Como se enquadra a actual crise financeira no contexto do desenvolvimento da crise estrutural do capital?
É teoricamente errado falar de uma crise financeira autónoma, cuja “repercussão” sobre a chamada economia real seria incerta e possivelmente moderada. Expressa em termos da teoria de Marx, a crise financeira só pode ser uma manifestação da falta de condições de valorização real do capital. O sistema financeiro e de crédito não é um sector autónomo, mas uma componente integrante na reprodução ampliada do capital total. Aqui surge uma contradição, que se agrava com o desenvolvimento progressivo. A expansão do sistema de crédito em si não é nova, já percorreu um processo secular. Isto reflecte um mecanismo descrito por Marx como “aumento da composição orgânica do capital”. Com o aumento da cientificização da produção cresce a proporção de capital constante (máquinas, equipamento tecnológico de controlo, comunicações e infra-estrutura, etc.) em relação ao capital variável (força de trabalho produtivo de valor). Correspondentemente crescem os custos prévios para de algum modo poder aplicar rentavelmente força de trabalho, a única fonte de mais-valia. Os custos prévios crescentes exigem, para manter em curso a actual produção de mais-valia, um adiantamento de mais-valia futura na forma de crédito, cada vez mais adiado no futuro.
Isto cria uma tensão crescente na conexão interna entre crédito e valorização real. No passado, esta contradição pôde ser compensada pelo efeito social colateral da cientificização. O aumento da produtividade embaratece os alimentos e, portanto, reduz também o valor da força de trabalho, de modo que os custos da sua reprodução baixam. O mesmo mecanismo que leva a que a proporção de capital variável (força de trabalho) na composição orgânica do capital seja relativamente menor, leva também a que a força de trabalho tenha de produzir menos valor para a sua própria conservação. Aumenta a proporção da mais-valia no total do valor real criado, o que Marx designa como produção de “mais-valia relativa”. Mas isto só se aplica a cada força de trabalho individual produtiva do ponto de vista capitalista. O pressuposto para que haja um efeito compensatório em termos de valorização social, portanto, é que simultaneamente se expanda o capital real total e, assim, cresça em termos absolutos o número de trabalhadores utilizáveis em condições capitalistamente produtivas - apesar do menor peso relativo do capital variável na composição de um certo capital monetário avançado. Só sob esta condição, também, o adiantamento de mais-valia futura, cada vez mais diferida para o futuro por meio da expansão do crédito, pode ser pago de volta, pelo menos na medida em que a conexão entre crédito e valorização real não for completamente rompida. Enquanto esta conexão de algum modo funcionar, também a contradição se expressa apenas relativamente, como a famosa queda tendencial da taxa de lucro social. A taxa de lucro médio refere-se a um capital monetário de qualquer ordem de grandeza. Essa taxa vai caindo, num processo secular, devido à crescente quota de custos prévios do capital constante, que não produz qualquer novo valor, mas apenas transfere valor já criado. Mas, se a massa social total do capital monetário avançada na aplicação produtiva de valor crescer suficientemente, pode, apesar de diminuir a taxa de lucro por capital monetário aplicado, continuar simultaneamente a subir a massa de mais-valia real absoluta e a massa de lucro do capital total. Marx analisou esta conexão no 1º Volume (produção de mais-valia relativa) e no 3º Volume (tendência para a queda da taxa de lucro), de “O Capital”, em que o resultado histórico permanece em aberto. No nível elementar de “substância de valor” como “substância de trabalho” Marx, por outro lado, fala nos “Grundrisse” no facto de a concorrência, forçada pelo aumento permanente de produtividade, dever levar finalmente a uma redução absoluta da força de trabalho produtivo de valor e, assim, a um limite histórico absoluto da valorização. Este aspecto, no entanto, ficou por desenvolver teoricamente em Marx.
A fase fordista foi a época alta da mais-valia relativa, com a expansão simultânea do capital real total. O permanente adiantamento do crédito parecia realizável. A teoria de um limite interno absoluto da valorização foi considerada ultrapassada, mesmo na esquerda. A contradição entre o sistema de crédito e a produção de mais-valia real atingiu, porém, um ponto culminante no contexto da 3ª Revolução Industrial da microelectrónica, assumindo uma nova qualidade. A expansão do capital real total atinge os seus limites históricos, enquanto, simultaneamente, a “substância trabalho” produtiva de valor se derrete numa escala sem precedentes, com a nova qualidade da cientificização. O aumento de mais-valia relativa por força de trabalho singular começa a perder o seu carácter de mecanismo histórico de compensação. Isto transforma a apenas relativa queda tendencial da taxa de lucro por capital monetário aplicado em queda absoluta da massa de mais-valia social real e, portanto, da massa de lucro. A conexão entre o adiantamento amplamente antecipado da mais-valia futura na forma do crédito e a produção de mais-valia real é irrevogavelmente rasgada. O que surge como uma devastadora crise financeira é apenas a manifestação empírica da contradição amadurecida no nível empiricamente intangível das relações reais de valor.
Estamos, portanto, perante uma “ruptura estrutural” de ordem superior. Se até agora se falava de uma “crise estrutural” do capital, por exemplo no contexto da “teoria das ondas longas”, era apenas em relação à “transição” para um novo “modelo de acumulação”. A crise devia ter apenas a função de “limpeza”, a fim de abrir caminho para o próximo surto histórico de valorização em nova base tecnológica. Esse foi o famoso conceito do economista Joseph Schumpeter da potência do capital como “destruição criativa”. Mas o final da era fordista não trouxe qualquer ruptura estrutural “criativa”, no sentido de um novo “modelo de acumulação”. A muito invocada transição para o chamado “pós-fordismo” não passava de uma fórmula vazia. O que então aconteceu não foi senão a transição para a era historicamente breve da famigerada “economia das bolhas financeiras”, em que o sistema de crédito foi inflado, muito para além da capacidade minguante de produção real de valor, de maneira historicamente sem precedentes.
