José Gil «Revista PÚBLICA»
Pública (P.) — Depois da leitura do seu livro, é impossível não se ficar deprimido.
José Gil (R.) — Hesitei muito antes de o publicar. Decidi fazê-lo, porque acho que estas coisas devem dizer-se publicamente, e não apenas em circuitos fechados, como habitualmente. E também porque penso ter encontrado um fio condutor, que dá unidade a tudo o que afirmo.
P. — É aquilo a que chama "não inscrição". Que significa?
R. — Significa que os acontecimentos não influenciam a nossa vida, é como se não acontecessem. Por exemplo, quando uma pessoa ama, esse sentimento não afectar a outra pessoa, objecto do amor. Quando acabamos de ver um espectáculo, não falarmos sobre ele. Quando muito, dizemos que gostámos ou não gostámos, mais nada. Não tem nenhum efeito nas nossas vidas, não se inscreve nelas, não as transforma. Ainda outro exemplo: o primeiro-ministro, Santana Lopes, classificou a dissolução da Assembleia da República pelo Presidente como "enigmática". Não disse que era incorrecta ou injusta, mas "enigmática", o que é a forma mais eficaz de a transformar em não-acontecimento.
P. — E, não tendo acontecido, ninguém é responsável.
R. — Exactamente. Pode-se continuar como se nada se tivesse passado. Os acontecimentos não se inscrevem em nós, nem nas nossas vidas, nem nós nos inscrevemos na História. Por isso, em Portugal nada acontece.
P. — Isso vem de onde?
R. — Do medo. E da falta da ideia de futuro. Vivemos num presente que se perpetua. Não se inscreve em nós o futuro nem o passado, a História. Porque temos medo.
P. — E de onde vem o medo?
R. — Uma vez fiz essa pergunta a José Mattoso. Perguntei-lhe se vinha do salazarismo. Ele respondeu: "Muito antes disso." Mas não precisou de onde. Acho que ninguém sabe. Claro que no chamado "antigo regime", ou no feudalismo, imperava um medo real, físico.
P. — Mas isso acontecia em toda a Europa. Específico de Portugal é esse medo não ter cessado?
R. — Sim. Existiu durante o salazarismo, que vivia do medo. Tínhamos medo de tudo.
P. — Mas era um medo hierárquico, de cima para baixo. Como se transformou num medo do nosso semelhante?
R. — Acho que no salazarismo já havia um medo do semelhante, além do hierárquico, que desapareceu, porque estamos numa democracia. Mas herdámos o medo, que se transformou. Acho que a principal razão foi por que não criámos suficientes instrumentos de expressão.
P. — É através da expressão que nos podemos livrar do medo?
R. — Nós temos uma pobreza enorme de expressão em relação à nossa existência. O que sabemos de nós, hoje, é pouquíssimo. Por exemplo: o que uma mulher pode sofrer, com a sua condição de inferioridade social, com os dramas domésticos... Tudo o que se diz, mesmo o que aparece na literatura, não exprime o que ela poderia sentir, e acaba por fazer com que ela não possa sentir o que verdadeiramente sente.
P. — Não pode sentir, porque não o pode exprimir?
R. — Sim. A expressão abre para o fundo, não apenas para fora. Mas nós estamos agarrados a um texto e não temos forças para sair dele.
P. — Uma espécie de norma?
R. — É o texto da sociedade normalizada, do bom senso, do política, social e afectivamente correcto. Assisti há dias a uma discussão de um casal, num jardim. O marido dizia-lhe: "Não aqui! Não aqui!" E a mulher calava-se logo. Temos um texto que nos diz o que podemos viver.
P. — É o medo que nos impede de rasgar esse texto?
R. — Nós temos medo de experimentar. Porque temos medo do que irão dizer de nós. Partimos sempre do princípio de que o que vão dizer é negativo, desvalorizante. Dificilmente alguém dirá: "Que bom o que tu fizeste. Estou muito contente." Não. Vão-nos decerto criticar. Isso cria logo um medo que nos paralisa. Faz com que tenhamos prudência. Bom senso.
P. — Mas a prudência e o bom senso poderiam ser atitudes positivas, para nos guiarem na acção...
R. — Qual acção? A prudência paralisa a acção.
P. — Então não é uma verdadeira prudência.
R. — Pois não. A verdadeira prudência seria uma estratégia para medir e modular a acção, à medida que ela se desenrola. Mas nós não queremos é agir. Porque a sociedade portuguesa, ao contrário de outras, é fechada, não tem canais de ar, respirações possíveis. É uma sociedade suavemente paranóica. As pessoas estão demasiado conscientes de si próprias, o que é um horror. Conscientes da imagem que possam produzir, da sua presença como imagem nos outros. Isso é paralisante.
P. — Damos muita importância à nossa imagem?
R. — É uma obsessão. Estamos sempre a falar da auto-estima, esse termo horroroso.
P. — O que há de errado com a auto-estima?
R. — Essa ideia reflexiva, de nos amarmos a nós próprios... Em vez de estarmos virados para fora, para os outros, para o mundo. Só nos podemos afirmar agindo, exprimindo-nos - não voltando-nos para a autocomplacência. Tudo o que é válido vem "de fora". Nós ainda temos essa ideia de que é preciso começar por uma transformação interior... Mas, em Portugal, não existe um "fora".
P. — Isso quer dizer que não existe um espaço público?
R. — Não, não existe. O salazarismo extinguiu-o. Depois do 25 de Abril, passámos do zero para o máximo de expressão. Mas não tínhamos os instrumentos para essa expressão. Por isso, as forças reais do poder-saber, políticas, voltaram a dominar. Toda a nossa expressão individual, social, passou a reduzir-se ao discurso político. E no espaço público instalou-se em força um dispositivo que ocupou o lugar todo: a televisão, e os "media" em geral.
P. — Os "media" não são espaço público? Funcionam em circuito fechado?
R. — Movem-se em circuito fechado. Têm uma acção de absorção. Só se existe se se aparecer na televisão. Mas estar e aparecer na televisão não é a mesma coisa do que viver a vida, na materialidade das ruas e do tempo.
P. — Mas isso não é um fenómeno exclusivamente português.
R. — Não, mas em Portugal a televisão criou um espaço de imagem antes de termos passado por aquilo a que podemos chamar um "espaço de terrível liberdade", de experimentação, de inscrição, que foi a modernidade.
P. — Houve um salto. Mas isso nunca se vai recuperar.
R. — Com certeza que não se vai voltar atrás. Mas é preciso recuperar aquilo que nos é sugado por esse espaço de imagem e que é a vida dos corpos. Os acontecimentos da existência, no que têm de invenção. Na televisão tudo está formatado, não há imprevisto, encontro. O acontecimento é o resultado de um encontro. Mas nós temos medo do acontecimento. Medo da mudança, medo do futuro, medo do julgamento dos outros, medo de não sermos capazes. Medo de não estar à altura do acontecimento.
P. — É um medo da responsabilidade, um medo infantil?
R. — Sim, a nossa sociedade tem algo de infantil, mas sem a vivacidade das crianças. É a outro nível que temos de ter vida. O português não é um adulto autónomo por si. Uma comunidade de crianças não é o mesmo que uma comunidade de adultos. Nós ainda não chegámos à comunidade de adultos. Há pormenores... o tratamento por "pá", por exemplo...
P. — Traduz uma grande familiaridade, ou é outra coisa?
R. — É o reconhecimento de que o homem é nu, para usar uma terminologia de Hanna Arendt.
P. — Serve para colocar o outro ao mesmo nível, como que a dizer-lhe: a mim não me enganas?
R. — Sim, e somos iguais. Vou contar-lhe uma cena que me espantou: quando o Jorge Sampaio era presidente da câmara, apareceu na televisão a passear pelo Casal Ventoso com uma série de delegados de Bruxelas. Quando foi abordado por um drogado, disse-lhe: "É pá, afasta-te, que estou aqui a ver se sacamos algum dinheiro a estes tipos." Isto é extraordinário.
P. — Não resistiu a estabelecer uma cumplicidade com o drogado.
R. — Sim, como se ele fosse da mesma...
P. — Laia.
R. — Exactamente, laia. Nós, que somos iguais, inferiores, estamos a ver se sacamos... O Sampaio é muito expressivo de certas coisas portuguesas.
