Tornou-se evidente que o capitalismo caminha para uma crise económica global com consequências profundas. Quando de repente até nos talkshows se faz a comparação com 1929, e quando o aviso de um “colapso” iminente sai atabalhoadamente da boca para fora do ministro das Finanças alemão, Steinbruck, bem como do novo Vice-Presidente dos E.U.A., Biden, já não pode ser negado que a crise da 3ª revolução industrial, há muito latente e sempre minimizada, assumiu uma nova qualidade. Com isso adquirem, muito mais do que até aqui, um conteúdo imediato de realidade as teses e análises sobre a teoria da crise da crítica do valor, depois crítica da dissociação-valor, que sempre foram fundamentalmente rejeitadas, tanto pela esquerda residual reunida como pelo entendimento burguês da ciência. O supostamente impossível começa a tornar-se efectivo. Com isto não se “prova”, em sentido positivista, que se erga uma barreira absoluta à valorização. Mas não será o momento um pouco inapropriado para desqualificar a teoria radical da crise como “não empírica” e declará-la refutada, tanto conceptual como historicamente?
Naturalmente que a consciência dominante resiste ao ponto de vista de que, segundo todos os sinais, se trataria de algo que não apenas um movimento cíclico descendente. Ainda antes de o arrasador impacto do colapso económico ter atingido a vida quotidiana, já em toda parte se presume que dentro de alguns meses, ou no máximo um ano, todos sobreviverão satisfeitos e as coisas capitalistas estarão de volta ao seu “normal”. Segundo as últimas sondagens Forsa, apenas 18 por cento de cidadãos alemães acreditam que em 2009 virá uma “deterioração” económico-social. Esta confiança, baseada na ignorância de um pensamento positivo enlouquecido, está em flagrante contradição, por exemplo, com as declarações do gestor de topo da Toyota sobre uma “situação nunca vista”, ou da maioria dos investigadores da economia, que duvidam da sua própria capacidade de previsão. Se até mesmo o discurso oficial académico e político vê em risco as bases sistémicas que ele, naturalmente, quer salvar a qualquer preço, então não terá de ser a teoria crítica da dissociação-valor a desculpar-se pelos prognósticos por si há muito apresentados de uma crise histórica da valorização do capital.
Não foi por acaso que a abordagem da nova teoria radical da crise desde o início suscitou a mais violenta reacção de defesa, precisamente da indústria da consciência de esquerda. Para uma crítica superficial do capitalismo, de proveniência marxista ou pós-moderna, sem dúvida que a argumentação popularmente designada como “ teoria do colapso” é uma palavra excitante. Este conceito, inventado por Eduard Bernstein no final do Século XIX com intuitos pejorativos, tinha de se tornar mais do que nunca em anátema para uma empresa da política e do movimento, que desde sempre se limitou ao tratamento da contradição imanente ao capital. O facto de aí se supor que o capitalismo só poderia encontrar um limite quando as pessoas deixassem de o “desejar” constitui uma alegação defensiva. Na realidade, este credo comum da esquerda pressupõe uma compreensão positivista das categorias de base do capital e a sua aceitação como condição ontológica. Essa é a razão pela qual o capitalismo, para este pensamento, não pode esbarrar num limite objectivo. Portanto, a teoria radical da crise só foi denunciada como “objectivista” porque não se quer romper o quadro das formas sociais postas pelo capital. Crítica categorial sem resseguro ontológico e crise categorial como limite interno estritamente objectivo da produção de mais-valia são mutuamente interdependentes; assim como, vice-versa, uma crítica truncada, que não vai aos fundamentos, e o postulado de que a produção de mais-valia deve ser capaz de se regenerar eternamente.
Esta constelação fundamental define o debate teórico já desde as primeiras manifestações de crise da 3ª revolução industrial, há mais de duas décadas. O entendimento positivista das categorias burguesas bloqueou em 1989-91 o ponto de vista da teoria da dissociação-valor de que o socialismo real era essencialmente um sistema de capitalismo de Estado de “modernização atrasada”, e que o seu colapso só podia ser a manifestação de um limite histórico da valorização do capital e do mercado mundial no seu conjunto. Para grande parte da esquerda, esta ruptura de época ficou até hoje por digerir. Em vez disso, muitos velhos marxistas desmoralizados “chegaram” a um falso “realismo” em relação ao sistema produtor de mercadorias, indo até à fantasia de uma “economia socialista de mercado”. A esquerda pós-moderna mais uma vez deixa a totalidade negativa da relação de capital desaparecer em micro-conflitos particulares e a objetividade negativa de suas categorias desaparecer no regateio do mercado dos discursos. É comum a todas as fracções pretenderem entender a economia das bolhas financeiras como um “novo modelo de acumulação” e a circulação “anti-substancialistamente” como um modus de sociedade autêntico.
