Os comissários políticos do actual governo gostam de argumentar com a legitimidade democrática quando se pronunciam sobre o conflito entre os professores e o ministério da educação. O argumento, resumido, é este: o Partido Socialista obteve uma maioria dos votos; esta maioria confere legitimidade democrática ao governo; e a legitimidade democrática dá ao governo o direito de fazer tudo o que entende, determinando sozinho em que consiste e em que não consiste o bem comum.
Esta conclusão é falsa, como reconheceria Vital Moreira se estivesse de boa-fé e Fernanda Câncio se soubesse do que está a falar. Nenhum governo, seja qual for a dimensão da sua maioria, tem o direito de fazer tudo o que entende, e isto desde já porque o Soberano - leia-se, o eleitorado - não passa cheques em branco. Os deputados são eleitos com um mandato, e este mandato tem, não só uma duração, como um conteúdo. E se a legitimidade caduca no fim do mandato, também pode caducar em resultado do seu incumprimento.
Isto mesmo reconheceu José Sócrates - mas só porque lhe convinha de momento - a propósito da casamento de pessoas do mesmo sexo. Segundo ele, o PS votou contra propostas neste sentido porque esta questão não constava do programa eleitoral apresentado há quatro anos. Isto é: os deputados do PS votaram contra, não porque discordassem, mas porque não se consideravam mandatados para votar a favor (eu julgava que as abstenções serviam precisamente para estes casos, mas adiante). Agora tudo mudou: a questão pode ser apresentada em Congresso; se aprovada, fará parte do programa eleitoral do PS para a próxima legislatura; e nessa legislatura os deputados do PS considerar-se-ão legitimados para votar a favor.
Tudo muito formal. Tudo muito correcto. Tudo muito democrático. Só é pena que o governo e o seu grupo parlamentar não tenham os mesmos escrúpulos de legitimidade e de correcção democrática quando decidem, em matérias de relações laborais ou em matéria educativa, em contravenção directa daquilo para que foram mandatados.
Além dos limites que resultam da sua duração e do seu conteúdo, os mandatos têm outros limites de variadíssima ordem. Começando pelos limites formais, há desde logo a considerar a legalidade e pelo sistema de freios e contrapesos próprios duma democracia.
(É por isso que entendo que os professores fazem bem em enveredar pela litigação contra o ministério, apesar de a morosidade da justiça tornar esta estratégia muito insuficiente e de a luta ter que se desenvolver também noutras frentes. Ao recorrer aos tribunais, os professores estão a notificar o governo, para memória futura, que estão dispostos a opor uma legitimidade formal a outra legitimidade formal.)
Dos limites informais, há um que, de tão óbvio e peremptório, não precisa (ou não devia precisar) de ser formalizado: nenhuma maioria, por avassaladora que seja, pode legislar em matéria de facto.
Ilustro este ponto: quando foi apresentado na assembleia legislativa do Texas um projecto de lei para que pi passasse a ser igual a três, os parlamentares tiveram a sensatez de o chumbar; mas, mesmo que o tivessem aprovado, a lei daqui resultante seria nula no mundo real e o valor de pi continuaria a ser o mesmo no Texas e no resto do Universo. O exemplo é caricato, mas em Portugal, em pleno século XXI, o Ministério da Educação está a fazer exactamente o mesmo: assume uma autoridade científica que não tem para impor doutrinas pedagógicas que estão longe de ser consensuais, e arroga-se o direito de avaliar os professores pela maior ou menor conformidade das suas práticas com estas doutrinas.
Não há legitimidade democrática que fundamente esta usurpação de autoridade.
Ora se os governos legítimos não têm autoridade em matéria de facto, mas sim e apenas em matéria de direito, decorre daqui que não lhes compete em exclusivo determinar o que é o bem comum. O bem comum tem que ser determinado com conhecimento de causa, e nenhuma autoridade pública, mesmo que recorra a peritos, tem conhecimento de causa suficiente para o determinar em todos os seus aspectos. Nas vertentes em que esta determinação exige conhecimento especializado, os detentores deste conhecimento têm uma palavra a dizer: por isso mesmo existem Ordens profissionais e códigos deontológicos. E, mesmo no plano individual, cada cidadão tem o direito e o dever de ter o seu próprio entendimento do bem comum. Ninguém - nem mesmo os funcionários públicos, os polícias ou os militares - pode ser obrigado a fazer o que considera imoral ou nocivo. O limite último e absoluto da legitimidade democrática é, assim, a consciência moral e cívica de cada cidadão.
Entre eleições, a vontade do Soberano manifesta-se dos mais diversos modos, e os eleitos não estarão a cumprir o seu dever se não tiverem em consideração essas manifestações. As cartas aos jornais, as manifestações de rua, as greves, as queixas ao Provedor de Justiça, as acções em tribunal, ou mesmo, no limite, a desobediência civil - tudo isto são expressões legítimas da vontade do Soberano. Os eleitos têm, certamente, uma margem de interpretação quando fazem a leitura desta vontade; mas não têm o direito de a menosprezar ou ignorar, ou de ver nas suas formas de expressão meros actos de de incivismo, quando são exactamente o contrário. Este menosprezo não só não reforça a legitimidade democrática dos eleitos, como a reduz; e numa época em que a evolução tecnológica está a operar uma transformação profunda na própria noção de Democracia - que tenderá inevitavelmente a tornar-se mais directa, mais participativa e menos representativa - qualquer eleito que se entrincheire na sua legitimidade formal para ignorar as sucessivas explicitações de mandato que o Soberano lhe tenta transmitir estará a enveredar por uma via suicidária.
Chegado a este ponto, não quero usar como argumento uma reductio ad Hitlerum - coisa que fui acusado de fazer quando apontei, num artigo anterior, as semelhanças entre o uso político que José Sócrates está a fazer dos funcionários públicos e dos professores e o uso político que Hitler fez dos judeus. Não quero pôr José Sócrates no mesmo plano moral que Adolf Hitler; não faço o mesmo juízo de valor dos actos de um e dos actos de outro; e estou perfeitamente consciente das muitas e importantes diferenças que há entre os dois homens. Mas se me abstenho de fazer juízos de valor, não renuncio a fazer juízos de facto. E de facto ambos demonizaram um grupo dos seus concidadãos para obter o apoio dos restantes.
Outro facto é que José Sócrates faz, como fez Hitler, uma leitura totalitária da legitimidade democrática. Tal como Hitler, Sócrates faz por ignorar que o mandato popular tem um conteúdo e que tem limites; e faz por ignorar que a sociedade civil (ou, como ele diz, «as corporações») tem as suas próprias fontes de autoridade que ultrapassam as formalidades da democracia e lhes dão sentido e propósito.
Como Hitler, José Sócrates acha-se com autoridade para impor por via administrativa o que só a autoridade científica pode impor. Hitler fez isto na Antropologia e na Biologia; José Sócrates faz isto, por exemplo, nas chamadas Ciências da Educação. Não comparo no plano ético as duas imposições; sei bem que a actuação de Sócrates é, felizmente para nós, muito menos grave que a de Hitler; mas a natureza das duas é a mesma, como é a mesma - ou seja, nula - a legitimidade democrática duma e doutra.
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