quarta-feira, setembro 03, 2008

falibilismo

Quando discutimos o falibilismo temos de nos lembrar que nem todas as formulações do falibilismo são necessariamente boas formulações do falibilismo. A formulação do falibilismo que parece confundir as pessoas ao extremo é a seguinte:

F= "todas as nossas crenças verdadeiras podem ser falsas"

Esta formulação do falibilismo é muito má porque confunde o conhecimento com as nossas crenças acerca daquilo que é conhecimento. Como sabemos que as nossas crenças são verdadeiras? Quando temos razões para pensar que são e nenhum indício de que não são. Mas como somos falíveis, podemos enganar-nos ao pensar que justificámos solidamente a nossa crença acerca daquilo que conhecemos. Isto não significa que uma crença verdadeira pode ser falsa. Consideremos a experiência mental:

Percorremos a pé, munidos de um mapa, uma enorme distância até chegar a uma cidade XYZ. Quando finalmente chegamos a uma cidade, acreditamos ter chegado a XYZ porque todos os indícios sugerem isso e nada nos faz pensar que não chegámos. Isto é tudo o que está contido na ideia de que "pensamos saber" que chegámos a XYZ. Agora imagine-se que, sem ter percebido, lemos mal o mapa, que chegámos a outra cidade ZYX, mas que lemos o letreiro com o nome da cidade, sem dar por isso, reflectido num espelho, ou que estamos alcoolizados e que não conseguimos ler bem, ou que a língua em que ZYX e XYZ estão escritos nos é estranha e os caracteres parecem todos iguais. Estaremos convencidos então de que sabemos ter chegado a XYZ quando na verdade chegámos a ZYX.

Imaginemos agora que chegámos de facto a XYZ mas que não o sabemos ainda. Ainda não inspeccionámos todos os indícios que nos podem sugerir onde estamos. É verdade que chegámos a XYZ, mas não sabemos. Podemos acreditar que chegámos a XYZ mas falta-nos justificar essa crença. Por isso procuramos os indícios (coerência com o mapa, letreiros, dísticos, palavras dos habitantes, etc). Ao inspeccionarmos os indícios descobrimos que estamos de facto em XYZ e que a nossa crença de que chegámos a XYZ é verdadeira.

Deixámos de ser falíveis? Aniquilámos a possibilidade de alguma vez na vida nos enganarmos ao pensar que chegámos a uma cidade e não a outra? Será que aniquilámos a possibilidade de nos perdermos por cometer erros a interpretar indícios, mapas e conselhos de residentes locais? Não parece razoável pensar que só porque chegámos a XYZ e verificámos os indícios, nos tornámos subitamente infalíveis.

Agora imagine-se o seguinte: imagine-se que os residentes locais mentiram ou que não os compreendemos bem. Que os letreiros estão obsoletos e que antigamente aquela cidade se chamava XYZ mas que mudou de nome para YZX embora o letreiro antigo ficasse no mesmo sítio. Parece rebuscado, mas lembra-nos da nossa falibilidade: podemos sempre cometer erros ao justificar as nossas crenças.

Voltemos ao caso em que chegámos a XYZ mas que não sabemos. Estamos a andar às voltas ainda à procura de indícios. Se nesse momento um de nós pensar para consigo: «Cheguei a XYZ, seguramente...» É possível que esteja errado? Não! Porque chegou de facto a XYZ, embora não o saiba. Depois de inspeccionar os indícios vai finalmente saber que chegou a XYZ e não pode estar enganado SE é de facto verdade que chegou a XYZ. Mas aqui é que a porca torce o rabo, vejamos:

O falibilismo não é a tese de que podemos estar errados quando estamos certos nem a tese de que não podemos reconhecer que estamos certos quando o estamos. O falibilismo é apenas a tese de que podemos enganar-nos ao justificar as crenças que consideramos verdadeiras. Isto não significa que não possamos ter excelentes indícios de que algumas das nossas crenças são verdadeiras. Trata-se apenas de compreender que não temos garantias absolutas de que as justificações que apresentamos para as nossas crenças, sejam elas verdadeiras ou falsas, não contêm erros. É a minha pretensão a ter conhecimento de que cheguei a XYZ que é falível e não as crenças verdadeiras. Não temos de saber que uma crença é verdadeira para que ela seja verdadeira. Pode ser verdadeira sem que o saibamos. Podemos ter essa crença verdadeira pelos motivos errados. Podemos estar convencidos de que chegámos a XYZ, essa crença ser verdadeira, e no entanto apenas ficámos disso convencidos porque lemos os indícios errados, indícios que em si não significam que estejamos em XYZ mas que nos levaram, incidentalemente, a acreditar em algo verdadeiro.

Contudo, para saber que temos crenças verdadeiras é preciso em primeiro lugar ter crenças verdadeiras e depois ter justificações muito boas para essas crenças. Quando ficamos convencidos de ter chegado a XYZ tendo lido os indícios errados, e acertado incidentalmente numa verdade (porque chegámos lá de facto) temos uma certeza. Não podemos estar errados porque estamos de facto em XYZ e no entanto não sabemos que chegámos a XYZ porque nossa justificação está completamente errada. Apenas pensamos que sabemos. É isto o que significa o falibilismo coerentemente articulado.

Espero que isto deixe claro que o falibilismo não implica que não possamos ter certezas, ler indícios, justificar crenças, nem saber quando chegámos a Madrid ou a Lisboa. De igual modo, não é por sabermos que chegámos a Madrid ou a XYZ que passámos a ser infalíveis.

Tão-pouco se pode confundir o falibilismo com a tese de que não há verdade: o relativismo. Se não há verdade, não me posso enganar. É o oposto do falibilismo, obviamente. Poder enganar-me quando acredito conhecer algo não implica que estou enganado acerca desse mesmo algo. Ser falível não é ser irrecuperavelmente otário.
http://vguerreiro.blogs.sapo.pt/

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