terça-feira, outubro 28, 2008

A dádiva sem precedentes de riqueza financeira

Uma exegese do discurso do sr. Paulson acerca do salvamento
O discurso do sr. Paulson acerca do salvamento, na segunda-feira 13 de Outubro, coloca algumas questões económicas fundamentais: Qual é o impacto sobre a economia como um todo da criação e dádiva sem precedentes, neste Outono, de riqueza financeira para a camada mais rica da população? Até quando, com o salvamento da Wall Street (mas não do resto da economia!), pode o Tesouro sustentar uma sobrecarga da dívida que está a crescer exponencialmente? Haverá qualquer limite para o montante de dívida do Tesouro dos EUA que o governo possa criar e transferir para os seus principais contribuidores de campanhas políticas?

Em tempos passados, a dívida nacional tipicamente era aumentada por dinheiro tomado emprestado a prestamistas privados e gasto em bens e serviços. A tendência era absorver fundos emprestáveis e aumentar taxas de juros por um lado, enquanto os gastos levavam a aumentos de preços inflacionários dos bens e serviços. Mas a dádiva actual é diferente. Ao invés de o dinheiro ser tomado emprestado ou gasto, o rendimento dos juros dos títulos estão simplesmente a ser impressos e entregues aos bancos e outras instituições financeiras. A esperança é que eles venham a conceder mais crédito (o qual tornar-se-á mais dívida da parte dos seus clientes), reduzindo taxas de juros enquanto o dinheiro é utilizado para aumentar preços de activos imobiliários, de acções e de títulos. Espera-se pouca inflação de preços de commodities com este comportamento.

O impacto principal será reforçar a concentração de riqueza nas mãos de credores (os 10 por cento mais ricos da população) ao invés de destruir activos financeiros (e dívidas) através das bancarrotas que estavam a verificar-se em resultado da "forças de mercado". Será dizer demasiado que estamos a assistir o fim da democracia económica e a emergência de uma oligarquia financeira, uma classe egoísta cujas acções ameaçam polarizar a sociedade e, neste processo, sufocar o crescimento económico e levar à própria bancarrota que o salvamento era suposto impedir?

Tudo o que já li de história económica leva-me a acreditar que estamos a entrar numa era de transição de pesadelo. O ciclo de negócios é essencialmente um ciclo financeiro. Aumentos tendem a tornar-se esquemas de Ponzi que abrangem a economia quando bancos e outros credores, poupadores e investidores recebem juros e reinvestem-nos em novos empréstimos, acumulando ainda mais juros quando os níveis de dívida ascendem. Isto é a "magia do juro composto" em poucas palavras. Nenhuma economia "real" na história cresceu a uma taxa capaz de aguentar esta dinâmica financeira. Na verdade, o pagamento destes juros pelas famílias e pelos negócios deixa pouco para ser gasto em bens e serviços, o que provoca o encolhimento dos mercados e do investimento e, assim, ao corte no nível de emprego.

Usando viseiras para evitar confrontar qualquer realidade a sugerir que bancos não podem fazer dinheiro ad infinitum pela venda de cada vez mais crédito – isto é, endividando cada vez mais a economia não financeira – responsáveis do governo tais como o secretário do Tesouro Paulson ou o presidente do Federal Reserve Bernanke são profissionalmente incapazes de reconhecer este problema, e ele não aparece na maior parte dos manuais neoclássicos ou monetaristas. Mas a matemática subjacente do juro composto é redescoberta a cada geração, muitas vezes acicatada pela force majeure da crise financeira.

Há uma geração, por exemplo, Hyman Minsky ganhou um grupo de seguidores ao descrever o que ele correctamente denominou a etapa Ponzi do ciclo de negócios. Era a fase na qual os devedores já não eram mais capazes de reembolsar os seus empréstimos com os seus rendimentos actuais (quando na Etapa 1 eles ganhavam o suficiente para cobrir seus encargos de juros e amortização), e na verdade não ganhavam nem mesmo o suficiente para pagar os encargos de juros (quando na Etapa 1), mas tinham de tomar emprestado o dinheiro para pagar o juro devido aos seus banqueiros e outros credores. Nesta Etapa 2 o juro era simplesmente acrescentado à dívida, crescendo a um juro composto. Isto termina num crash.

