Qualquer semelhança entre este texto e algum outro não deverá ser coincidência
Já pensaram na pachorra que é preciso para ter um deus? Ter um amigo imaginário a meter o bedelho na vida das pessoas deve ser horrível. E no caso de Deus é mesmo de todas as pessoas. Outros deuses há que deixam em paz quem não acredita mas este mete-se em tudo. Não há dúvida que é preciso muita pachorra só para conseguir suportar este deus.
Ter um deus é ser incompreendido. Não existe nada no mundo tão fugidio, tão invisível, tão misterioso e incompreensível como os deuses. Deus, porque é Deus, está em tudo, dizem os crentes. Mas não se percebe que falta faz Deus à malária para matar crianças ou ao Sol para causar cancro de pele. Nem tão pouco como sabem que ele lá está. Por isso a certeza que Deus existe é uma das certezas mais infundadas da humanidade. E depois dizem que Deus está também acima de tudo, infinitamente acima de tudo, e que nunca O conseguiremos compreender. Ou seja, falam do que não percebem. E não é por ser tão incoerente que ninguém perceba que se justifica levá-lo a sério.
Muitos não ligam aos deuses. Aproveitam o que compreendem da realidade sem inventar mistérios invisíveis só para calejar os joelhos com obséquios gratuitos. E exigem mais. Claro. Quem constrói a sua vida assumindo-se responsável pelo que é tende a ser menos conformista que quem ganhou a existência na santa rifa da providência divina.
Aqueles que dizem que compreendem Deus são os piores. Que aldrabice. Vejam, senhores e senhoras, aqui está o mistério invisível que ninguém compreende. Dêem cá o dízimo que explicamos tudo, e ainda levam dois milagres pelo preço de um. E não se queixem se a vida vos correr mal. Agradeçam e aceitem o privilégio indiscritível de simplesmente existir, por muito sofrida que seja a existência. Ah, e não se esqueçam do dízimo.
Existir não é um privilégio. É um desafio que só vamos superando com tempo e esforço. E a liberdade não é uma dádiva que nos cai no colo mas um prémio que arrancamos à vida. Começamos a existência como parasitas agarrados à mãe. Com o nascimento pouco muda; apenas por onde nos agarramos. Durante a infância aceitamos o que nos dizem, acreditamos sem perceber, fazemos o que fazemos porque é assim que se faz. E muitos ficam por aí, escravos da “liberdade” que lhes deram. Mas outros percebem que a liberdade gratuita não é liberdade nenhuma. A liberdade não se recebe. Exerce-se. Conquista-se empurrando as restrições com perguntas e defende-se franzindo o sobrolho e dizendo explica lá isso como deve ser. O maior perigo para a nossa liberdade é julgá-la uma dádiva de outrem.
Talvez o mais ridículo seja a falsa modéstia de atribuir a um deus tudo o que temos de bom. Parece modéstia porque o crente diz não ser nada senão aquilo que Deus fez, que só conseguiu fazer algo de bom porque Deus lhe segurou a mão e essas coisas. Mas é falsa porque atribui à vontade divina o que é um simples aproveitar de acontecimentos fortuitos. Não vejo coisa menos modesta que afirmar que tudo o que me aconteceu de bom, desde os genes que tenho à educação que me deram e aos amigos que encontrei, foi assim porque um deus infinitamente sábio e justo me julgou merecedor dessas benesses. Isso é que é presunção.
Ter deuses é tão horrível que mesmo os crentes já só os toleram em abstracto. Se alguém vivo e presente se apresenta como um deus as coisas correm mal de certeza. É verdade que os egípcios tinham reis que eram deuses. Mas os egípcios percebiam que isso da divindade é só um truque para mandar nos outros. O deus é o tipo com mais poder. O chefe. Só que quanto mais poder tem o deus mais apertado lhe fica o disfarce de homem. Eventualmente, tem que ir o deus para a terra do nunca-nunca e ficar a chefia a cargo dos representantes. Um chefe omnisciente e omnipotente quer-se bem longe. Por isso se alguém diz que é o pastor está tramado. Leva dentadas dos cães que não querem perder o tacho e leva marradas do rebanho que sabe que os cães só castigam o que vêem mas julga que o pastor vê tudo.
Só com o deus morto, enfiado num buraco, tapado com uma pedra e desaparecido o cadáver é que é seguro aos representantes criar um novo rebanho. Depois basta haver ovelhas. Mas essas nunca faltam.
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