Estação espacial "Lusitânia", 12 de Março de 2999
Antigamente, os professores perdiam horas a fazer o que se chamava “investigar”, depois continuavam com o que se denominava “preparar aulas” e, finalmente, dedicavam-se àquilo que os antigos designavam, com muita graça, “dar aulas”. Estas expressões castiças têm um relativo encanto, à semelhança de outras caídas em desuso como “escola cultural” ou “conteúdos programáticos”, sintomas de um primitivismo felizmente ultrapassado.
Tudo começou a mudar no dia 12 de Março de 2005. Maria de Lurdes Rodrigues, como todos os génios, não tinha a certeza absoluta do que queria fazer e talvez nunca tenha tido, mas, com a mesma presciência inconsciente de Galileu, decidiu que a Escola não podia andar à volta dos professores. Decidiu também que os professores não podiam andar à volta da Escola. Era preciso pô-los dentro da Escola e deixá-los sair por poucas horas. Na realidade, não havia nada mais perigoso do que um professor à solta. Alguns chegavam mesmo a ir a Bibliotecas, acto tão revoltante que não há relativismo cultural que o salve. Por muito que custe dizê-lo, o professor, naquele tempo, era um intelectual.
Fora da Escola, já existiam o Mercado e a Empresa, ou seja, a Realidade. No entanto, debaixo da influência perniciosa dos professores, a Escola insistia em cultivar os cidadãos. É certo que estes, antecipando o futuro, já resistiam heroicamente a essa ditadura que os queria transformar em seres inutilmente pensantes. Felizmente, a televisão já tinha a telenovela e os jornais já eram escritos por iletrados. A Escola era o último reduto que resistia ainda e sempre à ignorância fundamental que deve enformar qualquer cidadão cumpridor.
Era preciso actuar. Maria de Lurdes sabia que os professores não tinham muito tempo livre. O problema estava, antes, numa péssima utilização do tempo. Havia que reorientar uma classe inteira. A tarefa não era fácil. Isso, no entanto, não fez desistir a nossa heroína. Começou por diminuir o número de funcionários não docentes nas escolas. Ao mesmo tempo, inventou a brilhante estratégia das “aulas de substituição”, um case study reconhecido mundialmente no âmbito da psicologia de massas. Ao obrigar os professores a estar mais tempo na Escola, estes viram dificultada tarefas como “preparar aulas” ou “corrigir testes”, actividades actualmente estudadas no âmbito da Arqueologia. Ao mesmo tempo, como é evidente, os professores não tinham igualmente tempo para preparar as tais “aulas de substituição”. Com o brilhantismo que a História lhe reconhece, a então Ministra da Educação afirmou que esses eram os momentos ideais para que os professores pudessem “ler poesia ou dizer umas graças”. Com esta frase pétrea, Maria de Lurdes deixava implícito o fundamental: preparar actividades lectivas (regulares ou de substituição) era uma actividade condenada à extinção. O paradigma começou a alterar-se aqui.
Entretanto, os professores, com o espírito obnubilado pelo fundamentalismo do saber e obcecados por encher os alunos com excrescências como “conteúdos”, mantinham-se convenientemente distraídos. Isso permitiu a Lurdes avançar com outras medidas igualmente proféticas. Ciente de que a melhor forma de aprender é diplomar ou aprovar, confirmava-se a docência como uma função desnecessária a qualquer sociedade, incluindo a primitiva, como se pode comprovar pelo facto de que o polegar oponível e a posição erecta surgiram sem a necessidade de professores. Estes foram, então, lentamente despojados da sua condição de intelectuais para passarem a ser os profissionais indiferenciados de que a Escola necessitava. Foi desse modo que terminaram a formação contínua, a especialização científica, a participação na gestão das escolas, a exigência curricular e muitas outras coisas que colocavam graves dificuldades ao acesso dos alunos aos diplomas, obrigados que eram por essa gente sádica a ocupar o cérebro com conhecimentos tão inúteis como a tabuada e a ortografia, quando lhes bastava saber ligar um computador e usar uma chave inglesa.
Foi graças a este verdadeiro milagre de Lurdes que chegámos aos tempos gloriosos em que vivemos neste ano de 2999, às portas do século XXXI, em que, para seu castigo e proveitosa redenção, os reclusos passaram a desempenhar as funções de professor. Pois se Maria de Lurdes nos convenceu de que os professores são criminosos, fácil foi concluir que o ideal seria fazer de cada criminoso um professor. Apenas o facto de viver nas trevas a impediu Maria de alcançar tal visão, mas temos de lhe agradecer o facto de ter aberto o caminho. A figura do professor-recluso tornou-se o veículo ideal para o sucesso. Uma vez que acabou a instituição "aulas", o professor-recluso limita-se a validar competências, sempre convenientemente vigiado. Qualquer veleidade, como pronunciar a palavra “reprovação” ou tentar marcar trabalhos de casa, leva o recluso à solitária, donde sai com renovada vontade de qualificar. É certo que dentro dessas prisões continua a haver tráfico de livros e até de ideias, mas enquanto isso estiver circunscrito não virá grande mal ao mundo.
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