Aqui surgiu, para uma percepção positivista, que não consegue reconhecer a conexão interna das relações de valor, a ilusão óptica de um “modelo de acumulação” de facto novo. Por um lado, o “pós-fordismo” consistiria na deslocalização da produção industrial de mais-valia para a periferia, para os chamados países emergentes (mais recentemente, na forma do alegado “milagre do crescimento” asiático). Na realidade, o ponto de partida e força motriz desta deslocalização não consistia em receitas monetárias de criação real de valor, mas em “capital fictício” de bolhas financeiras sem substância, desde há muito desligadas da aplicação produtiva de força de trabalho humana. Desta forma se pôs em movimento uma conjuntura global de deficit, agora na iminência de queda brusca. Por outro lado, o “pós-fordismo” criaria nos centros capitalistas uma chamada “sociedade de prestação de serviços”, imaginada como novo campo independente de valorização. Na realidade, tratava-se em grande parte de sectores improdutivos do ponto de vista capitalista, como “prestação de serviços pessoais” privada, que também não tinham o seu ponto de partida e o seu sustento na criação real de valor e nos rendimentos daí obtidos, mas no inflar do “capital fictício” e na mera simulação de processos de valorização. Daí que a pretensa transição para uma “economia de serviços” também não tenha ocorrido como expansão das infra-estruturas estatais, por exemplo saúde e educação, que já nos anos 70 tinham fracassado, mas sim na forma de prestação de serviços precarizada, em pequenas empresas privadas de baixos salários, e na forma de “falso trabalho autónomo”, agora por igual ameaçados de extinção.
Sobre isto é necessária ainda uma observação, relativamente à evolução teórica na esquerda. A ideologia pós-moderna da “virtualização” levou também a uma adaptação da crítica social de esquerda ao capitalismo de crise e simulativo. Começaram, sem mais, a falar de um crescimento apenas “financeiramente induzido”, a que pretendiam adaptar-se “simbolicamente”. As categorias básicas da crítica da economia política de Marx foram não apenas positivistamente incompreendidas, como no marxismo tradicional, mas feitas desaparecer de todo. E o problema da potência de crise não só foi reduzido a uma “função” de “limpeza”, mas também reinterpretado subjectivamente e simplesmente dissolvido em “relações de vontade políticas”. Paradigmático no caso é o Pós-operaismo de Antonio Negri. Na medida em que há “crises”, são entendidas apenas como reacção “politicamente querida”, consciente dos capitalistas e das suas fracções às gloriosas “lutas” da chamada Multitude. Mas, se a actual dinâmica da queda global deve ser um acto político deliberado do “Empire” capitalista, então há-de ser mais como “reacção” ao espírito da minha avó do que às “lutas” há muito tempo apenas simbólicas de um capital variável desmoralizado, sem poder de intervenção real nos centros capitalistas. Mas, como se explica na teoria de Marx de forma insuperável, o verdadeiro limite da valorização é estritamente objectivo e ergueu-se “por trás das costas” dos agentes. A emancipação social da lógica capitalista, pelo contrário, não pode de modo algum ser “objectiva”; e por isso mesmo ela exige a crítica radical das categorias fundamentais do capitalismo, que foram “interiorizadas” pela humanidade e amplamente recalcadas pela esquerda. Quando a esquerda, agora, tem de digerir a objectividade negativa da crise, confronta-se também consigo própria e com as suas ilusões pós-modernistas.
Na sua opinião, este é um bom momento para se generalizar uma crítica radical do sistema do capital? Ou, considerando que as condições materiais básicas de milhões de seres humanos estão cada vez mais degradadas, não será possível ir além do keynesianismo e da nostalgia do Estado-Providência?
Aparentemente, verifica-se uma deslegitimação geral do capitalismo, até na classe política e nas páginas culturais. O conceito de capitalismo em si tornou-se pejorativo do dia para a noite, como se ele não tivesse sido proclamado “vencedor da história” o tempo todo. Mas esta “viragem” súbita e não mediada não pode deixar de parecer indigna de crédito e suspeita. O neo-liberalismo penetrou profundamente na consciência das massas nas últimas décadas, como tendência básica para o “radicalismo de mercado”, como individualização abstracta e dessolidarização de “átomos sociais” autistas. A relação individual directa com o mercado universal e a concorrência universal tornaram-se condição de vida e já não são filtradas socialmente. Estas formas de vida numa sociedade desintegrada são agora atingidas com toda a força pela nova qualidade do surto de crise global e abaladas nos seus fundamentos.
Trata-se, em primeiro lugar, de um abalo da função legitimatória. O “espírito dominante” da viragem neoliberal descredibilizou-se completamente de forma vergonhosa. Até agora, porém, o desabamento devastador tem sido percebido de modo perfeitamente fantasmático, apenas como espectáculo nos mercados financeiros e nos media globais. Uma notícia catastrófica atrás da outra, enquanto a crise ainda não chegou à reprodução “real” e à vida quotidiana. Os primeiros prenúncios são as perdas dramáticas nas vendas da indústria automóvel e dos seus fornecedores. Porém, a dinâmica da crise vai atingir sucessivamente não só todos os sectores da produção de mercadorias (indústria, meios de comunicação e serviços), mas todas as áreas da vida, que durante décadas se tornaram dependentes do inflar do crédito, porque já não podiam ser alimentadas pela produção real de mais-valia e pela sua redistribuição social; desde a educação, a cultura e a saúde, passando pelas infra-estruturas locais, até aos cuidados prestados aos idosos, etc. Os programas de medidas onerosas para combater as alterações climáticas ou para seguros de saúde, que continuam a ser discutidos como se nada tivesse acontecido, já não passam realmente de lixo.
Esta dinâmica de “desintegração da desintegração” não pode ser adequadamente digerida pelos indivíduos sociais atomizados; e muito menos ao ritmo a que ela avança. Os seres humanos individualizados são em todos os aspectos “criaturas a crédito”, não importando em que medida têm consciência desse facto. O mesmo se aplica também à “religião do quotidiano” (Marx) do consumo de mercadorias; o sistema de cartões de crédito será provavelmente o próximo colapso do sector financeiro. Todo o discurso fútil sobre os “excessos especulativos”, que finalmente teriam de ser impedidos, não pode esconder o facto de que a dependência em relação ao “castelo de cartas mundial” da superestrutura financeira autonomizada também está bem ancorada na consciência das massas, como condição de vida. Portanto, a deslegitimação superficial do “capitalismo” também não chega à crítica radical do modo de produção e de vida dominante. Apenas as formas do capital financeiro privado, a banca de investimento, os hedge funds, etc. são sentidos como “capitalistas”. À medida que se desmorona a economia das bolhas financeiras, ainda há pouco idolatrada, os “seres humanos a crédito” individualizados invocam o Estado, para salvarem a sua “pele a crédito” e poderem continuar a viver a sua vida capitalista precarizada. O sistema de crédito privado esgotado deve ser substituído pelo crédito estatal, que se gostaria de imaginar como inesgotável.