P. — Cultivamos uma intimidade forçada, pouco natural, promíscua?
R. — Sim, há uma promiscuidade social que se deve à falta de autonomia individual. O salazarismo infantilizou-nos, fez-nos viver num mundo fictício e sugou-nos todas as forças. Eu não quero culpar o salazarismo por tudo, mas a verdade é que foram 48 anos de não inscrição, de não acontecimento. E herdámos isso. Ainda não recuperámos. O ambiente em que vivemos não nos permite ter intensidade de vida, de pensamento, de acção, para que possamos inscrever-nos na nossa própria vida, na Europa, no mundo global, etc. Uma vez assisti a uma entrevista com o jovem físico português, João Magueijo, que vive em Inglaterra. A repórter perguntava-lhe: "Você trabalha com matemática, não em laboratórios. Não podia ter descoberto essas teorias em Portugal?" E ele respondeu imediatamente: "De maneira nenhuma. Sabe porquê? Por causa da intensidade das trocas de pensamento em que eu vivo quotidianamente. É isso que me faz pensar."
P. — A influência "do fora".
R. — Absolutamente. É essa intensidade que nos falta. Nós somos tão inteligentes como os outros. Somos inventivos, produzimos. Mas caímos nisto.
P. — A incapacidade de agir vem de dentro, do nosso medo. Mas, quando alguém tenta, o que acontece? Temos a aprovação ou a sanção dos outros?
R. — Uma sanção terrível. É o mecanismo da inveja.
P. — Não agimos, mas também não deixamos ninguém agir. Como funciona esse mecanismo?
R. — O mecanismo da inveja tem a ver com práticas da magia, o "mau olhado", o "quebranto", e também com o que em psiquiatria se chama "transferência psicótica", ou seja, o que passa de uma pessoa para outra e não é verbal. Imagine que você chega ao pé dos seus colegas e diz: "Fiz uma reportagem extraordinária!" E não está a falar por vaidade, mas objectivamente. Mas logo o tipo que está a seu lado diz: "Ai sim? Pois muito bem." E com este tom introduz em si um afecto inconsciente que o vai paralisar.
P. — É um mecanismo semelhante ao do ostracismo?
R. — Exactamente. Cria-se um ambiente que é hostil à iniciativa e que tem um efeito sobre a própria vontade de querer fazer. Isto é generalizado em Portugal. A inveja é mais do que um sentimento. É um sistema. E não é apenas individual: criam-se grupos de inveja. Várias pessoas manifestam-se simultaneamente contra a sua iniciativa. Cria-se um ambiente de inveja. Um grupo determinado age segundo os regulamentos da inveja.
P. — É uma atitude concertada ou inconsciente?
R. — Pode ser concertada ou inconsciente, mas funciona. Não se permite que numa empresa, num escritório, ninguém ultrapasse a linha da média baixa. Vivemos reconhecendo-nos como irmãos na desgraça.
P. — Mas por que se faz isso? Não seria do interesse de todos encorajar cada um a fazer melhor?
R. — Sim, mas há um efeito de espelhos. Se você faz alguma coisa de forte, isso deveria ser um estímulo para mim, para fazer algo também forte. Mas não. Vê-lo forte diminui-me a mim. Vê-lo com intensidade, com iniciativa, faz-me pensar, por causa da imagem que tenho de mim, na minha pobre condição, em que não faço nada. E faço tudo para destruir a sua iniciativa, para que eu possa viver. Você sufoca-me com a sua energia. Terrível isto. Uma pessoa sufoca a outra com a sua energia. E o resultado é que estamos todos sem energia.
P. — Mas para que essa acção da inveja tenha efeito não é necessário que a "vítima" esteja vulnerável?
R. — Precisamente. Um etnólogo pôs-me essa questão. Disse: só se é afectado pela inveja quando se quer, quando se está num estado determinado. Eu respondo: sim, em quem tem a pele grossa não entra nada. São as pessoas porosas que são fragéis. E isso é típico de Portugal. Os portugueses são sensíveis, porque não são maduros. Isso poderia ser maravilhoso. Somos pessoas de pequenas percepções, de intuições imediatas, e por isso sentimos quando alguém está a torcer para que não avancemos. Faz curto-circuito, fecha o espaço das possibilidades. É um sistema.
P. — Uma espécie de acordo tácito para que ninguém aja, ninguém ameace, e possamos viver em paz.
R. — Precisamente. Para que possamos viver em paz. Porque temos medo do conflito.
P. — Daí os "brandos costumes"?
R. — Recusamos o conflito a céu aberto, mas temos uma violência incrível na nossa sociedade. Violência doméstica em relação às crianças. Os brandos costumes escondem uma violência subterrânea enorme. »
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