Mesmo o rebentamento da bolha dot-com após a viragem do século e a subsequente recessão mundial, que durou apenas um curto período de tempo, já parecia não poder fazer mal ao capitalismo. No entanto, era impossível não ver que a conjuntura global de deficit, euforicamente calculada já até bem dentro do século XXI, não atingia a maioria. A precarização social de massas, sofrida na pele pelo menos desde Hartz IV, parecia trazer novamente de volta à ordem do dia a crítica da economia política de Marx, antes posta de lado em grande medida. Pertence ao trabalho de recalcamento de esquerda o facto de, na circunstância, muitos terem recorrido à reformulação feita por Michael Henry, no contexto da “nova leitura de Marx”, que prometia fornecer uma refutação da teoria radical da crise da crítica do valor. Tratava-se apenas da tentativa de destruir afirmações centrais da crítica radical da economia. Em particular deviam ser riscados do inventário teórico o conceito de substância do “trabalho abstracto” de Marx, como suposta determinação “naturalista” e “objectivista”, e a “Lei da queda tendencial da taxa de lucro”, como suposto acto falhado elementar de Marx, para poder escamotear a auto-contradição capitalista, e de antemão quebrar o gume da teoria da crise. A renovada preocupação com a crítica da economia política serviu apenas para reforçar o dogma do capitalismo como eterno retorno do mesmo.
Acreditava-se desta forma poder pôr de lado a teoria de um limite interno absoluto da valorização, com um gestus de esclarecida superioridade, sem ter de se debater com ela a sério. Tanto mais embaraçosa é a catástrofe no sistema financeiro e de crédito desde o Outono 2008, aparentemente caída do céu sereno, quase simultaneamente no mundo inteiro, e que há muito tempo se insinuava paralelamente à conjuntura de deficit. A dinâmica da crise agora facticamente atingida já desmente o discurso público cientificamente “sério” de fim de alerta nos últimos anos, desde a economia política académica oficial até ao pós-marxismo de Heinrich, que à primeira vista se tinha agarrado a “factos” descontextualizados; por exemplo, referindo-se ao suposto “milagre do crescimento” na Ásia. O que tem sido suspeitamente silenciado na selva mediática da esquerda, desde o início do novo desabamento da crise. É um comportamento perfeitamente “terra a terra”, desde logo como a avestruz da fábula, que esconde a cabeça na areia, esperando que assim também ela não possa ser vista. À esquerda académica e à consciência do movimento não restam quaisquer instrumentos disponíveis para explicar e analisar a derrocada da economia mundial.
Nesta situação, a rejeição da teoria radical da crise reafirmou-se ainda mais. É verdade que a consequente reformulação da crítica radical nos anos 90 causou uma certa sensação, porque oferecia uma explicação alternativa do colapso do socialismo real e causava um certo estremecimento consentido. Gradualmente, porém, os destinatários volúveis e teoricamente apenas gulosos aborreceram-se com os prognósticos de crise da crítica do valor, na sequência da hegemonia do discurso pós-moderno e da dominação social mundial do capital virtualizado. Uma vez que agora é realmente a sério, por isso mesmo já não se quer saber do assunto. Mesmo a “crítica do valor” truncada começa a dar o berro, uma vez que já tinha amputado a definição conceptual dum limite histórico do capitalismo, para se tornar compatível com as necessidades de uma falsa imediatez de “pseudo-atividade” aferida pela ideologia do movimento. Entretanto, a ponta de lança deste movimento de retirada chegou ao ponto de reduzir a crise a uma barreira exterior puramente ecológica e ao esgotamento dos recursos materiais. O autor da “Krisis” residual e da “Streifzüge”, Andreas Exner, mais ou menos em linha com o consenso académico de esquerda, não só se afastou da teoria radical da crise, mas ainda lançou sumariamente borda fora todas as bases da crítica da economia política. Como variante da “despedida de Marx”, qualquer dialéctica de forças produtivas e relações de produção é fundamentalmente negada, para dar lugar a uma unidimensional e francamente reaccionária crítica das forças produtivas, que já antes tinha assombrado os anos 80.