Naturalmente que isto é um volte-face perigoso. Pois já fora exactamente a crença na capacidade ilimitada do financiamento estatal que o discurso neoliberal dominante nas últimas décadas tinha denunciado como uma grande aberração. E não foi só por razões ideológicas. Quando nos anos 70 o crescimento fordista se tinha esgotado e a conexão entre o sistema de crédito antecipado e a produção de mais-valia real tinha começado a romper-se, então foi em primeiro lugar o crédito estatal que foi esticado para lá da capacidade de criação de valor social, para manter a conjuntura em funcionamento através da antecipação do futuro. O endividamento estatal keynesiano sem solução constituiu já uma bolha financeira de tipo próprio. Como resultado, a inflação ficou cada vez mais fora de controlo em todo o mundo. O neo-liberalismo reagiu a este desenvolvimento, mas sem compreender a sua causa profunda. Ele imaginou que o problema consistia apenas numa expansão demasiado forte da actividade estatal e que poderia ser remediado pela desregulamentação radical do mercado. Contudo, uma vez que, na realidade, o aumento da composição orgânica do capital começou a transformar-se numa queda histórica da massa de mais-valia real e da massa do lucro, o inflacionamento do crédito já sem solução foi apenas deslocado pela viragem neoliberal, do Estado para as bolhas financeiras do endividamento e da especulação do capital privado. Uma vez que esta deslocação já não ocorreu no plano estritamente limitado do Estado, mas no contexto da globalização transnacional, pôde ser simulado durante mais de 30 anos, com esta nova modalidade de crédito sem cobertura na criação de valor real, um crescimento cujo carácter deficitário só agora se revela. Quando agora as elites, tal como a consciência das massas, subitamente pretendem regressar ao financiamento estatal, como âncora de salvação, parecem estar a sofrer de amnésia. O Estado, até há pouco tempo diabolizado, é mais uma vez elevado, com a melhor das boas vontades, ao estatuto do Deus que deve eternizar o fluxo de crédito, porque seria “todo-poderoso”, para além dos interesses individuais.
Ora, o Estado não é, de facto, a agência independente de uma “classe dominante” ou de certos grupos económicos, mas a instância do poder geral sobrejacente à sociedade, que constitui o enquadramento exterior da valorização do capital e de todas as suas “máscaras de carácter” (Marx). Mas, precisamente por isso, o Estado não está “acima” das leis objectivas do movimento do capital e não pode querer controlá-las ou modificá-las arbitrariamente; pelo contrário, ele não lhes está menos sujeito do que o capital individual, apenas num nível social mais elevado. Tudo o que o Estado faz tem de ser financiado, tal como tudo o que é feito pelo capital singular ou pelos indivíduos; e a fonte deste financiamento só pode ser a produção de mais-valia real. O Estado obtém rendimentos em dinheiro a partir desta fonte original, quer directamente através de impostos, quer adquirindo dinheiro nos mercados financeiros através da emissão de dívida. No segundo caso, ele próprio é um actor a nível do capital financeiro e está vinculado às suas condições. O que significa isto, na crise histórica do crédito e do crescimento “financeiramente induzido” dele dependente que hoje sofremos? Os “pacotes de salvamento” do sistema financeiro até agora lançados pelos Estados e os programas estatais de apoio à conjuntura em perspectiva mas ainda não concretizados por todo o mundo já ascendem a vários biliões de euros. Onde vai o Estado obter financiamento para tudo isso, se a crise está precisamente em que a fonte de criação de valor real secou e o crédito, como adiantamento de mais-valia futura, se esgotou? Um aumento drástico de impostos deprimiria ainda mais a produção de mais-valia real já minguante. Uma grande massa de emissão de dívida pública nos mercados financeiros teria o mesmo efeito, porque o Estado estaria então a concorrer com as empresas e as famílias para o crédito disponível e, assim, a puxar para cima as taxas de juro reais.
Seja em que for que é gasto o dinheiro dos impostos cobrados pelo Estado e dos empréstimos por ele obtidos nos mercados financeiros, do ponto de vista da lógica da valorização não há qualquer produção, mas apenas consumo. Com efeito, mesmo no caso em que, por exemplo, se financia a construção de estradas ou de escolas, não terá lugar, desta forma, qualquer nova criação de valor, mas será sangrada a produção de mais-valia real do passado (impostos) ou do futuro (crédito). Isto é verdade, naturalmente, por maioria de razão, se o Estado com esse dinheiro, na forma de “pacotes de salvamento”, apenas tapa os buracos do sistema financeiro, compra créditos malparados dos bancos etc. Após a cessação definitiva da economia das bolhas financeiras e da conjuntura de simulação, a responsabilidade das finanças estatais ascende a valores muitas vezes superiores aos da anterior, que já antes soçobrou. Uma vez que não é possível um aumento de impostos nem uma expansão da dívida pública na medida do necessário, resta apenas, como ultima ratio, a impressão de notas, criando dinheiro do nada, e a sua transferência directamente para o Estado, sem garantias nem contrapartidas. Mas a competência dos bancos centrais para criar moeda é meramente formal, “expressando” apenas o processo de criação de valor capitalista real, sem o poder substituir. O recurso directo à emissão de notas seria a maior bolha financeira de todas, que só poderia acabar na completa desvalorização do dinheiro e todos os créditos, títulos, etc. (hiper-inflação, bancarrota estatal, reforma monetária).
