segunda-feira, janeiro 05, 2009

«O inferno não acaba quando se fecham as portas do campo de concentração»

O Ministério da Cultura espanhol promoveu o Primeiro Encontro Internacional de Memória Histórica na Universidade de Salamanca, a mesma onde Miguel de Unamuno enfrentou o dirigente franquista Millán de Astray quando este entrou nos claustros de pistola em punho gritando «Viva a morte, abaixo a inteligência». Nessa reunião, da qual participaram delegações do Chile, Argentina, República Dominicana, Portugal e Alemanha, o poeta e colunista de Página/12 foi o encarregado de realizar a conferência inaugural sobre «o imperativo moral da memória colectiva».
Sou pai de um filho de 20 anos sequestrado, torturado, assassinado em 1976 pela mais recente ditadura militar argentina, que também fez desaparecer os seus restos. Foram encontrados, graças ao infatigável trabalho da Equipa Argentina de Antropologia Forense, 13 anos depois. Sou sogro da sua esposa, sequestrada quando tinha 19 anos, transladada de Buenos Aires para Montevideu grávida de oito meses e meio e assassinada pela ditadura militar uruguaia dois meses após dar à luz. Continua desaparecida e a sua filha foi entregue a um polícia de casamento estéril. Sou avô de uma neta da qual me roubaram os seus primeiros 23 anos de vida e que a minha mulher, Mara La Madrid, que não é a mãe dos meus filhos, e eu procurámos e encontrámos ao fim de uma longa investigação. Nada disto teria sido possível sem o depoimento oral de sobreviventes uruguaios e argentinos, sem expedientes judiciais e também militares, sem esse arquivo tão particular que é o banco de dados sanguíneos de familiares de desaparecidos do Hospital Durand de Buenos Aires, sem uma campanha internacional de denúncia que teve a solidariedade de dezenas de milhares de poetas, escritores, artistas e gente comum de 122 países, sem livros, sem documentos, sem Internet, sem vídeos e, sobretudo, sem a vontade imperiosa de encontrar a verdade.
Falo a partir da experiência argentina. Por onde começar? Pela mãe de um desaparecido que ano após ano e dia após dia arranjava o quarto do seu filho e à noite lhe preparava a sopa que ele costumava tomar no regresso do trabalho? A sopa esfriava-se na mesa sem remédio. Pelo sonho da filha de uma desaparecida? Este sonho: «A Mamã vive no departamento da rua 47. Vou visitá-la. Tenho medo que me abrace e que, ao fazê-lo, se transforme em fantasma». Passou muito tempo desde o desaparecimento desse filho e dessa mãe, mas não há ainda final do dolo. Não o haverá enquanto não se encontrarem os seus restos e descansarem num lugar de lembrança e homenagem. Não o haverá enquanto essa mãe e essa filha não souberem toda a verdade sobre o seu sofrimento. Não o haverá enquanto essa verdade não conduzir à Justiça.
O inferno não acaba quando se fecham as portas do campo de concentração e se apagam os fornos: o inferno militar na Argentina terminou há um quarto de século e centenas de milhares de pessoas – filhos, pais, irmãos, familiares, amigos dos desaparecidos – vivem essa segunda parte do inferno que crepita na memória e que não há modo de apagar. «Desde então, a uma hora incerta/essa agonia volta/e até que o meu conto horrível seja contado/o meu coração continua queimando-se em mim», diz o velho marinheiro de um poema de Coleridge que Primo Levi recordou. Para muitos argentinos, uruguaios, chilenos, centro-americanos e nacionais de tantas outras latitudes do mundo essa estrofe poética é vida real e queima a cada dia.
«No nosso país o esquecimento corre mais ligeiro que a História», disse o escritor Adolfo Bioy Casares. Pois não só na Argentina. Desaparecem da cena os ditadores e aparecem imediatamente os organizadores do esquecimento. «Para quê renovar as penas? – diz Ismene a Édipo – A dor sofre-se ao receber as penas e volta-se a sofrer ao recordá-las». No Dia dos Mortos, o povo mexicano vai aos cemitérios, senta-se em redor dos seus defuntos, toca a guitarra e canta-lhes, pede-lhes que continuem morrendo em paz e que deixem em paz os vivos para que os recordem sem terrores. Mas os familiares dos desaparecidos não têm onde falar-lhes e eles são fantasmas incertos que voltam para doer na memória.
