentos sociais, universidades, igrejas e directamente mobilizando a sociedade civil local e até a nacional. Todos os intentos por parte da polícia de desalojá-los foram frustrados. Os operários assumiram a direcção da fábrica de forma democrática, organizaram a complexa produção de cerâmica, de alta qualidade, com maquinaria moderna de origem italiana. Decretada a falência em 2005, trocaram o nome da fábrica. Agora chama-se Fasinpat (fabrica sin patrones). Democraticamente ajustaram os departamentos, introduziram a rotatividade nas funções para todos poderem aprender mais, fizeram parcerias com a universidade local. Não só. A fábrica não se reduz a produzir produtos materiais mas também cultura, com biblioteca, visitação de escolas, shows multitudinários no grande pátio, colaboração com os indígenas mapuche que ofereceram a sua rica simbologia assumida na produção. Lá trabalham 470 operários produzindo mensalmente 400 mil metros quadrados de vários tipos de cerâmica de comprovada qualidade.
Fazia gosto ver o rosto dos operários desanuviados, libertos da servidão do trabalho alienado, contentes de estar levando avante a democracia real nas relações produtivas que se revertiam em relações humanizadoras entre eles. A sua postulação é que o Estado expropie a fábrica, sem pagar as dívidas por terem sido fraudulentas, e entregue a gestão aos próprios operários a serviço da comunidade através de obras públicas como construção de casas populares, postos de saúde, colégios e outros fins sociais. Como se depreende, a democracia pode sempre crescer e mostrar o seu carácter humanizador.
http://infoalternativa.org/spip.php?article128
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