Ficou famosa a invectiva do antigo ministro da Educação Marçal Grilo, quando um dia solicitou que se deixasse de falar "eduquês", o dialecto cerrado e incompreensível com o qual se tenta justificar o "status quo" educativo, para passarem a falar português corrente que todos entendessem. Estava visivelmente incomodado com a obscuridade de alguns chamados cientistas da educação. A expressão ficou e qualquer dia será dicionarizada.
O certo é que, sob o manto diáfano dessa prosa, escondem-se por vezes os maiores erros e outras vezes simples vacuidades, que de tão desprovidas de nexo nem sequer erros chegam a ser. Esses erros são responsáveis em larga medida pelo estado pouco mais do que calamitoso da educação nacional, incluindo em particular o ensino das ciências.
Vale a pena enumerar alguns, quanto mais não seja para impedir disseminações maiores. Uma vez que tal discurso vaporoso é copiado em segunda ou terceira mão de autores bem intencionados mas desligados das realidades ou desactualizados e já foi ou está a ser contraditado noutras paragens, basta citar uma polémica que há poucos anos surgiu nos Estados Unidos. Contra o "eduquês" norte-americano ergueu-se, entre outras, a voz de E. D. Hirsch, Jr., professor na Universidade de Virgínia e autor do "best-seller intitulado "Cultural Literacy". No livro de Hirsch referenciado em baixo e cujo título em português se pode traduzir por "As escolas que precisamos e por que razão não as temos", há um glossário que refere os cinco temas maiores do "eduquês". Vejamos quais são e uma mão cheia de expressões que os sustentam:
Concepção instrumental da educação: "aprender a aprender", "aptidão para o pensamento crítico", "aptidões metacognitivas", "aprendizagem permanente".
Desenvolvimentalismo romântico: "aprendizagem ao ritmo dos alunos", "escola centrada na criança", "diferenças individuais dos alunos", "estilos individuais de aprendizagem", "inteligências múltiplas", "ensinar a criança e não a matéria".
Pedagogia naturalista: "construtivismo", "aprendizagem cooperativa", "aprendizagem por descoberta", "aprendizagem holística", "método de projecto", "aprendizagem temática".
Antipatia ao ensino de conteúdos: "os factos não contam tanto como a compreensão", "os factos ficam desactualizados", "menos é mais", "aprendizagem para a compreensão".
Estas expressões podem parecer familiares a alguns leitores, nomeadamente aos que frequentaram escolas de educação ou simplesmente seguiram disciplinas educacionais ainda que noutras escolas. É que elas permeiam muito do que aí se transmite. Apesar de algumas poderem fazer sentido de "per si" (encerram algo de trivial), aparecem normalmente mal baralhadas, confundindo quem as ouve ou quem as lê.
Por exemplo, o "aprender a aprender" (sic) é, em geral, apenas um jogo de palavras que inebria quem as profere. Usa-se também neste contexto o dito proverbial "mais vale ensinar a pescar que dar um peixe". Nesta concepção educativa, interessa mais o instrumento – a cana de pesca – do que propriamente o peixe. Quem diz isso é capaz de ficar a pescar horas perdidas sem pescar nada, não se importando nada com isso. De resto, quem diz isso parte de um erro: que se pode separar o conhecimento factual da atitude para o adquirir. Como se poderão transmitir atitudes em abstracto sem objectos que as exijam?
Outro exemplo: a "aprendizagem ao ritmo dos alunos" pretende inculcar a ideia romântica que os alunos se devem desenvolver naturalmente, sem imposições exteriores. Poderá parecer sensata mas é profundamente ingénua. Muita evidência acumulada desde há muito tempo mostra que a imposição pelos professores de objectivos, prazos, níveis de exigência e recompensas adequadas consegue aumentar em muito a aprendizagem dos alunos. Os alunos, abandonados ao seu ritmo, estão definitivamente condenados ao fracasso.
O construtivismo, por sua vez, é uma doutrina psicológica e sociológica que já conheceu melhores dias. Defende que só as ideias construídas pelo próprio têm consistência suficiente para permanecerem. Há um certo fundo de verdade nessa afirmação, mas é completamente delirante esperar que o menino Joãozinho, que está no nono ano do básico, corra um dia da banheira a dizer "eureka!" tal qual Arquimedes. Podem bem esperar os construtivistas que um aluno construa a lei da impulsão sozinho, ou, a níveis mais avançados, a lei da gravitação universal ou a teoria da relatividade geral.
Por último, desmontemos a frase que "os factos não contam tanto como a compreensão". É claro que os factos contam mais se forem relacionados entre si, podendo nós chamar compreensão a essa visão global. Mas estas relações, se forem bem estabelecidas (isto é, comprovadas), são evidentemente novos factos. Portanto, os factos e a sua compreensão são inextricáveis. Como diz Hirsh: "Se a compreensão depende dos factos, é simplesmente contraditório louvar a compreensão em detrimento dos factos".
Muito mais se poderia dizer. Poder-se-ia mostrar extensivamente como é absurda uma escola sem currículo, uma escola sem avaliação e uma escola sem o lugar central reservado ao professor. Todo esse absurdo seria inócuo se ele não dominasse quase por completo o Ministério da Educação português e, por osmose, a generalidade das nossas escolas. Não se tratará da influência nefasta de um partido ou de outro, pois todos os partidos que têm passado pelo governo têm decerto culpas no seu cartório. Não haverá decerto uma exclusiva responsabilidade individual de um governante. Mas, no passado, houve ministros que, em momentos de maior clarividência, interpelaram o "eduquês". E agora?
LIVROS PARA SABER MAIS
E. D. Hirsch Jr., The Schools We Need and Why We Don’t Have Them, Anchor Books, Doubleday, New York, 1999.
O glossário de "eduquês" de Hirsch devia ser lido por todos os educadores para eles pelo menos relativizarem algumas ideias feitas que receberam e se curarem, pelo menos parcialmente, da "lavagem ao cérebro" a que foram sujeitos. Apesar de não ser um cientista, no sentido estrito do termo, ele ensina-nos aquilo que os cientistas bem sabem: que o pensamento para ser eficaz tem de ser crítico e que ele, por isso, tem de desrespeitar ideias preconcebidas.
Maria Helena Damião da Silva, O Erro no Ensino. Conceptualização e Estudo Empírico, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Coimbra, 2001.
Em ciência a noção de erro é essencial, pois a ciência procura continuamente eliminar o erro. Mas, em ciências da educação, e nomeadamente no contexto das práticas educativas, a noção de erro raramente tem sido discutida. Por isso, só é de enaltecer o aparecimento recente desta tese de doutoramento em ciências de educação que foca precisamente o erro em educação. A autora, que já tinha alguns interessantes livros baseados na sua prática pedagógica, discute na tese os resultados de um estudo empírico em que professores são confrontados com a noção de erro no ensino (seu ou dos outros). Aliás, como bem observou o médico João Lobo Antunes, os portugueses não convivem saudavelmente com a noção de erro...
Carlos Fiolhais
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