Não deve surpreender que a fuga à teoria da crise da crítica do valor tenha lugar precisamente na medida em que esta se torna empiricamente tangível. Isso está ligado à fuga da crítica categorial, incluindo a crítica da relação de dissociação sexual. Essa ignorância específica pode-se enquadrar num contexto mais vasto. O esforço para enquadrar-se, precisamente agora, na habitual emoção da esquerda contra a “teoria do colapso”, revelou uma “disposição” que parece ir mais fundo do que todas as fragmentárias recepções da reflexão da crítica do valor. Trata-se de uma barreira do pensamento burguês, esquerda incluída, que se agarra às “formas de existência objectivas” e assim às “formas de pensamento objectivas” com tanto mais força quanto mais claramente entra em cena a obsoletude histórica da socialização do valor.
A nova dimensão da crise mundial vai para além da economia em sentido estrito. Tanto mais ela desperta todas as fúrias da afirmação ideológica a qualquer preço. Já antes a ideologia anti-alemã se tinha retirado para a linha defensiva da filosofia iluminista burguesa, em nome de uma política pseudo-realista de “salvação da civilização” através da guerra de ordenamento mundial capitalista. No mesmo contexto se enquadra a tentativa das esquerdas da política e do movimento de, perante a actual crise, insistir em pânico no velho keynesianismo de esquerda, ou em conceitos baratos de uma “economia alternativa” local ou digital. Nem o “capital fictício” evaporado pode ser reorientado para investimentos em postos de trabalho com a regulação estatal, nem uma economia de subsistência ou de vizinhança, ou um bazar virtual de dádivas, podem suster o colapso da socialização capitalista.
Por muito diferentes e superficialmente contraditórias que possam ser todas estas formas de assimilação, elas têm uma coisa em comum, a saber, apesar de toda a “desconstrução” fenomenológica, novamente a fixação desesperada na forma de sujeito burguês universalista androcêntrica e na história da modernização que nunca deve chegar ao fim. O resultado é um recuar com medo perante as consequências da crise categorial, que atordoa qualquer capacidade de reflexão. Uma vez que os vários momentos de crise são jogados uns contra os outros apenas exteriormente, continua a negação pós-moderna de qualquer crítica da ideologia. O pensamento categorialmente afirmativo move-se em círculos de antagonismos inconsistentes, que continuam integrados no contexto da socialização do valor em ruínas. As efervescentes ideologias de crise anti-semitas, racistas e sexistas da exclusão projectiva também só podem ser jogadas umas contra as outras e banalizadas em diferentes graus.
A consciência teórica, na medida em que ainda existe, deve ser silenciada. Se a situação se torna melindrosa, é oportuno esquecer tudo o que talvez já se tenha aprendido. Também aqui se pode partir do “relativismo absoluto” da ideologia pós-moderna, embora esta tenha correspondido com bastante exactidão, como “moeda falsa do espírito”, ao sistema das bolhas de crédito, que se desmorona sob os nossos olhos. Mas precisamente por isso é que a continuação deste pensamento, que já nem pensamento é, melhor serve a política de avestruz. Se a realidade também representa apenas uma ficção, já não é preciso levar a sério a coerência da teoria crítica e podemos entregar-nos às alegrias do eclectismo. Com o pânico da crise em mente, contudo, o lúdico zapping das teorias transforma-se em forte ressentimento contra os teóricos e teóricas. Na paisagem dos círculos de esquerda, o lugar da elaboração teórica digna desse nome deve ser ocupado, de modo notoriamente definitivo, pelo papagueador de opiniões do caos dos blogs, descomprometido e teoricamente cada vez mais infundamentado. A ilusão de ter-se emancipado de critérios objectivos permite à ignorância cultivada fazer-se rogada na crise mundial; pelo menos enquanto, simultaneamente, se gostaria de imaginar poder escapar ileso.
Esta unidade de ignorância da crise e rejeição da teoria pretende imunizar-se, na medida em que procura travar qualquer posicionamento de conteúdo através de um suspeito truque de estratégia discursiva. Quanto mais claro se torna que a consciência regressiva de uma esquerda minguante na crise só pode tornar-se assunto na forma da polémica, tanto mais pega o impulso para tabuizar e banir do discurso a acuidade dos conteúdos. A este respeito, por sua vez, o modo de pensar pós-moderno continua, precisamente porque se desfazem os seus pressupostos sociais: se de qualquer maneira já nada mais funciona, porque tudo não passa de um constructo, então, para os flexi-indivíduos, levanta-se a exigência de “reconhecimento” geral e de acabar com qualquer “luta pela verdade”. Enquanto a ideologia pós-moderna ainda sabia sem dúvida que o discurso era mesmo assim um “jogo de poder”, sem no entanto reflectir sobre o contexto da sua condição social, os filhos dos cidadãos da ideologia da alternativa gostariam de se presumir apenas e só sujeitos do conhecimento neutrais e inocentes, que entre si se presenteiam afectuosamente com argumentos, num bunker protegido de bem-estar. Esta tentativa de transformar o debate teórico numa distribuição natalícia de presentes à moda alemã durante todo o ano é, no entanto, o caminho mais seguro para o massacre geral.
Trata-se de uma maneira particularmente pérfida de, à revelia da capacidade de fundamentação dos conteúdos, colocar a questão do poder sob a máscara da brandura, desactivar a radicalidade particularmente da crítica da dissociação-valor, tornada desagradável face à manifesta ameaça de crise existencial, e abafar com um imperativo categórico a candura que, simultaneamente, deve esconder o decaimento no padrão de assimilação da ideologia de crise. Por isso, são precisamente os stripteasers teoricamente sub-iluminados na pequena Bizâncio do relacionamento dos círculos de esquerda que têm de comportar-se como “Action Man” e perante os quais se teria de comparecer em primeiro lugar pessoalmente. É um insulto aos 200 anos de crítica feminista que, para cúmulo, qualquer polémica contra o embotamento teórico seja denunciada como “ilusão de masculinidade”, com a “feminilidade” a ser considerada bastante conforme à dissociação como “nada pobre” relação de apaziguamento, que também se tenciona instrumentalizar.
Com um ar bem estudado, os falsos bonzinhos e estrategas do desvio do galopante oportunismo de crise anunciam que não gostariam de construir qualquer “nova sociedade” do amor universal com os críticos e críticas da teoria radical da crise, pelos quais o debate também é agudizado com a crítica da ideologia e os quais por isso seriam “destituídos de qualquer humanidade”. Esta rejeição é inteiramente baseada na reciprocidade. A postura pequeno-burguesa da alternativa de esquerda, apregoando com voz disfarçada as fraquezas humanas, é ela própria uma mensagem da barbarização. No entanto, a ignorância teórica e prática já não ajudará as pessoas comuns, nem os seus vários ideólogos, assim que as relações da vida pessoal ficarem esmagadas. As grandes crises sempre são também locomotivas de conflitos sociais a todos os níveis e em todos os contextos. As contradições mantidas tapadas rebentam, mesmo no caso dos próprios artistas do enevoamento e da minimização.
Se não lhes ocorrer mais nada do que pretender também continuar a descrever de modo meramente restritivo as condições elementares de existência da socialização do valor, negando os seus limites históricos, grande parte da esquerda corre o risco de se enquadrar de uma maneira ou de outra nos modelos de administração capitalista do estado de emergência. Isto aplica-se à nostalgia keynesiana, assim como ao reducionismo ecológico de Exner & Cª, que já pisca o olho à ideologia da renúncia abstracta e à redução geral do nível de vida, enquanto certifica uma ininterrupta “capacidade de rejuvenescimento” do contexto da forma da valorização. Perante esta síndrome global o que é preciso não é qualquer “entendimento”, mas uma saudável intolerância, confrontação e polarização; também como defesa contra a tentativa de interromper e repelir discursivamente a crítica categorial da dissociação-valor e a sua teoria radical da crise e de desviar dela as jovens gerações intelectuais - e precisamente porque ela ameaça confirmar-se mais amplamente.
A questão de saber se a posição dos autores e autoras ligados ao projecto EXIT! consegue afirmar-se perante a opinião pública na crise histórica, sob condições de hostilização agravada, seguramente depende de que continue a encontrar mais do que um interesse descomprometido. Até aqui pudemos ver como vantagem a relativamente ampla divulgação das nossas publicações em diversos meios sociais. A crítica da dissociação-valor nunca esteve presa à habitual administração uniformizada dos círculos de esquerda. Em 2009 e anos subsequentes importa conseguir uma ofensiva de conteúdos e não nos cansarmos numa simples luta pela sobrevivência, como se pode esperar duma multiplicidade de projectos. De qualquer maneira não faz sentido apregoar a teoria crítica como uma cerveja amarga. Contra a generalização das tendências regressivas, há que contar somente com uma visão intelectual que não tem de ser persuadida apenas com slogans publicitários para apoiar material e organizativamente a continuação da elaboração teórica da EXIT!.
Robert Kurz
http://obeco.planetaclix.pt/
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