Isto era o outro lado da magia do juro composto – a crença de que as pessoas podem ficar ricas "pondo dinheiro a trabalhar". O dinheiro realmente não trabalho, naturalmente. Quando emprestado, ele extrai juro da produção e consumo "real" da economia, isto é, do trabalho e da indústria que realmente fazem o trabalho. Assemelha-se muito a um imposto, uma renda de monopólio cobrada pelo sector financeiro. Mas este quase-imposto, esta renda extractiva financeira (como Alfred Marshall explicou há mais de um século) é a dinâmica que se supõe permitir a corporações, estados e fundos de pensão locais pagar pensões de aposentadoria simplesmente a partir de ganhos no mercado de acções e de títulos de investimentos – em termos puramente financeiros e portanto a expensas da economia como um todo cujos empregados são supostos serem os ganhadores. Isto é a essência do capitalismo "fundo de pensão", uma variante esquema Ponzi do capitalismo financeiro. Infelizmente, ele é fundamentado em relacionamentos puramente matemáticos que têm pouca base na economia "real" na qual famílias e companhias produzem e consomem.

O plano de salvamento do sr. Paulson reflecte um estado de não reconhecimento desta dinâmica. A sobrecarga da dívida é auto-agravante, tornando-se cada vez menos "solvável" portanto cada vez mais uma situação inextricável, ou seja, um problema sem solução visível. Pelo menos, nenhuma solução aceitável para a Wall Street, e portanto para o sr. Paulson e os líderes democratas e republicanos no Congresso. Os bancos e grandes faixas do sector financeiro estão quebrados por terem feito apostas erradas na crença de que o dinheiro podia ser posto a "trabalhar" sob condições de retracção da subjacente economia industrial e de ganhos salariais reprimidos, corroendo o mercado para bens de consumo. A deflação da dívida reduz as vendas e a actividade de negócios em geral, e portanto os rendimentos corporativos. Isto deprime o mercado de acções os preços imobiliários, e portanto o valor do colateral comprometido no apoio à sobrecarregada economia da dívida. Situação líquida negativa leva à bancarrota e a arrestos.

Ao aumentar a dívida nacional da América de US$5 milhões de milhões do princípio deste ano para US$13 milhões de milhões quase de uma só vez pela assunção de empréstimos lixo e de outros maus investimentos, ao invés de permitir-lhes ir abaixo como tradicionalmente tem acontecido no culminar da "limpeza" de crashes de negócios ("limpeza" no sentido de liquidação de dívidas que razoavelmente não podem ser pagas), as acções de salvamento do sr. Paulson aumentaram os pagamentos de juros que o governo deve pagar a partir de imposto ou pela tomada de empréstimos (imprimindo) de ainda mais dinheiro. Alguém deve pagar por dívidas podres e empréstimos lixo que não são cancelados na contabilidade. O governo está agora a assumir o papel de cobrador de dívidas para "fazer um lucro para os contribuintes" ao movimentar-se e dar um tiro no próprio pé da economia – a qual, naturalmente, compreende primariamente os "contribuintes" aparentemente a serem ajudados.

É um jogo trapaceiro. Os ganhos financeiros ascenderam desde 1980, mas os bancos e investidores institucionais não os utilizaram para financiar formação de capital tangível. Eles simplesmente reciclaram seus recebimentos de juro (e taxas de cartões de crédito e penalidades que frequentemente aumentam tanto quanto os juros) em ainda mais novos empréstimos, extraindo ainda mais juros e assim por diante. Esta extracção financeira deixa menos rendimento às pessoas e aos negócios para gastarem em bens de consumo, bens de capital e serviços. As vendas encolhem, provocando incumprimentos quando a economia tem menos capacidade para pagar os encargos de juros que lhe foram estipulados.

