De entre toda a tralha que a televisão portuguesa quotidianamente despeja em nossas casas e que tanto contribui para baralhar o entendimento das coisas, emerge, apesar de tudo nítido, impossível de ser dissimulado, o massacre por Israel da população palestiniana amontoada na estreita Faixa de Gaza. Bem se poderá dizer que no quadro da ementa diária que a TV nos fornece as imagens e os sons de Gaza são quase tudo e o resto quase nada. Por lá estão também, como se sabe, jornalistas em reportagem, uns como enviados especiais e outros não, em princípio de ambos os lados do conflito numa aparência de neutralidade jornalística. Convém, contudo, descascar um pouco o que em certas circunstâncias a palavra “neutralidade” implica para se ver um pouco melhor o que contém e o que de facto significa. É que “neutralidade” como sinal de isenção e rigor não corresponde a uma espécie de posicionamento a meio caminho entre o carrasco e a vítima, entre o comandante de um campo de extermínio nazi e os prisioneiros por ele entregues aos fornos crematórios, entre os torcionários militares argentinos e os “desaparecidos” às suas mãos. É por isso que ficam tão feios os esforços que Márcia Rodrigues, enviada da RTP a Israel, envida, aliás com aparente empenhamento pessoal, para convencer-nos de que também israelitas são vítimas, em situação sugeridamente paritária, da tragédia que ali decorre. É claro que, depois, os números vêm corrigir a enganosa sugestão sem que mesmo seja preciso contemplar imagens e ouvir os relatos de outros jornalistas, não todos. Mas a tentativa de legitimação da brutalidade israelita tem outras vozes e outros rostos, o que poderá compreender-se por várias razões, com destaque para o facto de que, sabendo-se muito bem que os amigos dos nossos amigos nossos amigos são, será para muitos imperioso vir tentar a justificação de Israel, país não apenas amigo dos nossos grandes amigos Estados Unidos mas até sua extensão no Médio Oriente, como que seu filho saído das suas entranhas (em conúbio com a Grã-Bretanha de então) nos idos de 1948. De resto, a televisão mostra-nos que os palestinianos, os de Gaza ou outros, são mais feios e mais mal vestidos que os israelitas, estes muito mais limpinhos e apresentáveis, e nesta como noutras coisas o impacto visual e a quase instintiva avaliação que ele desencadeia têm efeitos relacionados com preconceitos de classe e até de carácter rácico de que não nos damos conta.
RAÇA SUPERIOR
Por estas e por outras, seria conveniente ter presentes alguns dados fundamentais acerca do conflito que pelo menos há sessenta anos, na verdade há mais que isso, opõe israelitas e palestinianos, e de que a televisão parece ser singularmente avara. No mínimo, seria bom saber quantos judeus habitavam em 1945 o que seria o futuro território de Israel e quantos palestinianos ali viviam na sequência de uma sucessão de gerações que mergulhava na lonjura de séculos. Complementarmente, haveria toda a vantagem em conhecer quantos milhares de palestinianos foram expulsos das suas casas para que houvesse espaço para a implementação do Estado de Israel, como foram obrigados a habitar no deserto não durante uma meia-dúzia de anos mas sim geração após geração, como os que puderam ficar dentro das fronteiras do novo Estado se viram objecto de permanentes discriminações e opressões aliás bem compreensíveis se nos lembrarmos de que a ortodoxia judaica considera e proclama que os judeus são “o Povo de Deus”, verdadeira raça superior. A partir destes poucos elementos talvez seja fácil entender como ao povo palestiniano assistiu pelo menos a partir dessa altura o direito à resistência. Mas às razões palestinianas ainda seria preciso acrescentar, pelo menos, a ocupação em 67 de vastos territórios que não lhe haviam sido entregues em 48, a provocatória construção de colonatos israelitas em terra ocupada e portanto alheia, os massacres, as humilhações diariamente impostas aos que continuam a ser os legítimos donos de terras roubadas. Depois de sabermos pelo menos isto, perceberemos que de todos estes factos, que não são todos, decorrem inevitavelmente a morte, a crueldade, o horror, até o fanatismo religioso como refúgio. Entenderemos também em que lado se acoita a responsabilidade pelo crime, a sementeira de onde vem derivando tudo o resto. E como a TV nos vem ocultando o essencial a pretexto da tal equidistância entre o algoz e a vítima.
http://infoalternativa.org/spip.php?article431
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