A deslocação do problema do crédito do Estado para o capital financeiro e o actual regresso novamente ao Estado completam uma volta sem saída. Certamente que agora o fracasso social mundial do sistema capitalista e da sua legitimação neoliberal constitui um campo no qual se pode fazer valer a crítica radical das formas capitalistas básicas de uma maneira diferente do passado. Mas isso ainda não significa, de modo algum, que essa crítica radical já se torne assim susceptível de adesão pela consciência das massas, que ainda se move inteiramente nas categorias do fetichismo moderno. É preciso, em primeiro lugar, tomar consciência do paradoxo de que as condições materiais de existência em todas as áreas da vida estão dependentes da virtualidade do crédito em dissolução. Deste ponto de vista, os obstáculos a uma negação da totalidade capitalista não se tornaram menores, mas sim maiores. Se a própria vida está ameaçada, as pessoas agarram-se com tanto mais força às condições dominantes. Isso equivale a dizer, hoje, que todos projectos de salvamento estatal do sistema de crédito, por mais ilusórios que sejam, têm auditório, mesmo ao preço de desembocar em ideologias assassinas (anti-semitismo ou proto-anti-semitismo). Por maioria de razão, a crítica radical tem de contrapor-se ao mainstream do espírito do tempo, em vez de se deixar arrastar por ele.
Como vê a apropriação pelo sistema de conceitos clássicos de esquerda, como a “nacionalização” ou a “regulação dos mercados financeiros”?
O programa da ala radical do marxismo tradicional assumiu uma fórmula marcial como “ditadura do proletariado”. Ainda assim, sempre era a organização social que estava no centro das atenções, embora ligada a uma falsa ontologia do trabalho abstracto. Na verdade, o programa transformou-se nesta base ideológica numa mera nacionalização das categorias capitalistas, ou seja, o oposto da emancipação social. O próprio Marx, na “Crítica do Programa Gotha”, polemizou contra este fetichismo do Estado, embora ele próprio, em algumas formulações anteriores, não estivesse totalmente livre dele. Na prática histórica dos sistemas de “modernização atrasada” (União Soviética, China etc.), o conceito de “Estado dos trabalhadores” tinha apenas uma função legitimadora, para a reprodução do capitalismo de Estado. A maioria dos partidos socialistas e comunistas no Ocidente transformou este requisito num programa de “nacionalização” dos bancos e das principais indústrias do capitalismo. A orientação estatal era apenas vagamente ligada ao paradigma esgotado da “classe trabalhadora”. Em vez disso, o conceito de “nação” passou para o centro e a “questão social” foi transformada numa “questão nacional”. Este “socialismo de cores nacionais” assumiu um carácter verdadeiramente reaccionário face à “socialização mundial” negativa do capital. Ele já pertencia à história da dissolução do marxismo tradicional.
Na economia burguesa fez-se notar, em reacção à crise económica mundial dos anos 30, uma orientação estatal “moderada”, amortecida, sob a forma do keynesianismo. Esta doutrina nunca teve nada a ver com esperanças “socialistas” difusas; pelo contrário, entendia-se a si mesma expressamente como programa de salvação do capitalismo com a ajuda de intervenções estatais, cuja base residia na expansão continuada do crédito estatal. O “keynesianismo de esquerda” tentou transformar esta doutrina num sentido quase “socialista”. Mas tratou-se apenas da velha orientação para o capitalismo de Estado, novamente diluída e aligeirada, dos antigos “partidos operários” há muito integrados na classe política do capitalismo. A referência à crítica da economia política de Marx ficou definitivamente perdida. O discurso do keynesianismo de esquerda já não se refere fundamentalmente à análise categorial da “valorização do valor” e da dinâmica do contexto da forma capitalista de mais-valia relativa, aumento da composição orgânica, queda da taxa de lucro, nem a uma teoria da crise nesta base. Para este pensamento, a possibilidade de uma “crise categorial” com a queda da massa de mais-valia foi totalmente excluída. Com isto também a “crítica categorial” das formas básicas do sistema de fetiche capitalista se tornou ainda menos viável do que no marxismo tradicional do antigo movimento operário. Em vez disso, a “crítica” caiu num “tratamento da contradição” no quadro do capitalismo não mais explicitamente contestado, assim numa forma de “política económica” burguesa vulgar, que tinha de assentar cegamente na expansão do crédito estatal, a fim de supostamente daí sugar o mel social. Quando a ciência económica e a política económica dominantes, na esteira da “revolução neoliberal”, oficialmente afastaram a doutrina keynesiana, a esquerda política teoricamente desarmada ficou com o keynesianismo por sua conta, sem reflectir que se estava a casar com um cadáver histórico. O keynesianismo surgia agora como oposição fundamental ao neoliberalismo de modo puramente formal, embora ele nunca o tenha sido no seu conteúdo.
A recente viragem desesperada das elites económicas e políticas para o crédito estatal revelou os pés de barro dos partidos de esquerda, tal como de organizações do movimento como a Attac. Aparentemente, elementos centrais do keynesianismo por si consistentemente representado (estatização ou “nacionalização” dos bancos e eventualmente indústrias-chave, regulação dos mercados financeiros) são repentinamente objecto de novas honras. Contudo, já não se trata de um Estado-Providência keynesiano, como no período final da prosperidade fordista na década de 70, mas de um keynesianismo de emergência do capital financeiro, que vem de par com o agravamento da administração estatal anti-social do trabalho e das pessoas. É o paradoxo do prolongamento do neo-liberalismo com meios quase-keynesianos, porque no limite interno tornado historicamente manifesto da valorização já não há qualquer terceira opção. O crédito estatal não está fluindo para programas sociais, educação e cuidados de saúde, etc., mas é lançado no buraco negro dos balanços debilitados. A esquerda keynesiana fica desamparada perante a nova qualidade da crise, porque não tem qualquer noção da mesma. Enquanto ela acredita pressentir a brisa matinal keynesiana, na realidade é-lhe apresentada a conta pela sua auto-entrega ao modo de produção e de vida capitalista. Se ela se quer “envolver” na nova expansão do crédito estatal portadora de inflação, ela própria corre o risco de tornar-se parte integrante da administração da crise capitalista. Indícios disso já existem por toda a Europa. Caso a esquerda de partido e do movimento se torne neste sentido “politicamente capaz” e para as elites do capital “socialmente capaz”, a sua “social-democratização” poderia desembocar numa carreira na base do estado de excepção.
Que formas de mediação podem ser criadas entre as lutas imanentes por condições básicas de sobrevivência e a crítica das categorias de base do sistema do capital (mercadoria, valor, dinheiro, trabalho abstracto, Estado, política)?
Não há dúvida de que a luta social organizada extra-parlamentarmente, pelas necessidades materiais e culturais da vida, em resistência contra a brutal redução do nível de civilização, é a única alternativa à colaboração parlamentar “política de esquerda” com a administração estatal da crise. Inevitavelmente, surgirá também um contramovimento social constituído de novo, inicialmente como “tratamento da contradição” imanente, que já não delega as necessidades no Estado, mas apresenta exigências autónomas, ainda que estas tenham de ser erguidas contra o Estado. É o caso, por exemplo, de um salário mínimo legal suficientemente elevado, da resistência contra novos cortes nas transferências sociais e contra a chicana repressiva das medidas coercivas da administração do trabalho, contra a privatização ou encerramento de infra-estruturas públicas vitais (por exemplo, de cuidados médicos). Mas também estão na ordem do dia o debate sobre o orçamento da educação e as críticas da rígida ligação dos conteúdos do ensino e da investigação às necessidades de valorização do capital que se tornaram obsoletas.
Existe um momento importante na mediação da “crítica categorial”, que consiste em aprender como se pode distinguir entre formas de “tratamento da contradição” que fazem avançar e formas afirmativas. Isto inclui, em primeiro lugar, o reconhecimento de que a defesa das necessidades vitais pela via oficial da política tornou-se totalmente ilusória. Têm de ser evidenciados os conteúdos alternativos de reivindicações sociais directas, por um lado, e esperança fútil em programas estatais de conjuntura para novos investimentos de capital, por outro. Estes últimos amarram à partida as necessidades sociais ao “sucesso” da valorização do capital, na base arruinada do trabalho abstracto, e à “financiabilidade” daí derivada, segundo critérios capitalistas. As primeiras, pelo contrário, podem abrir caminho para a negação do “terror da financiabilidade” e para se aproximar da suplantação da forma do valor e do dinheiro. Esta alternativa, a ser tornada efectiva nas novas condições de crise, também se pode colocar entre os elementos “de esquerda” da classe política, aí conduzindo a polarizações; desde que, no entanto, se constitua um contramovimento social. No antigo movimento operário já havia elementos desta alternativa, ainda que sob o fundo ideológico de uma ontologia do trabalho abstracto. Precisamente por isso é que os contramovimentos sociais (também em correspondência com a sua própria consciência baseada na ontologia do trabalho), sempre foram transformados em orientação estatal e, como “marxismo de partido”, vinculados a uma intervenção política; pois o Estado é precisamente a instância social de síntese na base do trabalho abstracto. Nos limites históricos do trabalho abstracto e da valorização real do capital, a alternativa entre contramovimento social e estatismo coloca-se agora em formas completamente novas, e deve ser formulada consequentemente, quando a esperança no crédito do Estado apenas pode envergonhar-se com o desencadeamento da inflação e já não contém qualquer potencial social.
Um segundo momento da mediação é a crítica de todas as formas de exclusão social, sejam elas articuladas abertamente ou indirecta e subliminarmente. Enquanto os movimentos sociais operarem no plano do “tratamento da contradição” imanente há sempre essas tendências. Já no antigo movimento operário havia fortes sentimentos negativos contra as camadas inferiores desqualificadas. Hoje também se podem observar posturas semelhantes da parte de uma “aristocracia operária” globalizada, entretanto já em dissolução, contra os “caídos fora”, ou contra os trabalhadores dos sectores de baixos salários; e até mesmo nas camadas inferiores da “cultura dominante”, contra os migrantes. Acima de tudo, porém, são as classes médias académicas e sub-académicas, sob a ameaça de queda nos centros capitalistas, que pretendem salvar a própria pele e estilizar como ideal de emancipação geral os seus interesses específicos, enquanto “capital humano”, quando na realidade a vida dos “outros” lhes é indiferente. À medida que se constituir um contramovimento social, a tarefa da “crítica categorial” é precisamente identificar analiticamente os diversos potenciais de exclusão social complexamente sobrepostos e enfrentá-los.
Isso só pode ter sucesso se a crítica também transmitir que, para além das categorias capitalistas, facilmente será possível satisfazer as necessidades da vida “para todos”. Neste contexto, a tarefa é a de tornar os contramovimentos sociais (contando que surjam) conscientes da enorme discrepância entre os potenciais de riqueza material e a impossibilidade de continuar a captá-los na forma capitalista. Embora a reflexão teórica sobre as categorias reais do capital, forma do valor e mercadoria, mais-valia, trabalho abstracto, etc. e a sua modulação político-estatal não esteja presente na consciência de massas, pode ainda assim ser mobilizada a experiência prática de que existem, do ponto de vista técnico-prático e material, as capacidades para satisfazer as necessidades materiais, sociais e culturais, mas são paralisadas pelo capitalismo, porque já não pode ser satisfeito o absurdo fim em si mesmo da transformação de “trabalho” em “mais trabalho” e de “dinheiro” em “mais dinheiro”. Se cada vez mais pessoas ficam sem abrigo, enquanto simultaneamente há habitação vazia em massa, ou se cada vez mais doentes e com necessidade de cuidados de saúde já não são adequadamente tratados, enquanto, ao mesmo tempo, a administração fecha hospitais, médicos e pessoal de saúde ficam sob pressão ou “desempregados” – então essa experiência pode ser fundamentalmente transformada em crítica radical da forma da mercadoria e do dinheiro, enriquecendo a experiência com a reflexão teórica.
Essa abordagem também é correcta quando se invoca o chamado problema “ecológico” (degradação do clima, culturas exaustivas, erosão dos fundamentos naturais da vida, etc.). Neste aspecto, a mediação da “crítica categorial” tem de tornar conscientes a conexão interna entre os poderes destrutivos do modo capitalista de produção de riqueza material, por um lado, e a forma capitalista das relações sociais, por outro. Não é a produção de uma quantidade suficiente de alimentos e bens culturais em si que leva à destruição da “biosfera”, mas a racionalidade da lógica de valorização da economia empresarial, que cria pobreza enquanto destrói as suas próprias bases e arruína a natureza. O poder destrutivo de certas formas capitalistas de riqueza material (transporte automóvel individual, indústrias de defesa, agro-indústria enquanto disseminadora de venenos, etc.) não pode ser jogado contra a socialização das necessidades da vida social. A alternativa à “automobilização” não é a eliminação da mobilidade em si, mas a expansão do transporte público, sob controlo social, na resistência contra a privatização. É particularmente pérfido responsabilizar as pessoas, condenadas a indignas rações de miséria e capitalistamente empobrecidas, por supostamente “consumirem demais” e destruírem o clima. Enquanto a “catástrofe climática” ainda recentemente, em tempos de conjuntura de deficit, causava sensação mediática, agora, na crise, os objectivos oficiais de redução dos poluentes são novamente cortados, porque tem de ser mantida a forma capitalista de produção a qualquer preço. É perfeitamente possível que a administração da crise procure flanquear mais restrições sociais com uma legitimação “ecológica”. Nesta contradição se move também a ideologia “ecológica” apoiada por uma parte das classes médias, que pretende falar dos “limites do capitalismo” apenas no sentido de um “limite exterior” de recursos naturais, enquanto o “limite interno” do trabalho abstracto e da “valorização do valor” é percebido apenas de forma truncada (“limites do crescimento”) ou completamente esquecido, porque cada um gostaria de se envolver “ecologicamente” na administração de crise. Do ponto de vista de um maior desenvolvimento da crítica da economia política, este “reducionismo ecológico” é tão criticável como a orientação económica afirmativa para um “keynesianismo de crise”.
Outro passo na mediação da “crítica categorial” seria a reabertura de um debate sobre planeamento social, não mais baseado no trabalho abstracto, na forma do valor e no Estado. Como herança da época passada, o “socialismo” actual é mais do que nunca equiparado com a “nacionalização”, o que continua a levar apenas a frases paradoxais, como “socialismo do mercado financeiro”, em que se exprime, no entanto, o paradoxo real das novas condições de crise. Para uma verdadeira transformação para além do capitalismo a tarefa é organizar em novos moldes o fluxo social mundial dos recursos materiais e sociais como tais e deixar de os representar nas categorias do “valor” e da sua “substância trabalho”, que historicamente se tornaram obsoletas. Isso inclui o problema dos momentos da reprodução social que nunca bateram certo com o trabalho abstracto e a valorização, e historicamente foram delegados às mulheres (tomar conta das crianças, enfermagem, trabalho doméstico, “trabalho do amor”, etc.). Nos limites da valorização do capital também este “cimento social” se esboroa. Uma transformação social também tem de reorganizar estes momentos, libertá-los das sua atribuição sexual e criar para eles um fundo social de tempo livre, que há muito é possível.
Seria preciso desencadear um amplo debate social sobre isto, em que entrem as múltiplas experiências e competências, não se limitando a um enfoque estritamente teórico. A crítica teórica só pode tentar encorajar esse debate de acordo com o desenvolvimento da crise e tornar consciente de novo o problema do planeamento social.
Precisamente porque a “crítica categorial”, no contexto da forma capitalista, apesar da histórica crise desta, é insusceptível de transmissão sem rupturas e, nos limites das “formas de pensamento objectivas” (Marx), esbarra na consciência social, ela não pode limitar-se à direcção estrita da argumentação político-económica “objectiva” em sentido burguês. Um momento essencial da mediação é também a crítica radical da ideologia. Toda a digestão afirmativa da crise na consciência é produção de ideologia, e não apenas na orientação estatal ou no reducionismo ecológico. Também as ideologias básicas modernas do nacionalismo, anti-semitismo, racismo, anticiganismo (o ressentimento contra os Sinti e Roma, como “párias” da modernidade) e sexismo são mais fortemente invocadas e reconfiguradas na crise. Como pano de fundo está sempre a agressiva defesa de determinadas vidas capitalistas específicas por classes sociais em luta de concorrência. Fulcral a este respeito, hoje, é a ideologia da “nova classe média” perante os processos de crise, na luta pelo poder de interpretação e pela hegemonia. Os vários elementos da produção de ideologia formam amálgamas, ainda que indirecta e subliminarmente. A tarefa da “crítica categorial” é, portanto, analisar os “dispositivos” modulados pela elaboração ideológica e penetrar profundamente o conceito de ideologia, para além do marxismo tradicional, a fim de combinar um programa de transformação social com um programa de intervenção da crítica da ideologia. A actual esquerda do movimento, com a sua orientação teoricamente desarmada para “lutas” meramente simbólicas, está muito longe de tudo isto. Por isso se observa, por todo o lado, uma nada santa conversão entre posições de “esquerda” e de “direita” na crítica truncada do capitalismo.
Que papel pode ter hoje a luta de classes para difundir a consciência de classe, no sentido de Lukács?
O entendimento tradicional da “luta de classes” já não é susceptível de mobilização na nova situação de limite interno absoluto da valorização. Historicamente, a representação sindical e política do “proletariado” nada mais era que a representação do “capital variável” auto-afirmativo e, portanto, a representação do trabalho abstracto. Construiu-se aqui uma oposição meramente relativa, entre o princípio do “trabalho” alegadamente trans-histórico e antropológico e a forma da propriedade privada capitalista entendida juridicamente, quando na realidade trabalho abstracto e propriedade privada jurídica dos meios de produção representam apenas diferentes determinações, no sistema de referência comum sobrejacente da “valorização do valor”. Marx designou este contexto sobrejacente como “sujeito automático” da sociedade moderna fetichista, em que todas as posições sociais estão cativas, como “funções” da lógica da valorização. Não existe qualquer “princípio” ontológico susceptível de ser invocado para a emancipação social, pelo contrário, o capitalismo só pode ser suplantado através duma crítica histórica concreta das suas formas básicas. A “luta de classes” foi essencialmente um movimento de “luta pelo reconhecimento” no terreno das categorias capitalistas. Por isso o antigo movimento operário adoptou do protestantismo e da ideologia burguesa do Iluminismo, não só a ontologia do trabalho abstracto, mas também a ontologia da relação capitalista de género, ou seja, das atribuições históricas à “masculinidade e à feminilidade”. O que saiu da “luta pelo reconhecimento” (direito à greve, liberdade de associação, liberdade de reunião, direito de voto, etc.) acabou sempre apenas na nacionalização das categorias capitalistas não suplantadas. O entendimento socialista de “luta de classes” esgotou-se nisso.
Na nova situação histórica, o “reconhecimento” há muito alcançado pelos assalariados, como sujeitos económicos e cidadãos estatais da sociedade fetichista, torna-se uma cadeia e uma armadilha. As pessoas estão, para o melhor e para o pior, amarradas à coerção da valorização. Não é apenas uma questão de consciência. Mesmo objectivamente, a base social da velha “luta de classes” desfaz-se. Sob as condições da 3ª Revolução Industrial, o capital já não pode organizar exércitos “produtivos” de trabalho abstracto. Uma vez que o processo de individualização, como fenómeno de crise, destrói os filtros sociais, os sujeitos socialmente atomizados referem-se directamente à relação de valor global, que simultaneamente se torna virtualizada, sob a forma do crédito já insusceptível de cumprimento, e assim obsoleta. Na aparência, surgiu uma “multiplicidade” de situações sociais difusas, que já não podem ser integradas na base das categorias capitalistas. Pessoal permanente e eventual, trabalhadores a prazo e subcontratados, desempregados com subsídio, como objectos da administração de crise, falsos autónomos e empresários de miséria, etc. já não representam qualquer massa homogénea dum “proletariado criador de mais-valia”. A ideologia do movimento, desde a década de 90, limitou-se a assumir afirmativamente esta “multiplicidade” e a reuni-la sem conceptualizá-la sob a capa da “multitude”, não a suplantando. Para uma nova organização das lutas sociais, o objectivo já não é o “reconhecimento” como ser criador de mais-valia, mas apenas a crítica e transformação da própria categoria valor e da relação de género que lhe está associada. A base não pode ser uma organização capitalista do “trabalho” encontrada, que está dissolvida e desmoralizada, mas apenas a auto-organização consciente da crítica histórica concreta das categorias dominantes, a partir do “tratamento da contradição” imanente e para além dele. Não é uma questão de constituição “objectiva” da classe, como representação do “capital variável”, mas uma questão de consciência. Não, porém, qualquer consciência “idealista”, em termos por exemplo de uma “ética” da filosofia moral, mas uma consciência que se confronta com o limite histórico da valorização e com a queda do nível de civilização.
Neste ponto, é necessário voltar mais uma vez ao problema da “nova classe média” ameaçada pela queda. A desorganização dos “exércitos do trabalho” industriais e a decadência do antigo movimento operário veio de mãos dadas com a ascensão dessa classe média qualificada, na fase de prosperidade fordista. A base económica não era a produção de mais-valia real imediata, mas a expansão do crédito estatal. A auto-consciência social que a acompanhava não estava tanto na ontologia do “trabalho”, mas muito mais no estatuto de “capital humano” com “formação superior”. Já a nova esquerda, a partir de 1968, era essencialmente um movimento de classe média, ainda que continuasse a procurar, ideológica e abstractamente, a partir do fundo marxista, a inútil mediação com a esgotada “luta de classes” do “proletariado”. Na era da economia das bolhas financeiras, não em último lugar as “novas classes médias” ficaram dependentes da expansão do crédito privado e cada vez mais precarizadas. Foi precisamente neste processo que a “visão do mundo” da consciência de classe média ganhou uma posição dominante também na esquerda. Os revivalismos da velha retórica da “luta de classes” e sobretudo dos seus derivados, por exemplo na figura da “multitude” pós-operaista, são todos implicitamente (e por vezes explicitamente) formulados a partir da perspectiva da consciência categorialmente afirmativa da classe média. Hoje não é tanto a ontologia do “trabalho”, há muito corroída, que bloqueia a transição do marxismo do movimento operário para a “crítica categorial”, mas a ideologia da classe média, teimosa com o seu “capital humano”, que se esconde sob a “multiplicidade” das abordagens do movimento. Uma vez que as classes médias estão inevitavelmente envolvidas num grande contramovimento social, a ruptura com essa ideologia é duma importância decisiva.
O problema da organização da luta social, que tem de integrar de maneira diferente a desesperada “multiplicidade” de situações sociais, para além do paradigma da “luta de classes”, não parte teoricamente do zero. A transição para a “crítica categorial” encontra-se em abordagens de grandes teóricos nas fronteiras do marxismo tradicional, como Lukács (e, de outra forma, Adorno). Lukács forneceu as primeiras indicações no livro saído em 1923 “História e Consciência Classe”, especialmente no grande ensaio central sobre a “reificação”. Como era de esperar, dada a situação de então, ele combina pela primeira vez a ontologia do trabalho implícita e a tradicional “posição de classe” daí derivada, com a discussão da constituição fetichista moderna socialmente sobrejacente. Lukács deixou-se dissuadir pelo marxismo de partido dos seus pontos de vista inovadores, como alegadamente “idealistas”, e mais tarde voltou a uma explícita e bastante aborrecida ontologia do trabalho abstracto. O seu trabalho de 1923 também foi aproveitado pelas novas abordagens da “crítica categorial”, desde os anos 80, em especial sob o ponto de vista da consciência de classe “atribuída” e do proletariado como suposto “sujeito-objecto da história”. Mas o seu anterior ensaio teórico não se resume a isso. Uma leitura renovada nas actuais condições retira conhecimentos surpreendentes. O que ele refere com o conceito de “reificação” já representa uma crítica das formas básicas do capitalismo, durante muito tempo sem paralelo; para alguns é lida como uma crítica antecipada do pensamento pós-moderno. Decisivo é o postulado de um “tornar consciente” pela crítica a forma da mercadoria, como forma geral de vida no capitalismo, incluindo a mercadoria força de trabalho. Com isto, Lukács reaproximou-se da definição de Marx das categorias capitalistas, como “condições reais de vida” e simultaneamente “formas objectivas de pensamento”, definição que tinha sido escondida pelo movimento operário.
Se despirmos esta abordagem teórica da sua “atribuição” a um “ponto de vista” do “trabalho”, muito dela pode ser assumido para uma nova “crítica categorial”, sob as condições da individualização e da relação de valor em decadência. Essencial é, em primeiro lugar, incluir no plano categorial a moderna relação de género, ainda não abordada por Lukács. Em segundo lugar, as relativizações críticas da “consciência de classe proletária”, formuladas no ensaio sobre a reificação, hoje são sobretudo relacionáveis com a consciência de classe média (também para isso já se encontram abordagens neste ensaio). Coloca-se, portanto, a tarefa de reformular a visão de Lukács, nesta situação histórica fundamentalmente diferente, a fim de tornar fecundo o “tornar consciente” criticamente a forma da mercadoria, para uma reintegração da luta social para além da falsa objectividade capitalista.
Como definiria um conceito de revolução para o tempo presente, que pudesse romper com o fetichismo e com uma vida quotidiana totalmente subordinada à reprodução do capital?
O conceito de “revolução” foi historicamente ocupado pelo paradigma da grande Revolução Francesa, das subsequentes revoluções burguesas do século XIX e das revoluções de “modernização atrasada” na periferia do mercado mundial no século XX (Rússia, China, “Terceiro Mundo”). Nesse contexto, a “revolução” limitou-se à forma política da “tomada do poder” e, no século XX, à nacionalização das categorias capitalistas. Nessa medida, este conceito pertence à história da imposição do trabalho abstracto, da lógica da valorização e da relação de género moderna. Parece, portanto, que a sua carreira terminou. No marxismo residual e na ideologia do movimento, a “revolução”, como acto político de subversão, já não desempenha qualquer papel. Mas estão a deitar fora o bebé com a água do banho. Uma vez que a esquerda arquivou o conceito de revolução, sem o actualizar, ela limitou-se a ratificar a sua auto-entrega à forma capitalista de vida, na base social da classe média.
Marx criticou o conceito de revolução limitado à política logo nos primeiros escritos. Para ele, a “revolução social” apresenta uma qualidade diferente, que suprime também o estatismo da forma da política, juntamente com a relação de valor e a forma da mercadoria. Tal como depois no caso de Lukács, este revolucionamento, no entanto, também ainda figurava em Marx como “revolução proletária”. Foi precisamente este paradigma, no entanto, que se manteve na fase do conceito de revolução reduzido à política. Para além da ontologia do trabalho, no limite interno da valorização, coloca-se de forma nova e diferente a questão da “revolução social”, ou seja, como rompimento da síntese social dominante nas formas do valor e da relação capitalista de género. “Síntese social” mais não significa que a forma específica de socialização, no sentido de uma “totalidade negativa”, que também só pode ser suplantada por um revolucionamento do conjunto da sociedade.
Precisamente por isso é preciso um movimento social em grande escala, e agora à escala transnacional, para se chegar à síntese social em geral. Não bastam, por exemplo, ocupações de empresas pelo pessoal que, em seguida, apenas se torna sujeito colectivo do capital e continua entregue à síntese feita através do mercado e da concorrência. Daí que até ao momento todas essas tentativas falharam (como durante a grande crise na Argentina). Não é possível uma transformação ao nível de cada capital, ou mesmo de uma reprodução particular, mas a questão da síntese e, assim, do planeamento social para além da forma da mercadoria já constitui sempre o ponto de partida (e não um qualquer ponto final) da ruptura prática com o capitalismo. Neste contexto, o conceito de “revolução” não é simplesmente irrelevante, apesar de ele já não ter nada a ver com o antigo entendimento “politicista”. A teoria crítica, como “crítica categorial”, tem de persistir neste ponto de vista da síntese social, mesmo contra a consciência do movimento meramente “simbólica”, que não se coloca esta questão decisiva.
A esquerda do movimento pós-operaista gosta de falar hoje em “Mudar o mundo sem tomar o poder” (John Holloway). A síntese social é substituída por um difuso conceito de “vida quotidiana”, que tem feito carreira já desde o movimento de 68. O que muitas vezes se designa como “revolução” cultural “da vida quotidiana” é sempre, de uma maneira ou de outra, a música de fundo da mudança social; mas, reduzida a este ponto de vista, também pode tratar-se de uma adaptação cultural à dinâmica capitalista. Tais conceitos de 68 e da esquerda pós-moderna há muito que foram adoptados pelo management de crise do capitalismo, por exemplo, sob a forma da propaganda neo-liberal da “auto-responsabilização” individual. O tema da “vida quotidiana” não pode substituir a verdadeira intervenção ao nível da síntese social; tal como não pode dispensar a necessária força de intervenção (por exemplo, através de greves, bloqueios, paralisação das vias nevrálgicas capitalistas). A “questão do poder” não se limita ao paradigma “politicista” do poder de Estado, mas, por maioria de razão, coloca-se como questão de um “contrapoder” social, em resistência contra a administração de crise. Na realidade, a “vida quotidiana” por si só não é um refúgio de “resistência”, cujo conceito desta forma se torna oco. A resistência, pelo contrário, começa quando os indivíduos se levantam contra o seu “quotidiano”, determinado pelo capitalismo em todos os poros, e se tornam em geral capazes de organização.
A metafísica do quotidiano da esquerda também se refere, em parte, na continuação do fracassado movimento da alternativa dos anos 80, a tentativas de “outro” modo de vida e de produção, na pequena escala de “comunidades” particulares, que se legitimam neo-utópica ou pragmaticamente. Estas tentativas, por exemplo, na forma da chamada “economia local” ou do movimento digital open-source, tal como a ocupação de empresas, também não podem alcançar o nível da síntese social. Como alternativa aparente a um movimento de resistência social a partir da imanência capitalista correm o risco de se transformar numa “auto-administração da pobreza”. Se aí ainda aparecer a ideia de uma “crítica da forma da mercadoria”, será rebaixada para um formato em que tal crítica não é possível sem perder o seu conteúdo decisivo e sem se envolver em contradições sem saída. As supostas alternativas permanecem amarradas a relações contratuais burguesas, e não só; elas também dizem respeito apenas a pequenos segmentos da reprodução, que permanece no seu conjunto determinada à maneira capitalista. Por isso, os “projectos de praxis” particulares normalmente estão de olho num financiamento externo do Estado, seja na forma de uma “renda básica”, seja na forma de um patrocínio autárquico. Estatismo keynesiano e ideologia da alternativa são apenas duas faces da mesma moeda; o denominador comum é a orientação directa ou indirecta para o crédito estatal. Aqui se expressa, mais uma vez, a inconfessada dominância da consciência de classe média, que sempre quer lavar a pele sem a molhar. As esquerdas keynesiana e da ideologia da alternativa têm, portanto, de recalcar e negar igualmente a nova qualidade da crise, porque as suas ilusões não podem sobreviver ao fim do sistema de crédito global e da economia das bolhas financeiras. Elas serão confrontadas com o verdadeiro limite da síntese social dominante, o mais tardar quando o grave desabamento da economia mundial atingir também a “vida quotidiana” nos centros capitalistas.
Robert Kurz
http://obeco.planetaclix.pt/
Sem comentários:
Enviar um comentário