Este fenómeno da deflação da dívida verificou-se ao longo da história, não só no moderno ciclo de negócios mas durante séculos a fio. O exemplo mais auto-destrutivo de curto-prazismo financeiro é o declínio e a queda do Império Romano na servidão da dívida (debt bondage) e finalmente nas sombras da Idade Média. O ponto da viragem política foi a violenta tomada do Senado pelos credores oligárquicos que assassinaram os reformadores favoráveis aos devedores liderados pelos irmãos Graco em 133 AC, arrancando as bancadas do mesmo e utilizando-as como aríetes a fim de empurrar os reformadores para o despenhadeiro no qual ficava a assembleia. Um golpe violento semelhante verificou-se antes em Esparta quando os reis Agis e Cleómenes tentaram anular dívidas de modo a reverter a polarização económica daquela cidade-estado. A oligarquia credora exilou e matou aqueles reis, tal como descreveu Plutarco em Vidas dos gregos e romanos ilustres . Isto costumava ser leitura básica entre pessoas educadas, mas hoje todos estes acontecimentos desapareceram da memória histórica da maior parte do povo. O conhecimento da evolução das estruturas económicas foi substituído por uma mera seriação de personalidades políticas e conquistas militares.

A moral da história antiga e moderna é que inevitavelmente se atinge um ponto crítico no qual as economias ou adoptam leis duras favoráveis aos credores que empobreceram a população e arruinaram-se social e militarmente, ou salvam-se a si próprias aliviando o fardo da dívida. O notável hoje é o fracasso quase total dos líderes políticos em proporcionar uma alternativa ao salvamento praticado pelo sr. Paulson desde o Bear Stearns em bancarrota até à tomada da Fannie Mae e do Freddie Mac e à dádiva da semana passada aos bancos. Ninguém está mesmo a advertir para onde conduz esta decisão destrutiva. O governo que aparentemente defende a filosofia do "mercado livre" está a actuar como o prestamista de último recurso – não para famílias e negócios não financeiros endividados, e não para apagar a sombra da dívida estabelecendo um novo Quadro Limpo, mas para subsidiar o excesso de obrigações financeiras sobre e acima da capacidade da economia para pagar e do valor de mercado dos activos comprometidos como colateral.

Esta tentativa é obrigatoriamente vã. Nenhum montante de dinheiro pode sustentar o crescimento exponencial da dívida, sem mencionar o crédito criado livremente e jogos com derivativos e outras obrigações financeiras cujo volume explodiu nos últimos anos. O governo está comprometido com os "salvamento" dos bancos e de outros credores cujos empréstimos e swaps deterioram-se. Ele continua a recusar-se a olhar para a deflação da dívida que deve ser imposta ao resto da economia a fim de "fazer bem" a estas tendências financeiras.

Eis porque o plano do governo de recuperar o dinheiro é um assobiar no escuro: Ele apela aos bancos para "conseguirem sair da dívida" através da venda de mais do seu produto – o crédito, isto é, dívida. Os proprietários de casas e outros consumidores, estudantes, compradores de carros, utilizadores de cartões de crédito e seus patrões – os "contribuintes" supostamente a serem ajudados – devem pagar o reembolso do dinheiro aos bancos, ao invés de utilizá-lo para a compra de bens e serviços. Se eles cobrarem apenas 6% ao ano, extrairão US$93 mil milhões em encargos de juros – US$42 mil milhões para pagar o Tesouro pelos seus US$700 mil milhões, e outros US$51 milhões ao Federal Reserve pelos seus empréstimos de US$850 mil milhões em "dinheiro em troca de lixo".

Se você está em vias de roubar o governo, suponho que a melhor estratégia seja simplesmente o descaramento. Ao ouvir os mass media, aparentemente não há alternativa excepto aprovar o plano exactamente como os lobbyistas da Wall Street o redigiram, para "salvar o mercado do colapso iminente", recusando-se a efectuar audiências, a ouvir testemunhos de críticos ou a escutar as centenas de economistas que denunciaram esta dádiva.

A arrogância atingiu um nível de fraude jamais visto desde a dádiva aos barões dos caminhos de erro no século XIX. "Não quisemos ser punitivos", explicou o sr. Paulson numa entrevista ao Financial Times, como se a única alternativa fosse uma enorme prenda. A Europa não entrou em tais dádivas, apesar de ele afirmar que a Inglaterra e outros países europeus obrigaram-se com o salvamento dos seus bancos e que o Tesouro simplesmente quis manter os bancos estado-unidenses competitivos. Apertando as mãos melodramaticamente, segunda-feira ele asseverou ao público que "Nós lamentamos ter de tomar estas acções". Os bancos cooperaram com a pretensão de que o salvamento era uma aborrecida intrusão socialista no "mercado livre", não uma dádiva à Wall Street de acordo com o plano concebido pelos lobbyistas da sua própria indústria. "As acções de hoje não são aquilo que sempre quisemos fazer", continuou o sr. Paulson, "mas as acções de hoje são o que devemos fazer para restaurar a confiança no nosso sistema financeiro". A confiança em causa foi um exercício clássico de desinformação – um bem montado jogo de trapaceiros.

O sr. Paulson pintou a compra de acções especiais sem direito a voto por parte do governo como uma nacionalização estilo europeu. Mas os governos nomearam representantes públicos nos conselhos de administração dos bancos a serem salvos. Isto não aconteceu nos EUA. Lobbyistas dos bancos confirmadamente abordaram o Tesouro a fim exprimir a preocupação de que os seus accionistas pudessem ser diluídos. Mas o plano do Tesouro-Partido Democrata investe US$250 mil milhões de crédito governamental em acções sem direito a voto. Se um receptor deste crédito for à falência, o governo é relegado para o fim da fila, para trás dos outros credores. Suas "acções" não são empréstimos reais e sim "acções preferenciais". Como explicou o sr. Paulson na segunda-feira: "O governo possuir um interesse em qualquer companhia privada estado-unidense é algo censurável para a maior parte dos americanos – eu inclusive". Assim, as acções possuídas pelo governo não são sequer acções reais e sim uma emissão especial "sem direito a voto". O investimento publico em acções nem mesmo terá o poder de votar! De modo que o governo fica com o pior dos dois mundos: À sua emissão de "acções preferenciais" falta o poder do voto que têm as acções ordinárias, enquanto falta-lhe também o direito de reembolso em caso de bancarrota que desfrutam os detentores de títulos. Ao invés de levar a mais supervisão e regulamentação pública, a crise aqui tem portanto o efeito oposto: uma capitulação à Wall Street, de acordo com linhas que abrem o caminho para uma crise de dívida muito mais profunda que chegará quando os bancos "abrirem o seu caminho de saída da dívida" a expensas do resto da economia, a qual não está a receber qualquer alívio da dívida!

O sr. Paulson derrama as apropriadas lágrimas de crocodilo a favor dos proprietários de casas e da classe média, cujo interesse é pintado como se residisse em preços sempre crescentes das habitações e do mercado de acções. "Nas últimas semanas, os americanos têm sentido os efeitos de um congelamento do sistema financeiro", explicou ele. "Eles viram reduzir-se os valores da sua aposentadoria e das suas contas de investimento. Eles ficaram preocupados acerca do cumprimento das folhas de pagamento e com a perdas dos seus empregos". Ele quase parecia prestes a utilizar o surrado estribilho das viúvas e órfãos e a implorar aos americanos para não desligarem a avó da máquina na enfermaria. Precisamos preservar o valor das suas acções e ajudar a todos a aposentarem-se satisfeitos restaurando a engenharia financeira normal da Wall Street para fazer com que os eleitores enriqueçam outra vez.