«Os pais ficaram sem filhos e não terminam as suas queixas. Conhecem por fim qual é a dor total sem remédio», diz Ésquilo. Cada lembrança traz uma dor que se acumula, camada sobre camada, e se transforma numa geologia da dor? É possível dialogar com a dor, fingir que tem rosto e que não é uma potência que vem e vai e protesta contra a morte do ser querido e lhe dá corpo e a afirma negando-a? A loucura seria a última porta da dor, uma maneira de converter-se em dor para não a padecer e desaparecer na dor? Não será essa uma forma de se fundir com a vítima e assim morrer com ela? Os familiares dos desaparecidos estão noutro lugar. «Um louco, somente um louco que perdeu a mente pode esquecer a morte do seu pai», diz Electra. Ou a morte de um filho. Não é essa a loucura dos familiares: a sua única “loucura” consiste em exigir verdade para as vítimas e justiça para os carrascos. É um caminho cheio de obstáculos com os quais se tropeça dia-a-dia. Os comissários do esquecimento têm recursos e conhecem o seu trabalho.
Um pacto de silêncio sela a boca dos militares argentinos, com poucas excepções. Quando os seus camaradas sabem que algum está disposto a falar, calam-no com uma boa dose de cianeto: aconteceu isso ao prefeito naval Héctor Febres, a ponto de ser condenado pelos crimes que cometeu durante a ditadura militar. Ou fazem desaparecer testemunhas importantes dos julgamentos por delitos de lesa-humanidade, como fizeram desaparecer Julio López, para agitar o medo nas vítimas testemunhantes. A polícia facilita a fugida do repressor apanhado ou queima arquivos das suas operações. A hierarquia da Igreja Católica argentina que, ao contrário da chilena, santificou a matança – um bispo do Vicariato chegou a dizer «quando há derramamento de sangue, há redenção» –, a hierarquia da Igreja Católica argentina, que ordenou tranquilizar militares desassossegados porque acabavam de atirar prisioneiros vivos para o oceano, nega-se a abrir os seus muito prolixos arquivos da época, que permitiriam recuperar pelo menos os restos de numerosos desaparecidos.
Certos juízes, certos procuradores e certas instâncias judiciais, como o Tribunal de Cassação argentino, arquivam processos contra os repressores, que podem ficar em liberdade por falta de sentença. E o pior, verdadeiramente o pior, é a perversão que mancha sectores políticos e sociais que, de um modo ou de outro, por acção ou por omissão, foram cúmplices da matança e calam o que sabem e negam ao Outro o que sabem. E depois – por que omiti-lo? – a atitude passiva de certos familiares que, antes de mais por falta de meios, e depois por desânimo, cansaço, resignação, desesperança ou temor, ainda temor, depositam o seu não fazer nos organismos de direitos humanos. E também – por que omiti-lo? – certos organismos argentinos de direitos humanos que burocratizam a dor ou militam contra a busca dos restos dos desaparecidos «para que continuem com os seus companheiros». Assim fazem tábua rasa da história pessoal das vítimas e do lugar que ocuparam na história. É a continuidade civil, sob outras formas, do pensamento militar.
A vontade de corrigir a memória, como é notório, vem de muito longe. No século V antes de Cristo, a sangrenta oligarquia dos Trinta proibiu em Atenas por decreto recordar a derrota militar que Esparta lhe tinha infligido. Cada cidadão foi obrigado a pronunciar o juramento “Não recordarei as desgraças”. Passaram os séculos e os vencedores continuam a reorganizar o passado à vontade. No ano de graça de 1040, o monge Arnold von Saint Emmeram explicava assim o método que tinha escolhido para escrever a história do ducado da Baviera: «Não só é pertinente que as novas coisas modifiquem as velhas; também é correcto, se as velhas são desordenadas, excluí-las por completo, e inclusive, ainda que estejam bem ordenadas mas sejam pouco úteis, enterrá-las com reverência». A voz dos vencidos é «desordenada e pouco útil» nos manuais de história em uso, cujo marco de referência essencial é o Estado. Numerosas vítimas de crimes contra a humanidade foram e são carne de esquecimento, «esse acordo com aquilo que se oculta», no dizer de Blanchot. Os que assim falsificam a história, falsificam a vida e estão presentes e activas as antigas heranças da nossa tão moderna, ou pós-moderna, civilização ocidental, na qual os extraordinários avanços tecnológicos convivem ou malvivem lado a lado com genocídios nunca vistos.
Proliferam as teorias sobre a história como relato e outras sobre todo o contrário. Da primeira há provas mais que suficientes, algumas francamente ridículas. A história do Partido Comunista soviético sofreu contínuos liftings com o correr do tempo e converteu-se num acto de predição do passado. É famosa a fotografia do estado maior bolchevique tomada dias após o triunfo da Revolução Russa, com Lenin no centro, à sua direita uma escada e depois Stalin. O lugar da escada ocupava-o Trotski, excomungado pelo Termidor stalinista. O acto tem pretensões mágicas e a vontade de abolir a história. Daí a importância fundamental dos arquivos da memória. Daí a importância fundamental desta reunião. A pretensão de mutilar a memória cívica de todos os dias corrompe a sua saúde e abre caminho a novos autoritarismos.
O imperativo moral da memória colectiva tem hoje mais urgência que nunca e não faltaram na Argentina e em outros países aqueles que entenderam isto muito cedo e criaram e ordenaram pessoalmente, sem apoio oficial algum e movidos pela sua moral cidadã, informações utilíssimas que se podem ver por Internet. Estes arquivos contribuem para desfazer as artimanhas dos assassinos da memória, como essas que pretendem que não houve câmaras de gás e que o primeiro povo ocupado pelo nazismo foi o povo alemão. Se quisermos que a barbárie não se repita e passe ao reino do nunca mais, não deveriam, creio, ser arquivos mudos para a sociedade civil e vice-versa: haveria que aproximar os seus conteúdos a sectores sociais e políticos nos quais há não pouco a desanuviar ainda.
E poder-se-á alguma vez desanuviar mentes no estamento militar para que obedeçam ao ético e oponham a desobediência devida a ordens criminosas? O capitão de navio Juan Carlos Rolón, membro de um grupo de tarefas da Escola de Mecânica da Armada de Buenos Aires onde a marinha fez desaparecer 5000 pessoas, declarou impávido: «Ensinaram-nos que a tortura era uma forma moral de combater ao inimigo». Recorda-se o diálogo que Hannah Arendt sustentou com um oficial nazi que admitiu ter gaseado e enterrado prisioneiros com vida no campo de concentração de Maidanek. A pergunta da filósofa: «Dá-se conta de que os russos o vão enforcar!». A resposta do nazi: «Por quê? Que fiz eu?».
As ditaduras suprimem o depoimento das vítimas, mas trazem os seus próprios arquivos. Em Auschwitz há grossos volumes que registam a morte dos prisioneiros gaseados. Na primeira coluna da cada página figuram o nome, a idade e a nacionalidade da vítima; nas duas restantes, hora e causa da morte. A hora é a mesma ao longo de páginas inteiras, às 8.15, ou às 8.30 ou às 9.00 da manhã. Também se repete a causa da morte, “gripe” quase sempre. Este não é só um acto burocrático; substitui a vida por uma mentira de papel e mostra abismos da condição humana. Impõe-se abrir esse tipo de arquivos. Mas esta é uma decisão de Estado e, lamentavelmente, ainda há governos democráticos que não se atrevem a dispor que se dê esse passo indispensável. Os familiares dos desaparecidos só conhecem a dolorosa metade do crime. A outra jaz oculta, guardada por sentinelas militares, policiais, eclesiásticos. Jacques Derrida falou do «mal de arquivo», mas esses são os arquivos do mal.
Que se me perdoe a insistência em sublinhar a importância dos depoimentos orais, veículos de uma memória que em ocasiões se transmite de geração em geração. Frente ao Panamá – narra o jornalista José María Pasquini Durán – há uma ilha chamada San Blas na qual vive uma etnia indígena. Uma vez por ano todos se reúnem e os idosos contam aos jovens a história da etnia, que arranca do casamento do Sol com a Lua, para que a sua memória perdure. Os jovens começaram a emigrar e a ficar no Panamá, mas mandam gravadores à ilha para registar o relato dos idosos. Agora a maravilhosa história que começa com o Sol e a Lua está em cassete e os jovens têm-na em sua casa entre os discos mais recentes de pop norte-americano. Menciono isto porque em muitas sociedades do mundo não há cassete ainda.
No ano de 1987 continuava eu exilado em França e o diário então recém-nascido para o qual trabalho, Página/12, pediu-me que cobrisse o processo a Klaus Barbie, o ex-chefe da Gestapo em Lyon, baptizado “O carnicero”. A uma vítima que lhe detalhava os seus crimes, Barbie disse: «Eu não me lembro de nada. Se vocês se lembram, o problema é vosso». Efectivamente: recordar e denunciar os crimes contra a humanidade e exigir o seu castigo é um problema nosso.
http://infoalternativa.org/spip.php?article383

Sem comentários: