Propostas apresentadas nos debates do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial.
«O fim do neoliberalismo?» Quem se atreve a perguntar? Fidel Castro, Hugo Chávez? Não, é o economista e Prémio Nobel norte-americano Joseph Stiglitz, num artigo publicado em 7 de Julho de 2008. Depois de constatar o falhanço económico, social e político do neoliberalismo, afirma que «o fundamentalismo neoliberal de mercado foi sempre uma doutrina política ao serviço de certos interesses. Nunca foi sustentado por uma teoria económica. Hoje poderemos dizer que também não o será pela experiência histórica» [1].
De facto, é preciso constatar que a actual crise do capitalismo, na sua fase neoliberal, toma proporções sistémicas, agrupando as dimensões financeira, monetária, alimentar e energética. Ela gera fortes contradições no sistema e nas suas “elites”: reposição em causa da hegemonia dos Estados Unidos e do “Consenso de Washington”, nomeadamente na América Latina, onde governos progressistas chegaram ao poder; recurso a nacionalizações de instituições financeiras por governos tão “liberais” quanto os de Londres e Washington; enfraquecimento das instituições financeiras internacionais; surgimento de uma nova correlação de forças mundial multipolar com um crescente peso económico e geopolítico dos BRIC (Brasil, Rússia, Índia, China); escalada dos fundos soberanos; guerras no Cáucaso, ligadas em parte a ambições energéticas concorrentes e às veleidades expansionistas da NATO; afundamento no Iraque, no Afeganistão; tensões à volta do Irão; evolução, na Europa, de regimes políticos nacionais para formas de autoritarismo, etc..
Este novo quadro põe em causa aquilo que se poderia chamar o “consenso alterglobalista”, selado no final da década de 1990 por uma galáxia de organizações. Estas diversas redes estiveram até agora aliadas, explícita ou implicitamente, em torno da identificação de um adversário comum e homogéneo, contra um modelo de políticas simbolizado e por vezes imposto pelas instituições multilaterais (Banco Mundial, FMI, OMC), aplicado por todos os governos e ideologicamente dominante no seio das “elites”: o neoliberalismo. É significativo que, no decurso do último decénio, um grande número de mobilizações massivas do movimento alterglobalista tenham sido efectuadas contra essas instituições multilaterais. Seguramente as manifestações contra elas continuarão, mas como, por razões específicas a cada uma, elas atravessam uma crise profunda, isso equivalerá sem dúvida daqui a uns anos a bater no ceguinho.
Podemos então interrogarmo-nos acerca da actual pertinência de um conceito tão abrangente como o de neoliberalismo. Enquanto nos anos de 1990 personificava a simbiose entre uma dimensão política (os governos, as instituições multilaterais e as “elites”), económica (os agentes dos mercados e as instituições bancárias e financeiras) e ideológica (os media), a partir daí padece do esboroamento da coerência capitalista. Paradoxalmente, enquanto esta relativa fraqueza poderia ter reforçado o “movimento dos movimentos”, abana-o. Com efeito, para retomar a análise dum trabalho recente sobre o alterglobalismo [2], «a crise que o Consenso de Washington atravessa desde o fim do milénio deu à luz um cenário mundial mais contrastado, no seio do qual uma série de evoluções respondem potencialmente a certas expectativas alterglobalistas, não suscitando porém a adesão do conjunto de componentes do movimento». Este movimento e os seus principais intervenientes, as ATTAC dos diversos países, estão agora confrontados com problemas existenciais. Este termo não é exagerado na medida em que são as condições objectivas que presidiram à sua formação como tal que se modificaram estruturalmente.