Os executivos europeus que pilotaram os seus bancos para o iceberg da dívida foram despedidos. A Inglaterra no último Verão liquidou os accionistas do Northern Rock, e mais recentemente do Bradford and Bingley. Mas na América os culpados permanecem no lugar. Nenhum accionistas de banco está a ser liquidado aqui, apesar da situação líquida negativa na qual caíram bancos que assumiram os piores riscos ou dos processos movidos contra eles por empréstimos predatórios, fraudes do consumidor e malfeitorias relacionadas.

A ajuda do governo será utilizada para pagar salários exorbitantes ao executivos que conduziram estes bancos à insolvência. "Instituições que venderam acções ao governo aceitarão restrições sobre a compensação aos executivos, incluindo uma provisão de restituição (clawback) e uma proibição de paraquedas dourados", pretendeu o sr. Paulson – só para especificar isto dizendo que a regra seria aplicada só "durante o período em que o Tesouro possuir acções emitidas através deste programa". Os executivos afinal de contas podem permanecer no lugar e darem-se a si próprios as habituais prendas de reforma, o que levou o congressista democrata Barney Frank a queixar-se de quão fracas são as restrições do Tesouro. "Peritos em compensações dizem que as provisões, embora politicamente prudentes para acalmar a raiva do público, provavelmente terão pouco impacto real sobre como os executivos financeiros serão pagos nos próximos anos. Eles prevêem que os bancos simplesmente pagarão impostos mais elevados e descobrirão outros meios criativos de pagar aos seus executivos o que considerarem adequado. Alguns dizem que poderia mesmo haver um súbito aumento na compensação assim que terminar o programa do governo, dentro de uns poucos anos, levando a números deslumbrantes mais adiante. ... Quando o Congresso limitou a dedutibilidade fiscal de salários em dinheiro a US$1 milhão, por exemplo, isto simplesmente levou a uma explosão em opções de acções utilizadas como compensação e pagamentos ainda mais elevados".

E por falar em opções de acções, também aqui o governo enganou-se a si próprio, apesar das suas promessas de assegurar que partilhará os ganhos quando os bancos se recuperarem. O senador Schumer chegou até a assegurar os eleitores que "sob qualquer plano de injecção de capital que o Tesouro efectue, os dividendos devem ser eliminados, a compensação dos executivos deve ser constrangida, e as actividades bancárias normais devem se enfatizadas". Isto era sobretudo ar quente. A Inglaterra e outros países insistiram em que os bancos não pagassem dividendos até o governo ser reembolsado. A ideia é evitar utilizar dinheiro público a fim de pagar dividendos aos accionistas existentes e a continuação de salários exorbitantes aos seus maus administradores! Mas nos termos do salvamento estado-unidense faz-se simplesmente um apelo aos bancos para não aumentarem seus pagamentos de dividendos – uma política que eles provavelmente seguiriam de qualquer forma em vista dos seus rendimentos esmagados.

O sr. Schumer beirou o ridículo quando proclamou: "Devemos operar do mesmo modo que qualquer investidor importante opera em tais situações – quando Warren Buffett investiu na Goldman Sachs e na General Electric nas últimas semanas, ele exigiu termos estritos mas não onerosos. O governo deve analogamente proteger os interesses dos contribuintes". Mas o sr. Buffett obteve um negócio muito melhor pelo seu investimento de US$5 mil milhões na Goldman Sachs, incluindo direitos (warrants) de comprar as suas acções a um preço abaixo do corrente quando ajudou a resgatar a companhia. Na Inglaterra igualmente o governo tomou a propriedade das acções aos preços baixos anteriores ao salvamento, não aos preços mais elevados posteriores ao mesmo! Mas ao invés de exercer seus direitos aos preços deprimidos em que estavam as acções dos bancos no momento em que o sr. Paulson pormenorizou os termos do salvamento, o Tesouro dos EUA poderia exercer seus direitos (igual a 15 por cento do seu investimento) só a preços que viessem a ser ajustados depois de os bancos terem tempo para recuperar-se com a ajuda do Tesouro. Portanto, os accionistas existentes beneficiar-se-ão mais do que o governo – o que é a razão porque as acções dos bancos subiram com as notícias das condições do salvamento. O sr. Paulson pode, de facto, ser culpado de fuga deliberada ao interesse público que, como secretário do Tesouro, ele é suposto defender.

