As concepções surrealistas da política financeira de crise
O debate sobre a dívida pública é um evergreen da política financeira. Os auto-proclamados apóstolos da seriedade gostam de passar a imagem do pai de família poupado, que não sobrecarrega insensatamente as gerações futuras. Da socialização capitalista resultam, porém, encargos estatais insusceptíveis de financiamento com a colecta corrente de impostos. Esta contradição tem a sua história; de facto, nos últimos 100 anos, juntamente com o rácio da actividade estatal, a dívida pública tem subido para um nível cada vez maior, apesar de interrupções ocasionais. A doutrina neo-liberal transversal aos partidos pretendia, em princípio, obrigar o pai de família estatal a um orçamento equilibrado, para manter em cheque o potencial inflacionário, à custa dos serviços públicos. Porém, entretanto, surgiu uma verdadeira crise da economia mundial. E logo tudo muda de figura, porque se trata da salvação do sistema financeiro e económico.
O Ministro das Finanças, Steinbrück, pertence no fundo à linha dura dos defensores da consolidação orçamental no SPD. Ainda na Primavera de 2008, sob a impressão da conjuntura de exportação em desenvolvimento acelerado, ele pretendia impor na Lei Fundamental um "travão ao endividamento". Devia ser imposta obrigatoriamente mais receita fiscal para amortização da dívida. Naturalmente que tudo isto já está fora de circulação. O facto de, no caso dos pacotes de salvamento do sistema financeiro e de apoio à economia, a menor unidade ser o milhar de milhão aponta para a dimensão sem precedentes do problema. Nesta situação, a discussão da política financeira assume traços quase surrealistas. O líder dos liberais do FDP, Westerwelle, ironizou sobre o segundo pacote de apoio à economia como "uma salsicha de caril com maionese, mas sem batatas fritas", pois pelas suas contas representa apenas 3,10 euros mensais para cada cidadão. Mas mesmo esta salsicha sem batatas fritas já custa 50 mil milhões de euros.
Embora o derretimento das receitas fiscais pela quebra da conjuntura mundial ainda não tenha sido calculado, FDP e CSU recomendam uma redução geral de impostos como panaceia. No entanto, isto só por si levaria ao colapso das finanças públicas; os serviços públicos ficariam praticamente paralisados. Mas não garantiria de modo algum a regeneração da economia privada, pois a soma do desagravamento mais depressa iria reforçar as poupanças. Inversamente, os partidos da coligação rejeitaram uma exigência do SPD de elevar por dois anos a taxa fiscal máxima de 45 para 47,5 por cento, para poder financiar o aumento de encargos. Dê-se as voltas que se der, os pacotes de apoio à economia são muito pequenos e mesmo assim são muito caros. Os impostos tinham de subir e baixar ao mesmo tempo, o que nem o mais habilidoso malabarista do equilíbrio das finanças públicas conseguiria.
As querelas sobre a política fiscal sofrem de perda do sentido da realidade. Rodar o contador dos impostos seja em que sentido for, sob as actuais condições de crise, é rodar em falso. Mesmo a fraca dose da injecção na conjuntura já não é financiável “com seriedade”. O regatear sobre incentivos ao abate de automóveis velhos ou sobre a redução temporária nos descontos para seguros de saúde já quase levam ao esquecimento os pacotes de salvamento do sistema bancário, cujo vencimento é bem incerto. Se o Estado não conseguir funcionar como instância abstracta de garantia, mas também tiver de assumir uma parte dos compromissos vencidos, os pacotes de apoio à economia são comparativamente peanuts. Com efeito, um inquérito realizado pelo Banco Central e pela Autoridade de Supervisão Bancária (BaFin) entre as 20 maiores instituições de crédito revelou que ainda existem mais esqueletos de depreciação no armário do sistema bancário alemão, na ordem do bilião de euros.
É já claro que 2009 trará o mais elevado deficit federal na história do pós-guerra. Os critérios assumidos no "pacto de estabilidade" do Tratado de Maastricht, que limitam o deficit ao máximo de 3 por cento do produto interno bruto, já não podem ser cumpridos, até porque ao mesmo tempo o crescimento está a cair. É verdade que o mesmo se aplica a todos os Estados membros da UE, mas isso não é consolo. Para já não ter de enfrentar esta realidade catastrófica, Steinbrück avançou na semana passada com uma viagem no tempo, até aos anos “após a crise". Neste futuro edificante em termos de política fiscal, as receitas adicionais que supostamente são de esperar hão-de servir apenas para reembolsar os actuais empréstimos mastodônticos. O governo federal estabelecerá até ao fim de Janeiro regras rigorosas de amortização a condizer; a proposta de Steinbrück de uma emenda constitucional neste sentido também voltará a ser debatida.
Esta extraordinária ideia de fugir para uma retoma totalmente imaginária para além da crise, que só pode ter sido inspirada ao ministro das finanças pelo seu superego neoliberal, não foi bem aceite no seu próprio partido. O burgomestre de Berlim, Wowereit, ergueu-se contra a "ideia abstrusa" de um "travão ao endividamento" na Constituição, quando só as medidas até aqui tomadas já pressupõem um serviço de dívida elevado e duradouro. De facto, o objectivo proposto por Steinbrück assemelha-se à proposta de puxar o travão de mão quando o carro já voa pelo ar. E é de esperar uma explosão da dívida pública, porque uma crise económica global, ao contrário das recessões habituais, representa um problema a longo prazo com saída em aberto. Até agora, o Estado limitou-se a fazer de salvador universal, apenas com declarações de intenções. Na medida em que ele tiver de financiar realmente as suas monumentais intervenções, o actual alarido conceptual revelar-se-á como debate de fantasmas. Todos têm razão, mas apenas no seu aviso de que os argumentos do adversário não colhem. Esta situação indica que estamos a lidar com uma crise sistémica desenvolvida. Maus tempos para os poupados pais de família do capitalismo.
Robert Kurz
http://obeco.planetaclix.pt/
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