Uma semana após o estouro da bolha económico-financeira, no dia 23 de Setembro, ocorreu o assim chamado Earth Overshoot Day, quer dizer, “o dia da ultrapassagem da Terra”. Grandes institutos que acompanham sistematicamente o estado da Terra anunciaram: a partir deste dia o consumo da humanidade ultrapassou em 40% a capacidade de suporte e regeneração do sistema-Terra. Traduzindo: a humanidade está a consumir um planeta inteiro e mais 40% dele que não existe. O resultado é a manifestação insofismável da insustentabilidade global da Terra e do sistema de produção e consumo imperante. Entramos no vermelho e assim não poderemos continuar porque não temos mais fundos para cobrir as nossas dívidas ecológicas.
Esta notícia, alarmante e ameaçadora, ganhou apenas algumas linhas na parte internacional dos jornais, ao contrário da outra que até hoje ocupa as manchetes dos meios de comunicação e os principais noticiários de televisão. Lógico, nem poderia ser diferente. O que estrutura as sociedades mundiais, como há muitos anos o analisou Polaniy no seu famoso livro A Grande Transformação, não é nem a política nem a ética e muito menos a ecologia, mas unicamente a economia. Tudo virou mercadoria, inclusive a própria Terra. E a economia submeteu a si a política e mandou para o limbo a ética.
Até hoje somos castigados dia a dia a ler mais e mais relatórios e análises da crise económico-financeira como se somente ela constituísse a realidade realmente existente. Tudo o mais é secundarizado ou silenciado.
A discussão dominante restringe-se a esta questão: que correcções importa fazer para salvar o capitalismo e regular os mercados? Assim poderíamos continuar as usual a fazer os nossos negócios dentro da lógica própria do capital que é: quanto posso ganhar com o menor investimento possível, no lapso de tempo mais curto e com mais chances de aumentar o meu poder de competição e de acumulação? Tudo isso tem um preço: a delapidação da natureza e o esquecimento da solidariedade geracional para com os que virão depois de nós. Eles precisam também satisfazer as suas necessidades e habitar um planeta minimamente saudável. Mas esta não é a preocupação nem o discurso dos principais actores económicos mundiais mesmo da maioria dos Estados, como o brasileiro que, nesta questão, é administrado por analfabetos ecológicos.
Poucos são os que colocam a questão axial: afinal trata-se de salvar o sistema ou resolver os problemas da humanidade? Esta é constituída em grande parte por sobreviventes de uma tribulação que não conhece pausa nem fim, provocada exactamente por um sistema económico e por políticas que beneficiam apenas 20% da humanidade, deixando os demais 80% a comer migualhas ou entregues à sua própria sorte. Curiosamente, as vitimas que são a maioria sequer estão presentes ou representadas nos foros em que se discute o caos económico actual. E pour cause, para o mercado são tidos como zeros económicos, pois o que produzem e o que consomem é irrelevante para a contabilidade geral do sistema.
A crise actual constitui uma oportunidade única de a humanidade parar, pensar, ver onde se cometeram erros, como evitá-los e que rumos novos devemos conjuntamente construir para sair da crise, preservar a natureza e projectar um horizonte de esperança, promissor para toda a comunidade de vida, incluídas as pessoas humanas. Trata-se sem mais nem menos de articular um novo padrão de produção e de consumo com uma repartição mais equânime dos benefícios naturais e tecnológicos, respeitando a capacidade de suporte de cada ecossistema, do conjunto do sistema-Terra e vivendo em harmonia com a natureza.
Mikhail Gorbachev, presidente da Cruz Verde Internacional e um dos principais animadores da Carta da Terra, grupo ao qual pertenço, advertiu recentemente: Precisamos de um novo paradigma de civilização porque o actual chegou ao seu fim e exauriu as suas possibilidades. Temos que chegar a um consenso sobre novos valores. Em 30 ou 40 anos a Terra poderá existir sem nós.
A busca de um novo paradigma civilizatório é condição da nossa sobrevivência como espécie. Assim como está não podemos continuar. Na última página de seu livro A era dos extremos, diz enfaticamente Eric Hobsbawm: O nosso mundo corre o risco de explosão e de implosão. Tem de mudar. E o preço do fracasso, ou seja, a alternativa para a mudança da sociedade é a escuridão.
Importa entender que estamos enredados em quatro grandes crises: duas conjunturais – a económica e a alimentar – e duas estruturais – a energética e a climática. Todas elas estão interligadas e a solução deve ser includente. Não dá para se ater apenas à questão económica, como é predominante nos debates actuais. Deve-se começar pelas crises estruturais, pois que, se não forem bem encaminhadas, tornarão insustentáveis todas as demais.
As crises estruturais, portanto, são as que mais atenção merecem. A crise energética revela que a matriz baseada na energia fóssil que movimenta 80% da máquina produtiva mundial tem dias contados. Ou inventamos energias alternativas ou entraremos em poucos anos num incomensurável colapso.
A crise climática possui traços de tragédia. Não estamos indo ao encontro dela. Já estamos dentro dela. A Terra já começou a aquecer-se. A roda começou a girar e não há mais como pará-la, apenas diminuir a sua velocidade ao minimizar os seus efeitos catastróficos e ao adaptar-se a ela. Biliões e biliões de dólares devem ser investidos anualmente para estabilizar o clima em torno de 2 a 3 graus Celsius, já que o seu aquecimento poderá ficar entre 1,6 a 6 graus, o que poderia configurar uma devastação gigantesca da biodiversidade e o holocausto de milhões de seres humanos.
De todas as formas, mesmo mitigado, este aquecimento vai produzir transtornos significativos no equilíbrio climático da Terra e provocar nos próximos anos cerca de 150-200 milhões de refugiados climáticos, segundo dados fornecidos pelo actual Presidente da Assembleia Geral da ONU, Miguel d’Escoto, no seu discurso inaugural em meados de Outubro de 2008. E estes dificilmente aceitarão o veredicto de morte sobre as suas vidas. Romperão fronteiras nacionais, desestabilizando politicamente muitas nações.
Estas duas crises estruturais vão inviabilizar o projecto do capital. Ele partia do falso pressuposto de que a Terra é uma espécie de baú do qual podemos tirar recursos indefinidamente. Hoje ficou claro que a Terra é um planeta pequeno, velho e limitado que não suporta um projecto de exploração ilimitada..
Em 1961 precisávamos de metade da Terra para atender as demandas humanas. Em 1981 empatávamos: precisávamos de uma Terra inteira. Em 1995 já ultrapassámos em 10% a sua capacidade de regeneração, mas era ainda suportável. Em 2008 passámos de 40% e a Terra está a dar sinais inequívocos de que já não aguenta mais. Se mantivermos o crescimento do PIB mundial entre 2-3% ao ano, em 2050 vamos precisar de duas Terras, o que é impossível. Mas não chegaremos lá. Resta ainda lembrar que entre 1900, quando a humanidade tinha 1,6 mil milhões de habitantes, e 2008, com 6,7 mil milhões, o consumo aumentou 16 vezes. Se os países ricos quisessem generalizar para toda a humanidade o seu bem-estar – cálculos já foram feitos – iríamos precisar de duas Terras iguais à nossa.
A crise de 1929 dava por descontada a sustentabilidade da Terra. A nossa não pode mais contar com este facto e com a abundância dos recursos naturais. Nenhuma solução meramente económica da crise pode suprir este déficit da Terra. Não considerar este dado torna a análise manca naquilo que é a determinação fundamental e a nova centralidade.
Tudo isso nos convence de que a crise do capital não é crise cíclica. É crise terminal. Em 300 anos de hegemonia praticamente mundial, esse modo de produção com a sua expressão política, o liberalismo, destruiu com a sua voracidade desenfreada as bases que o sustentam: a força de trabalho, substituindo-a pela máquina, e a natureza, devastando-a a ponto de ela não conseguir, sozinha, se auto-regenerar. Por mais estratagemas que os seus ideólogos vindos da tradição marxiana, keneysiana ou outras tentem inventar saídas para este corpo moribundo, elas não serão capazes de reanimá-lo. As suas dores não são de parto de um novo ser mas dores de um moribundo. Ele não morrerá nem hoje nem amanhã. Possui capacidade de prolongar a sua agonia, mas esgotou a sua virtualidade de nos oferecer um futuro discernível. Quem o está a matar não somos nós, já que não nos cabe matá-lo mas superá-lo, na boa tradição marxiana bem lembrada por Chico Oliveira na sua lúcida entrevista, mas a própria natureza e a Terra.
Repetimos: os limites do capitalismo são os limites da Terra. Já encostámos nestes limites tanto da Terra quanto do capitalismo. A continuar, seremos destruídos por Gaia, pois ela, no processo evolucionário, sempre elimina aquelas espécies que de forma persistente e continuada ameaçam todas as demais. Nós, homo sapiens e demens, nos fizemos, na dura expressão do grande biólogo E. Wilson, o Satã da Terra, quando a nossa vocação era o de sermos o seu cuidador, guardião e anjo bom.
Para onde iremos? Nem o Papa nem o Dalai Lama, nem Barack Obama nem muito menos os economistas nos poderão apontar uma solução. Mas pelo menos podemos indicar uma direcção. Se esta estiver certa, o caminho poderá fazer curvas, subir e descer e até conhecer atalhos, esta direcção nos levará a uma terra na qual os seres humanos podem ainda viver humanamente e tratar com cuidado, com compaixão e com amor a Terra, Pacha Mama, Nana e nossa Grande Mãe.
Esta direção, como tantos outros já o assinalaram, assenta nestes cinco eixos:
(1) um uso sustentável, responsável e solidário dos limitados recursos e serviços da natureza;
(2) o valor de uso dos bens deve ter prioridade sobre o seu valor de troca;
(3) um controle democrático deve ser construído nas relações sociais, especialmente sobre os mercados e os capitais especulativos;
(4) o ethos mínimo mundial deve nascer do intercâmbio multicultural, dando ênfase à ética do cuidado, da compaixão, da cooperação e da responsabilidade universal;
(5) a espiritualidade, como expressão da singularidade humana e não como monopólio das religiões, deve ser incentivada como uma espécie de aura benfazeja que acompanha a trajectória humana, pois ancora o ser humano e a história numa dimensão para além do espaço e do tempo, conferindo sentido à nossa curta passagem por este pequeno planeta.
Devemos crer, como nos ensinam os cosmólogos contemporâneos, nas virtualidades escondidas naquela Energia de fundo da qual tudo provém, que sustenta o universo, que actua por detrás de cada ser e que subjaz a todos os eventos históricos e que permite emergências surpreendentes. É do caos que nasce a nova ordem. Devemos fazer de tudo para que o actual caos não seja destrutivo mas criativo. Então sobrevivemos com o mesmo destino da Terra, a única casa comum que temos para morar.
http://infoalternativa.org/spip.php?article489
Sem comentários:
Enviar um comentário