Dada a sua experiência financeira, o sr. Paulson tem de saber quão enganadora foi a sua promessa de colocar tal ênfase sobre as opções de acções do governo, o incentivo que tornou tantos executivos fabulosamente ricos: "contribuintes não só possuirão acções que deveriam ser reembolsadas com um retorno razoável como também receberão direitos a acções ordinárias nas instituições participantes", explicou ele. Mas o "retorno razoável" é apenas 5% ao ano, apenas acima do que o governo tipicamente tem de pagar, não uma taxa que reflicta qualquer coisa como aquilo que o "mercado livre" agora cobra às firmas de Wall Street com situação líquida negativa. Os US$250 mil milhões do governo em acções preferenciais implicarão um dividendo que se eleva a 9% após cinco anos, sem limites sobre quanto tempo o empréstimo possa estar em curso.

Tudo o que posso dizer é, Uau! Se os proprietários de casas pudessem apenas obter uma oportunidade semelhante: uma redução na sua taxa de juros para apenas 5%, elevando-se a uma taxa penalizadora de apenas 9% – sem as penalidades pesadas e as comissões posteriores que cobra o Countrywide/Bank of America! Em contraste, bancos alemães que recebem um resgate público pagarão "uma taxa de pelo menos 2% ao ano da quantia garantida. O Reino Unido cobrará0,50% mais o custo do seguro de incumprimento sobre uma dívida do banco". Um banqueiro britânico escreveu-me que "o governo oferece acções preferenciais a 12%, e acções ordinárias a um desconto absolutamente enorme em relação ao valor do activo para proporcionar o dinheiro". Mas o governo dos EUA concordou em exercer suas opções de acções a um preço pós salvamento, não ao preço anterior ao resgate. Ele desiste mesmo da maior parte destas opções se os bancos efectuarem o repagamento do empréstimo do Tesouro. Com a desculpa de encorajar investidores privados da Wall Street a substituir a "propriedade" e a "intrusão" do governo no mercado, os bancos podem "cortar pela metade o número de acções ordinárias que o governo possivelmente poderia comprar". Isso pode ser feito se um banco vender acções no fim de 2008, e levantar pelo menos tanto dinheiro quanto o governo está a investir".

Os termos deste salvamento sugerem que aquilo que a Wall Street quer é muito mais do que os colonialistas britânicos conseguiram durante tantos anos na Índia e na África: líderes fantoches com um conselheiro político imperial, no caso da América um secretário do Tesouro e um vice-rei como chefe do Federal Reserve System. Mas o que o resto da economia precisa é um líder genuinamente livre a fim de impor leis melhores e mais justas para cancelar dívida, não para aumentá-la e ajudá-la com mais maus empréstimos. Até dentro da actual administração, Sheila Bar, responsável do Federal Deposit Insurance Corporation, queixou-se numa entrevista ao Wall Street Journal de que não entendia "Por que tem havido um tal foco político para garantir que não estamos a ajudar indevidamente os mutuários mas ao mesmo tempo estamos a proporcionar toda esta assistência maciça ao nível institucional". Ela "descreveu esforços meticulosos feitos pelos legisladores na elaboração do programa federal Hope for Homeowners a fim de assegurar lucros de revenda limitados aos mutuários que recebam empréstimos para casa em condições favoráveis".

O desequilíbrio entre exigências de credores e capacidade de devedores para pagar é o verdadeiro problema! O sr. Paulson afirmou no seu discurso de segunda-feira que precisava ir à raiz do problema económico. Mas na sua visão isto é simplesmente que os bancos "não estão posicionados para conceder empréstimos tão amplamente quanto o necessário para apoiar a nossa economia. Nosso objectivo é ... que possam fazer mais empréstimos aos negócios e aos consumidores de todo o país". Como ele explicou na sua entrevista ao Financial Times (citada acima), "pela primeira vez assistiu-se a uma acção sistemática, que está a ir às causas raízes" da crise financeira. Mas a sua perspectiva é notavelmente tacanha. Nega que o problema seja a dívida acima e para além da capacidade da economia como um todo de pagar, e mais elevada do que o preço da propriedade e dos activos comprometidos como colateral.

Criar um sistema para os bancos "saírem da dívida" significa criar ainda mais juros de dívida para a economia como um todo. Empréstimos hipotecários são aquilo que é suposto restaurar altos preços das casas e dos – precisamente o que provocou o colapso da dívida em primeiro lugar! Apesar da caracterização do sr. Paulson e da Sra. Bair da presente crise, como sendo meramente um problema de liquidez, ela é realmente um problema de dívida. O volume da dívida imobiliária, da dívida automóvel, dos empréstimos a estudantes, da dívida da banca, das dívidas de pensões de municipalidades e estados bem como de companhias privadas excedeu a sua capacidade de pagar.

Pouco após o discurso do sr. Paulson de segunda-feira, um professor holandês de ciências económica, Dirk Bezemer, escreveu-me a dizer que: "No meu pensamento comparo isto a um jogo de Ponzi onde nas etapas finais a única solução para manter as coisas em andamento um pouco mais é bombear mais liquidez para dentro. Isso é uma solução no sentido de que restaura a calma, só no curto prazo. Isto é o que vemos agora a acontecer e – apesar dos 10% de reacção hoje no mercado de acções – ainda estou a mentalizar-me para o fim inevitável do jogo de Ponzi – subitamente ou como um longo e persistente deflação da dívida". Ele continuou para explicar o que ele e outros associados meus têm estado a dizer durante muitos anos: "A solução real é separar a economia Ponzi da economia não-Ponzi e deixar a dor ser sofrida pela primeira parte de modo a salvar o que pudermos da segunda. Isto significa salvamento de proprietários de casas mas não de bancos de investimento, etc. A qualificação para esta abordagem geral é que aqueles jogadores do jogo de Ponzi cuja morte é uma real 'ameaça ao sistema' precisam de apoio, mas apenas com condicionalidades punitivas impostas. É exactamente como países do Terceiro Mundo, eles não terão uma opção".

A situação tem algumas semelhanças ao aquecimento global [1] . Os debates actuais nas eleições presidenciais propõem resolver o 'problema do petróleo' não tanto pela conservação e sim pela extracção de mais petróleo do Alasca e ao longo da costa marítima dos EUA para sustentar a crescente procura interna. O efeito desta política é aumentar a poluição do arte portanto o aquecimento global. De um modo análogo, o problema da 'poluição da dívida' está a ser 'resolvido' pela criação de ainda mais dívida, não pela redução do seu volume.

Nem o Tesouro nem o Congresso estão a ajudar na resolução deste problema. A hipótese de trabalho é que dar aos bancos e à Wall Street a recém criada dívida do governo conduzirá a mais concessão de empréstimos para re-inflacionar o imobiliário e os mercados de acções. Mas quem emprestará mais ao um sexto de lares dos EUA que se diz já terem caído no território da situação líquida negativa? Quando a deflação da dívida morder o mercado interno de bens e serviços, as vendas corporativos e os rendimentos encolherão, arrastando para baixo os preços das acções. A Wall Street está no controle, mas as suas políticas são de uma visão tão curta que eles estão a corroer a economia base a qual está a passar da democracia para a oligarquia e, na verdade, aparentemente para uma cleptocracia bipartidária.
NT:
[1] A analogia não é boa pois o dito "aquecimento global" é um falso problema, na realidade uma impostura . A razão verdadeira e poderosa para defender a conservação da energia é o Pico Petrolífero, ou seja, o esgotamento que se iniciará quando o mundo houver ultrapassado o máximo de produção possível.

Michael Hudson
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/

Sem comentários: