quarta-feira, setembro 17, 2008

semper claritas

Ao contrário do que é letra comum, o pior inimigo de uma boa escrita é a nossa subjectividade. Já Orwell chamava a atenção para que a boa escrita é como um vidro: para fazermos qualquer coisa legível, temos de combater constantemente a intromissão da subjectividade e dos seus "quirks" que, contrariamente ao que supõe o provincianismo intelectual, é como as calças de ganga: pensamos ser aquilo que mais nos distingue quando é precisamente o que nos torna indistintos da mediania. Toda a gente, sem pensar muito nisso, segue mais ou menos os mesmos "quirks" supostamente muito individualistas: sacrificar a clareza de uma frase só para lá inserir uma palavra preferida — "segmento" é uma delas, mas há uma imensidade de "palavras mágicas" que podemos detectar num mediano trabalho redigido por um aluno de letras (a mim basta ler os meus antigos trabalhos para ver esta miséria franciscana) — ou então procurar a formulação mais bizantina possível para dizer exactamente o mesmo que diríamos, com maior elegância, numa frase curta e simples.

Um exemplo desta merdificação da escrita está num tique que se tornou quase norma linguística: usar o adjectivo "problemática" como substantivo: "toda a problemática de..."

A motivação para usar este tipo de truques, a meu ver, segundo o recordo do tempo em que redigia trabalhos de 20 páginas sem fazer a mínima ideia do que escrevia, é a seguinte: quando escrevemos "o problema de x", ficamos comprometidos a tornar explícito, com toda a clareza possível, que problema é esse. Quando escrevemos "problemática" estamos a sugerir na mente no leitor uma rede confusa de questões que se interligam magicamente, e esta sugestão como que o desarma e desencoraja de pensar... uma espécie de ataque preventivo que nos impede de ser encurralados e responder a perguntas incómodas, raio de perguntas incómodas, a estragar o lustro do ornamento imbecil de 20 páginas que tanto nos orgulha.

A sugestão que deixo, para que não percam o mesmo tempo que eu perdi até perceber o ridículo destas coisas, é que sejam tão claros como possível. Esqueçam as "problemáticas", digam "o problema" e identifiquem-no. Se não conseguem, então pensem outra vez. Esqueçam os truques linguísticos, esqueçam a vossa subjectividade vaidosa, esqueçam os floreados. Dediquem-se ao que realmente interessa: as ideias, a procura pelo conhecimento, pela compreensão real das coisas. A melhor coisa que podemos fazer, ao contrário das pancadas pseudo-rebeldes, que transformam a filosofia numa atitude de desprezo aristocrático pela "utilidade", é ser úteis aos outros, ajudá-los a combater os tiques da subjectividade e descobrir o verdadeiro prazer da descentração, da entrega a uma actividade que faz sentido e não precisa de ademanes e peneiras para simular um sentido que o aristocrata finge desprezar precisamente porque no fundo sabe que não o tem e isso perturba-o.

Há imensa coisa útil e fascinante na filosofia, além das "problemáticas" e das falsas questões e da arrogância subjectiva, quando somos suficientemente autónomos e livres para ver além de tudo isto.

Não escrevam "problemática" para sugerir uma nuvem de "coisas interligadas". Sejam explícitos. Não sacrifiquem a clareza de uma frase só para lá inserirem as palavras que pensam ser muito inteligentes — normalmente não o são. Não escrevam "dispositivos linguísticos", escrevam "palavras"... Não escrevam "segmento" como quem enche uma árvore de natal com enfeites... Não se deixem fascinar por palavras mágicas. Nada disso é interessante nem útil. E quanto mais cedo o percebemos maior prazer retiramos de qualquer actividade teórica como a filosofia, porque ela passa a ter sentido, em vez de servir apenas para criar separações imaginárias e dar corda à nossa subjectividade. Ser filósofo também é saber não ser escravo da própria subjectividade, é perguntar: gosto disto, mas por que razão gosto disto? Por que razão me parece bem e não o contrário? Os quirks subjectivos não libertam nem individualizam — massificam. Porque calças de ganga todos vestem.
http://vguerreiro.blogs.sapo.pt/

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