Entre estes problemas, há dois particularmente importantes:
1) A confirmação da existência, no seio do alterglobalismo, duma «floresta de racionalidades políticas». A pluralidade do movimento, das suas tradições e correntes políticas – que tinha constituído a sua força na fase de análise crítica do neoliberalismo – traz os germes de «desacordos entre organizações que tomam parte no debate sobre as alternativas. (Estes) encontram a sua origem em interpretações divergentes da própria globalização económica» [3]. Em França e em alguns outros países europeus estas divergências manifestaram-se em 2005 aquando dos debates sobre o Tratado Constitucional Europeu (TCE), apelando uma parte do movimento (caso das ATTAC da Europa) a rejeitar este texto, outra parte (mais fraca) a ratificá-lo, e a grande maioria abstendo-se de tomar posição. Ora, o TCE não era um texto inofensivo. Tratava-se, nada menos, de dar uma espécie de constituição neoliberal à Europa. Por aqui se vê bem, e constatámo-lo neste tema crucial na preparação do Fórum Social Europeu em Malmö, a fragilidade e os limites do consenso alterglobalista.
2) Uma dificuldade estrutural em pensar o seu relacionamento com a esfera política (na dimensão relativa aos partidos, instituições e governos) que se confirma a dois níveis. Por um lado, em certos casos nacionais, o movimento sofre a concorrência de partidos que pouco a pouco vão reconfigurando o campo político inspirando-se nas propostas e aquisições dos movimentos sociais. Por outro lado, ao nível internacional, mostra-se reticente a pensar numa relação dinâmica com as novas experiências concretas de reposição em causa do neoliberalismo na América Latina.
Uma situação nova pede logicamente reacções novas. O alterglobalismo não pode fazer economia na redefinição das suas formas de existência e na elaboração de respostas programáticas e políticas face ao arranque de um novo ciclo histórico de um capitalismo muito mais diversificado do que o era no período anterior. É o sentido do passo que designámos por «pós-alterglobalismo» [4], em que um dos eixos é a procura de novos espaços e de novas formas de articulação entre movimentos sociais, forças políticas e governos que conduzam combates comuns.
Disso temos um exemplo muito concreto, aliás o único, com a Alternativa Boliviana para os povos da nossa América (ALBA) que de momento agrupa a Bolívia, Cuba, Dominica, Honduras, Nicarágua e Venezuela, e que no futuro poder-se-á alargar a novos membros, nomeadamente Equador e Paraguai. As estruturas da ALBA abarcam não só os governos, mas também um Conselho de Movimentos Sociais dotado de importantes responsabilidades. Além disso, movimentos sociais de países que não sejam membros da ALBA podem também associar-se a esta organização. A ALBA á a primeira estrutura internacional relevante do pós-alterglobalismo, ainda que a si própria não se defina como tal!
O caso da ALBA, amplamente desconhecido fora da América Latina, e em particular na Europa (o que se explica pela hostilidade virulenta dos grandes media), obriga o movimento alterglobalista a colocar-se uma questão de orientação estratégica até agora tabu: deverá o movimento – e se sim, de que forma – ganhar espaços políticos concretos para os transformar? Deverá contentar-se com influenciar este campo, ou integrá-lo, ou então contribuir para a sua renovação?
Aqui as ideias de “geometrias variáveis” ou de “cooperações reforçadas”, longe de serem contraditórias com a de “pós-alterglobalismo”, constituem ao invés variantes. É por puro artifício retórico que o sindicalista Pierre Khalfa delas faz alternativas distintas ao statu quo gravado no mármore da Carta de Princípios de Porto Alegre pois, tanto num caso como noutro, e para retomar as suas próprias formulações, «trata-se de fazer evoluir o sentido político dos Fóruns. Mudar a configuração política dos Fóruns pressupõe um duplo acordo político: um acordo para que esta alteração não ponha em causa o facto de o Fórum, enquanto tal, não tome decisões, condição para que todas as forças nele participem; mas em contrapartida, deve haver um acordo político para que “cooperações reforçadas” possam ser postas em prática neste quadro, aí encontrem meios para existir e possam beneficiar da visibilidade política necessária» [5].
Partindo destas bases, o movimento alterglobalista deveria empenhar-se em determinadas evoluções:
É preciso colocar seriamente a questão da sua aliança com as categorias populares a fim de participar na construção de uma nova hegemonia política. Até agora, este movimento, pela sua heterogeneidade, pouco contribuiu para a transformação concreta das relações de força sociais e políticas a favor destas. Como se nota bem nos Fóruns sociais, está demasiado ausente das questões que quotidianamente preocupam estas categorias: a protecção social, a saúde, a educação, o desemprego. Isto explica uma parte da sua “descolagem” actual.
Esta questão conduz a uma outra. Fora da América Latina, onde formar tais alianças? Na Europa, e muito particularmente em França, as noções de Estado e de Nação são diabolizadas pelas “elites” económicas, financeiras e mediáticas, nas classes médias superiores e numa parte das direcções dos partidos políticos e dos movimentos que se reclamam do alterglobalismo, todos empenhados numa fuga para a frente “europeísta”. Estas direcções, por pânico do vazio ou dum pretenso “vínculo nacional” que ninguém propõe, agarram-se à Europa realmente existente, enquanto a experiência mostra que ela só pode produzir soluções neoliberais. Este obsessão do nacional não existe nos países do Sul, nos Estados Unidos ou no Japão.
Na Europa, parte da resposta está no combate pela democratização dos quadros nacionais, aqueles onde os povos organizam, e ainda por muitos anos, as lutas sociais e políticas. É importante, ao mesmo tempo, reforçar a elaboração de mobilizações sociais à escala do Continente. Mas para ser eficaz e não embalar os povos com ilusões, tal dinâmica deve apoiar-se num trabalho de permanente deslegitimização do quadro institucional da União Europeia que torna impossível qualquer progresso democrático e social nas sociedades europeias [6].
O regresso (alguns falam mesmo em “desforra”) dos Estados à cena mundial confirma a necessidade urgente, para o movimento alterglobalista, de se empenhar nessa reflexão. Na ausência disso, os espaços vagos serão ocupados ideológica e politicamente por forças conservadoras utilizando os tons da “modernidade” e discursos “protectores” e “reguladores” (como é já o caso em França e na Itália).
No plano internacional, outra evolução poderia permitir-lhe reforçar-se: a organização, no quadro dum funcionamento de geometria variável, de iniciativas de tipo pós-alterglobalista (fóruns internacionais de balanço e de acção sobre temáticas e reivindicações económicas, sociais, democráticas e ecológicas), levadas a cabo por elementos do movimento alterglobalista e organizadas com actores políticos e governamentais progressistas. A evolução da ALBA forneceria uma interessante fonte de reflexão.
Estes novos espaços permitiriam desenvolver uma relação dialéctica entre os movimentos e os agentes institucionais, e provocar uma reflexão dinâmica e prática à volta das questões-chave que se colocaram, em cada período histórico, a todos os movimentos de emancipação: o poder, a sua conquista e transformação, a democracia e respectiva construção política, social e económica, etc.
[1] Joseph E. Stiglitz, O fim do neoliberalismo?, Project Syndicate, Julho de 2008.
[2] François Polet, Clés de lecture de l’altermondialisme, CETRI/Couleur livres, Charleroi, 2008.
[3] François Polet, Clés de lecture de l’altermondialisme, CETRI/Couleur livres, Charleroi, 2008.
[4] Ler as contribuições para o colóquio “Altermondialisme et post-altermondialisme”, realizado em Paris a 26 de Janeiro de 2008: www.medelu.org.
[5] Pierre Khalfa, membro do Conselho Científico da Attac France, porta-voz da Union syndicale Solidaires, Problèmes dans (et de) l’altermondialisme, Europe Solidaire Sans Frontières, 11/06/2008.
[6] Ler o livro publicado pela Mémoire des luttes e a revista Utopie critique, sob a direcção de Bernard Cassen, En finir avec l’eurolibéralisme, Editions des 1001 Nuits, Paris, 2008.
http://infoalternativa.org/spip.php?article525
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