O livro a todos os títulos importantíssimo está esgotado em Portugal. Daí que tenhamos considerado a oportunidade de publicar os dois textos seguintes introduzindo a obra desconhecida ainda de muitos
Imposturas Intelectuais - Alan Sokal e Jean Bricmont
A publicação deste livro em França parece ter criado uma pequena tempestade em determinados círculos intelectuais. De acordo com o que Jon Henley escreveu no The Guardian, mostrámos que «a moderna filosofia francesa é uma imensidão de disparates»2. De acordo com o que Robert Maggiori escreveu no Libération, somos cientistas pedantes, sem humor, que corrigem os erros gramaticais das cartas de amor3. Gostaríamos de explicar brevemente por que não concordamos com estas duas posições e de responder não só aos que nos criticam, como igualmente àqueles que nos apoiam com bastante entusiasmo.
O livro surgiu a partir de um já famoso embuste: um de nós publicou na Social Text, uma revista americana de estudos culturais, um artigo em forma de paródia com um amontoado de citações sobre física e matemática, sem nenhum sentido, mas infelizmente autênticas, da autoria de proeminentes intelectuais franceses e norte-americanos4. No entanto, apenas uma pequena parte do dossier descoberto por Sokal durante a pesquisa bibliográfica que efectuou pôde ser incluído na paródia. Depois de termos mostrado o dossier na sua totalidade a amigos cientistas e não cientistas, convencemo-nos, pouco a pouco, de que valeria a pena colocá-lo à disposição de um público mais vasto. Pretendíamos explicar, em termos não técnicos, o absurdo das citações ou, em muitos casos, a simples ausência de sentido; pretendíamos igualmente discutir as circunstâncias que fizeram com que esses discursos alcançassem tal nomeada e tivessem continuado até então ocultos.
Mas o que reivindicamos exactamente? Nem muito nem pouco. Mostramos que intelectuais famosos, como Lacan, Kristeva, Irigaray, Baudrillard e Deleuze, abusaram repetidamente da terminologia e de conceitos científicos, quer usando ideias científicas totalmente fora do seu contexto, sem para tal fornecerem a mínima justificação -note--se que não nos opomos à extrapolação de conceitos de uma área para outra, mas apenas à que é efectuada sem qualquer tipo de argumentação-, quer lançando o jargão científico à cara dos leitores não cientistas, sem considerarem a sua relevância ou mesmo o seu sentido. Não reivindicamos que esta atitude invalide o resto da sua obra, em relação à qual evitamos qualquer juízo.
Por vezes somos acusados de sermos cientistas arrogantes, mas a nossa opinião sobre o papel das ciências exactas é, na realidade, bastante modesta. Não seria óptimo (quer dizer, para nós, matemáticos e físicos) se o teorema de Gödel ou a teoria da relatividade tivessem implicações profundas e imediatas no estudo da sociedade? Ou se o axioma da escolha pudesse ser usado para estudar poesia? Ou se a topologia tivesse algo a ver com a psique humana? Mas, infelizmente, nada disto é assim.
O segundo alvo do nosso livro é o relativismo epistémico, nomeadamente uma ideia que, pelo menos quando expressa explicitamente, está muito mais espalhada nos países anglo-saxónicos do que na França: a ideia segundo a qual a ciência moderna não é mais do que um «mito», uma «narrativa» ou uma «construção social» entre muitas outras5. Além de alguns abusos enormes (por exemplo, Irigaray), analisamos em pormenor uma série de confusões muito frequentes nos circuitos do pós-modernismo e dos estudos culturais: por exemplo, a apropriação abusiva de ideias da filosofia da ciência, tais como a subdeterminação da teoria pelas provas e pelos testemunhos ou a ideia de que a observação depende da teoria, para apoiar o relativismo radical.
Este livro é, portanto, constituído por duas concepções distintas, embora relacionadas entre si. Em primeiro lugar, há a colecção de abusos extremos descobertos muito ao acaso por Sokal: são essas as imposturas do título desta obra. Em segundo lugar, há a crítica que fazemos ao relativismo epistémico e às concepções erradas de «ciência pós-moderna»: estas análises são consideravelmente mais subtis. A ligação entre estas duas críticas é fundamentalmente sociológica: os autores franceses das «imposturas» estão na moda em muitos círculos académicos anglo-saxónicos, nos quais o relativismo epistémico é o pão nosso de cada dia6. Há também um vínculo lógico mais ténue: se se aceita o relativismo epistemológico, então há menos razões para se discordar das más representações das ideias científicas, que de qualquer forma não passam de um outro «discurso».
É óbvio que não escrevemos este livro para realçar alguns abusos isolados. Os nossos alvos são mais vastos, embora não sejam necessariamente os que nos são atribuídos. Este livro ocupa-se de questões como a mistificação, a linguagem deliberadamente obscura, a confusão de pensamento e o uso abusivo de conceitos científicos. Os textos que citamos podem ser a ponta de um icebergue, mas o icebergue deveria ser definido como um conjunto de práticas intelectuais, e não como um grupo social.
Suponha-se, por exemplo, que um jornalista descobre e publica alguns documentos que provam que determinados políticos altamente respeitados são corruptos. (Sublinhamos o facto de que isto é uma analogia, ou seja, não consideramos que os abusos aqui descritos sejam tão graves.) É claro que algumas pessoas concluirão de imediato que a maioria dos políticos são corruptos, ideia que será encorajada por demagogos que pretendem retirar dividendos políticos dessa conclusão7. Mas tal extrapolação seria errada.
Considerar este livro uma crítica generalizada às humanidades e às ciências sociais -como alguns críticos franceses fizeram- seria não só não compreender as nossas intenções, como também revelaria, numa curiosa assimilação, uma atitude de um certo desprezo para com aquelas áreas que estão na mente daqueles críticos8. Se formos lógicos, os abusos denunciados neste livro podem coexistir ou não tanto nas humanidades como nas ciências sociais. Se coexistissem, então estaríamos realmente a atacar em bloco essas áreas, o que seria justificado. Se não coexistem (como cremos), então simplesmente não há razão para criticar um académico por aquilo que diz outro académico da mesma área. De uma maneira mais geral, qualquer leitura do nosso livro como um ataque incondicional a X -seja X o pensamento francês, a esquerda cultural americana ou outra coisa qualquer- pressupõe que o todo de X está permeado pelos maus hábitos intelectuais que denunciamos e essa acusação tem de ser estabelecida por quem a efectua.
Enquanto escrevíamos este livro, beneficiámos de inúmeras discussões e debates, tendo recebido muitos encorajamentos e críticas. Apesar de não podermos agradecer individualmente a todos os que deram a sua contribuição, queremos exprimir o nosso reconhecimento àqueles que nos ajudaram, apontando referências ou lendo e criticando partes do manuscrito: Michael Albert, Robert Alford, Roger Balian, Louise Barre, Jeanne Baudouin von Stebut, Paul Boghossian, Raymond Boudon, Pierre Bourdieu, Jacques Bouveresse, Georges Bricmont, James Robert Brown, Tim Budden, Noam Chomsky, Helena Cronin, Bérangère Deprez, Jean Dhombres, Cyrano de Dominicis, Pascal Engel, Barbara Epstein, Roberto Fernández, Vincent Fleury, Julie Franck, Allan Franklin, Paul Gérardin, Michel Gevers, Michel Ghins, Yves Gingras, Todd Gitlin, Gerald Goldin, Sylviane Goraj, Paul Gross, Étienne Guyon, Michael Harris, Géry-Henri Hers, Gerald Holton, John Huth, Markku Javanainen, Gérard Jorland, Jean-Michel Kantor, Noretta Koertge, Hubert Krivine, Jean-Paul Krivine, Antti Kupiainen, Louis Le Borgne, Gérard Lemaine, Geert Lernout, Jerrold Levinson, Norm Levitt, Jean-Claude Limpach, John Madore, Andréa Loparic, John Madore, Christian Maes, Francis Martens, Maurice Mashaal, Tim Maudlin, Sy Mauskopf, Jean Mawhin, Maria McGavigan, N. David Mermin, Enrique Muñoz, Meera Nanda, Michael Nauenberg, Marina Papa, Patrick Peccatte, Jean Pestieau, Daniel Pinkas, Louis Pinto, Alain Pirotte, Olivier Postel Vinay, Patricia Radelet-de Grave, Marc Richelle, Benny Rigaux-Bricmont, Ruth Rosen, David Ruelle, Patrick Sand, Mónica Santoro, Abner Shimony, Lee Smolin, Philippe Spindel, Hector Sussmann, Jukka-Pekka Takala, Serge Tisseron, Jacques Treiner, Claire Van Cutsen, Jacques Van Rillaer, Loïc Wacquant, M. Norton Wise, Nicolas Witkowski e Daniel Zwanziger. Agradecemos igualmente aos nossos editores, Nicky White e George Witte, pelas suas sugestões valiosas. Sublinhamos que estas pessoas não estão necessariamente de acordo com o conteúdo ou mesmo com a intenção desta obra.
Finalmente, agradecemos à Marina, à Claire, ao Thomas e ao Antoine por nos terem apoiado durante os últimos dois anos.
Estamos muito contentes por este livro ser agora editado em Portugal. Esperamos que a partir dele possa ser desencadeado e estimulado neste país um debate fecundo e produtivo sobre as ideias nele contidas. Gostaríamos de exprimir a nossa profunda gratidão aos tradutores portugueses, Nuno Crato e Carlos Veloso, que colaboraram connosco com dedicação na preparação desta tradução e inseriram pacientemente no texto todas as nossas últimas indicações, alterações e melhoramentos.
Prefácio à Edição Portuguesa
Site de Alan Sokal: http://vesuvius.physics.nyu.edu/faculty/sokal/index.html
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