Fama arruinada, vida encantada! É segundo este mote que procedem as elites capitalistas, desde que se tornou evidente a bancarrota do neo-liberalismo. Tratando-se da salvação do sistema, já ninguém quer saber do palavreado ideológico de ontem. O capitalismo em si é bem mais sagrado do que a doutrina neoliberal que, perante a crise financeira sem controle, é “pragmaticamente” lançada pela borda fora. Intervenções maciças do Estado e estatizações em série de bancos debilitados, precisamente na Meca do neoliberalismo, os EUA, são de repente consideradas como geniais jogadas de xadrez, com o claro intuito de acalmar os mercados financeiros entrados em pânico. Os bancos emissores estatais, como “lender of last ressort” (financiadores de última instância), inundam em acções concertadas o sistema financeiro global com montantes na ordem dos biliões, “criados” do nada com um simples clique de rato. E, com empréstimos estatais e dinheiro dos impostos, são bombeadas enormes quantias para o saneamento dos falidos, colocados sob administração estatal. Após a privatização dos ganhos das bolhas financeiras, o mandamento capitalista da hora é a socialização das perdas, no processo de uma gigantesca queima de dinheiro.
O capitalismo financeiro dos últimos 15 anos transforma-se rápida e abertamente num capitalismo de Estado de tipo novo. Sob a capa do radicalismo do mercado, há muito tempo que este desenvolvimento se vinha insinuando. O chamado monetarismo, como doutrina da redução da massa monetária, um pilar central da ideologia neoliberal, há anos que entrou em queda. O financiamento baseado no deficit da aclamada conjuntura mundial já era o resultado de uma desenfreada onda de dólares saída do banco emissor dos EUA. Desde o começo da crise financeira de 2007, revelou-se em surtos sucessivos a falta de substância desta retoma aparente, que para a maioria nunca o chegou a ser. Quando agora o Estado, como última instância, assume toda a coisa, só pode ser para administrar as contradições de um sistema ferido de morte no seu âmago. A enchente de dinheiro induzida pelo Estado consiste oficialmente em créditos de curto prazo aos bancos, que por isso têm de depositá-los, sob a forma de certificados de garantia dos papéis de crédito que já não o são. A crise financeira é assim apenas adiada e em consequência também são atingidas as finanças do Estado, que têm de assumir a responsabilidade pelo desastre.
É vã a esperança em que a máquina da valorização volte a pegar de novo após as precárias acções salvadoras. Na terminologia de Marx, as diversas formas de crédito consistem numa antecipação de mais-valia futura. A valorização real tornou-se cada vez mais dependente desta antecipação, num processo secular que se super-expandiu sob as condições da terceira revolução industrial, porque a massa de mais-valia já nunca é suficiente. A mobilização de mais força de trabalho, por exemplo na Ásia, não se faz com ganhos reais, mas com as bolhas financeiras. Por isso a repercussão da crise financeira sobre a conjuntura real mundial é inevitável, mesmo sob a égide de um capital financeiro estatizado. Naturalmente que esta lógica é agora negada, como se a economia real fosse relativamente independente da catástrofe no céu financeiro. Mas a repercussão chegará precisamente sobre o sistema de crédito, numa dimensão muito mais alargada do que se quer admitir. É uma ironia da história que seja precisamente a comunidade dos crentes no mercado a ter de invocar como “deus ex maquina” o Estado, cuja capacidade de desempenho é mais que duvidosa.
Robert Kurz
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