“Contar histórias fabulosas” para fazer esquecer uma política condenada parece ser a “estratégia de Sherazade” do presidente dos Estados Unidos. A sua necessidade de fábulas corresponde ao elevado grau da sua impopularidade. Viagem ao território da «realpolitik da ficção».
Num artigo do The New York Times publicado alguns dias antes da eleição presidencial de 2004, Ron Suskind, que foi, de 1993 a 2000, editorialista do The Wall Street Journal e, a partir de 2000, autor de várias investigações sobre a comunicação da Casa Branca, revelou os termos de uma conversa que mantivera, durante o Verão de 2002, com um conselheiro de George W. Bush: «Ele disse-me que os tipos como eu faziam parte daquilo “a que nós chamamos a comunidade inspirada na realidade” [the reality-based community]: “Vocês acreditam que as soluções emergem da vossa judiciosa análise da realidade observável.” Eu concordei e murmurei qualquer coisa sobre os princípios das Luzes e o empirismo. Ele interrompeu-me: “já não é assim que o mundo funciona realmente. Nós agora somos um império e, quando agimos, criamos a nossa própria realidade. E enquanto vocês estudam essa realidade, judiciosamente, como tanto desejam, nós voltamos a agir e criamos outras novas realidades, que vocês também podem estudar, e é assim que as coisas se passam. Nós somos os actores da História. […] E a vocês, a vocês todos, não vos resta mais nada do que estudar o que nós fazemos” [1].»
Classificado como um “furo intelectual” pelo The New York Times, o artigo de Suskind fez sensação. Os editorialistas e os bloggers apropriaram-se da expressão “reality-based community”, que se espalhou pela Web - onde o motor de busca Google contabilizava, em Julho de 2007, mais de um milhão de ocorrências. A enciclopédia online Wikipedia consagrou-lhe uma página [2]. Segundo Jay Rosen, professor de jornalismo na Universidade de Nova Iorque, «muitas pessoas à esquerda tomaram conta do termo, ao autodesignarem-se nos seus blogues como “dignos representantes da comunidade inspirada na realidade”, enquanto a direita fazia pouco da situação: “Aí eles são da realidade? OK, que bom!” [3]»
As declarações relativas à “comunidade inspirada na realidade”, proferidas sem qualquer dúvida por Karl Rove alguns meses antes da guerra do Iraque, não são apenas cínicas e dignas de um Maquiavel especialista na linguagem dos meios de comunicação social: parecem emanar de um palco teatral, mais do que de um escritório da Casa Branca. Não se trata apenas de retomar os velhos dilemas que desde sempre agitam os gabinetes governamentais, opondo idealistas e pragmáticos, moralistas e realistas, pacifistas e belicistas, ou, como nesse ano de 2002, defensores do direito internacional e partidários do recurso à força. O que se sugere é uma nova concepção das relações entre a política e a realidade [4]. Os dirigentes da principal potência mundial afastam-se não apenas da realpolitik como também do simples realismo, para se tornarem criadores da sua própria realidade, mestres das aparências, reivindicando o que se poderia designar como realpolitik da ficção.
A DISNEY SOCORRE O PENTÁGONO
A invasão norte-americana do Iraque, em Março de 2003, forneceu uma ilustração espectacular da vontade que a Casa Branca tinha de “criar a sua própria realidade”. Nessa ocasião, os serviços do Pentágono, preocupados em não repetir os erros da primeira guerra do Golfo, em 1991, dedicaram uma atenção especial à sua estratégia de comunicação. Além dos quinhentos jornalistas embedded (integrados em unidades do exército norte-americano) de que tanto se falou, puseram um empenho particular na concepção da sala de imprensa do quartel-general das forças americanas, instalado no Qatar: um hangar de armazenagem reconfigurado - pela módica soma de 1 milhão de dólares - em estúdio de televisão ultramoderno, com estrado, ecrãs de plasma e todo o material electrónico capaz de produzir vídeos de combate em tempo real, mapas geográficos, animações e diagramas…
Só o lugar de onde o porta-voz do exército americano, o general Tommy Franks, se dirigia aos jornalistas custou 200 mil dólares e foi feito por um designer que trabalhou para a Disney, a Metro Goldwyn Mayer e o programa televisivo “Good Morning America”. Desde 2001, a Casa Branca encarregou-o de criar os cenários à frente dos quais falava o presidente; uma escolha que nada tem de surpreendente quando se conhecem as ligações entre o Pentágono e Hollywood. Mais surpreendente, por outro lado, revelou-se a decisão do Pentágono de recrutar para estes trabalhos David Blaine, um… ilusionista muito conhecido nos Estados Unidos, devido ao seu show televisivo e aos seus truques de prestidigitação, que lhe permitem emancipar-se das leis físicas, levitando uns palmos acima do chão ou ficar fechado durante dias numa caixa, sem comer - sendo que as duas situações não são incompatíveis. Num livro publicado em 2002, aquele que diz ser o «Michael Jordan da magia» reclama-se herdeiro de Jean Eugène Robert-Houdin, um lendário mágico francês que aceitou, no século XIX, deslocar-se à Argélia ao serviço do governo, de modo a ajudá-lo a controlar uma sublevação, demonstrando que a sua magia era superior à dos rebeldes [5]. Ignoramos se era isso que o Pentágono esperava dele, mas a sua convocatória e a sua expedição ao Qatar sugerem que os seus talentos de ilusionista foram usados para algumas truncagens ou efeitos especiais…
Scott Sforza, um antigo produtor da ABC que trabalhava para a máquina de propaganda republicana, criou os cenários à frente dos quais Bush fez as suas declarações mais importantes durante os dois mandatos. A 1 de Maio de 2003, foi ele que encenou o discurso de Bush no porta-aviões Abraham Lincoln, com uma faixa que tinha a inscrição: «Missão Cumprida: As grandes operações de combate no Iraque acabaram. Na batalha do Iraque, os Estados Unidos e os seus aliados ganharam.» Mas a encenação não ficava por aqui. O presidente aterrou no porta-aviões a bordo de um caça rebaptizado para a ocasião Navy One e no qual estava escrito «George Bush, Comandante-Chefe». Vestido com um fato de aviador, vimo-lo sair do cockpit, de capacete na mão, como se regressasse de uma missão num remake espectacular de Top Gun - o filme de Jerry Bruckheimer, habituado às operações conjuntas Hollywood-Pentágono, e que produzia um programa de tele-realidade sobre a guerra no Afeganistão, “Profiles from the Front Line”. O comentador da Fox News, lembra Frank Rich, não se enganou ao dizer em jeito de elogio: «Foi fantasticamente teatral». David Broder, do The Washington Post, ficou subjugado pelo que apelidou de «postura física» do presidente [6]. Sforza teve que enquadrar cuidadosamente a cena para que não se distinguisse San Diego no horizonte. A cidade estava a sessenta quilómetros, quando se supunha que o porta-aviões estivesse a navegar em alto mar, na zona dos combates.
Contudo, nunca o enquadramento de um discurso presidencial foi tão explícito como a 15 de Agosto de 2002, quando o presidente dos Estados Unidos se expressou solenemente sobre a «segurança nacional» diante da célebre falésia do Monte Rushmore, onde estão esculpidos os rostos de George Washington, Thomas Jefferson, Theodore Roosevelt e Abraham Lincoln. Durante o seu discurso, as câmaras de televisão foram colocadas num ângulo que permitia filmar George W. Bush de perfil, com o seu rosto sobrepondo-se aos dos seus ilustres predecessores…
O mesmo tipo de estratagema foi utilizado aquando do discurso de Bush proferido no primeiro aniversário dos atentados de 11 de Setembro de 2001, com o objectivo de preparar a opinião pública americana para a invasão do Iraque, ao agigantar o «grande combate que desafia a nossa potência e ainda mais a nossa determinação». Sforza alugou três barcaças para levar a equipa presidencial até à base da estátua da liberdade, que ele decidira iluminar de baixo para cima com projectores potentes. Escolheu os ângulos das câmaras de forma a que a estátua fosse visível ao fundo, durante o discurso. Frank Rich cita a este propósito o ponto de vista de um especialista, Michael Deaver, que preparou em 1980 a declaração de candidatura de Ronald Reagan, tendo também como pano de fundo a estátua da Liberdade: «Eles compreendem o poder da imagem como ninguém antes deles. Perceberam que o que está à volta da cabeça é tão importante como a cabeça» [7].
O que há em torno da cabeça é justamente o que transforma uma imagem em lenda: «Missão Cumprida», os Pais fundadores, a estátua da Liberdade… A imagem inscreve-se no tempo para tornar-se uma story. Mas também precisa de ficar em sintonia com o espectador, ou seja, fazer dialogar dois momentos da história, o que é representado na imagem e o momento real da recepção. É essa sintonia que produz a emoção desejada. Ora, para os americanos em 2002, nenhuma data poderia ter um peso emocional maior do que um discurso sobre a guerra no primeiro aniversário do 11 de Setembro. Além disso, o país acabara de regressar de férias, pronto a concentrar-se em temas de primeira importância [8].
Segundo um professor da Universidade do Colorado, Ira Chernus, Karl Rove aplicou, durante os dois mandatos de Bush, aquilo a que chama «estratégia de Sherazade»: «Quando a política o condenar à morte, comece a contar histórias - histórias tão fabulosas, tão cativantes, tão envolventes que o rei (ou, neste caso, os cidadãos americanos que em teoria governam o nosso país) esquecerá a sua condenação capital. Ele [Karl Rove] joga com o sentimento de insegurança dos americanos, que têm a impressão de que a sua vida lhes escapa» [9]. Rove conseguiu isto bastante bem em 2004, quando para a reeleição de Bush desviou a atenção dos eleitores do balanço da guerra, ao convocá-los para os grandes mitos colectivos do imaginário americano: «Karl Rove», explica Ira Chernus, «apostou que os eleitores ficariam hipnotizados por histórias ao estilo de John Wayne, sobre “verdadeiros homens” que combatem o diabo na fronteira - em todo o caso, os americanos suficientes para evitar a sentença de morte que os eleitores podem pronunciar contra um partido que nos conduziu para o desastre do Iraque. […] Rove não pára de inventar histórias com bons e maus para uso dos candidatos republicanos [no Congresso]. Ele esforça-se por transformar todas as eleições em teatro moral, num conflito que opõe o rigor moral dos republicanos à confusão moral dos democratas […] A estratégia de Sherazade é uma grande vigarice, construída sobre a ilusão de que simples histórias moralizadoras nos podem dar um sentimento de segurança, independentemente do que se passa no mundo. Rove pretende que cada voto em favor dos republicanos seja uma tomada de posição simbólica» [10]. Em Agosto de 2007, forçado a demitir-se pelos membros democratas do Congresso, anunciou a sua decisão com este desabafo, que serve de assinatura de toda a sua obra: «Eu sou Moby Dick e eles perseguem-me!».
[1] Ron Suskind, “Without a doubt: Faith, certainty and the presidency of George W. Bush”, The New York Times, 17 de Outubro de 2004.
[2] http://en.wikipedia.org/wiki/Reality-based_community.
[3] Jay Rosen, The retreat from empiricism and Ron Suskind’s intellectual scoop», The Huffington Post (blogue), 4 de Julho de 2007.
[4] Ler “Léon Tolstoï, consultant en entreprise”, Manière de voir, n.° 96, La fabrique du conformisme, Dezembro 2007-Janeiro 2008.
[5] David Blaine, Mysterious Stranger. A Book of magic, Villard Books, Nova Iorque, 2002.
[6] Citado por Frank Rich, The Greatest Story Ever Sold, Penguin Books, Nova Iorque, 2007, p. 89.
[7] Ibid., p. 57.
[8] Ibid, p. 58.
[9] Ira Chernus, Karl Rove’s Scheherazade strategy, 7 de Julho de 2006, Tomdispatch.com.
[10] Ibid.
http://www.infoalternativa.org/
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