Os tribunais de trabalho alemães criaram a figura do despedimento por suspeita. A entidade patronal só tem que provar que, com “alta probabilidade”, poderia ter sido este ou aquele trabalhador a praticar este ou aquele facto, e considera-se o despedimento legítimo.
Como é do conhecimento geral, alguns dos grandes construtores automóveis alemães estão a atravessar um período de grandes dificuldades. Quer a Daimler, quer a Volkswagen recorreram já à redução temporária do trabalho, a Opel está na iminência de ter que apresentar falência, aguardando-se um plano de recuperação, possivelmente da iniciativa do governo.
Por outro lado, a situação geral das finanças alemãs continua a ser péssima. O maior banco alemão, o Deutsche Bank, apresentou em 2008 o valor de 3,9 mil milhões € de prejuízos, o banco imobiliário Hypo Real Estate já recebeu do Estado – note-se , só este Banco – entre capital e garantias, 100 mil milhões de Euros, para além de apoios que já foram concedidos a outros bancos, como o Commerzbank. No caso do Hypo Real Estate o governo alemão está a colocar a hipótese, em último recurso, da nacionalização. E nestes últimos dias veio-se também a saber que há mais um banco, agora é o HSH Nordbank, que tem que ser “salvo” e, como sempre, para “salvar” bancos, o dinheiro surge. Os estados-federados de Schleswig-Holstein e Hamburg, a quem o banco pertence, transferem das suas próprias finanças para esta instituição 3 mil milhões de euros e concedem-lhe mais 10 mil milhões € de garantias, portanto, no total, esta instituição é apoiada com 13 mil milhões de euros.
Mas veja-se: no meio de toda esta situação, raramente se ouve falar em responsabilizações pessoais. No entanto, nos bancos e nas grandes empresas houve muitos responsáveis que se enriqueceram enquanto conduziam os respectivos bancos e empresas à falência ou a situações pré-falimentares. Gente que se atribuiu a si própria centenas de milhões de euros em ordenados e prémios, em função de resultados que o não eram, porque se baseavam em lucros fictícios. Mas não deixaram de fazer elaborar as respectivas contabilidades de forma a justificar as transferências destas verbas para si mesmos. Descobriram depois, de um dia para o outro, que os seus bancos e empresas estavam praticamente na falência, mas não atribuem a esse facto importância nenhuma, continuando nos seus lugares, a receber os seus vencimentos, agora pagos com o dinheiro dos contribuintes. Ninguém é demitido por incompetência, sobre ninguém se levanta a suspeita de ter manipulado balanços, ninguém é processado por negligência no exercício do seu cargo, contra ninguém é levantado um processo criminal por infidelidade ou abuso de confiança. Nada, agiram todos muito bem.
Em contrapartida disto, uma notícia extraordinária: uma empregada de caixa de um supermercado de Berlim foi despedida por causa de 1,30 €. Sim, o leitor leu correctamente: não foi por causa de 1,30 milhões ou de 1,30 mil milhões, foi por causa de um euro e trinta cêntimos. Alegadamente a senhora, que já trabalhava na empresa há 30 anos (sim, o leitor mais uma vez leu bem, não era há 30 dias, nem há 30 horas, era há 30 anos), ter-se-ia, numa ocasião recente, apropriado, em proveito próprio, da fabulosa quantia de 1,30 €, resultante de dois talões de depósito de garrafas vazias devolvidas, um de 48 cêntimos e outro de 82 cêntimos. Ou seja, a senhora teria cometido o aberrante crime de ter ficado com os dois talões de depósito, prejudicando dessa forma a sua entidade patronal, uma cadeia de supermercados, na astronómica verba de 1,30 €!
Porém, no processo de despedimento que lhe foi movido, nunca se fez tal prova. No tribunal de trabalho também não, o que não impediu este tribunal de, na sua sentença, confirmar a validade do despedimento. É que, já para prever estas situações, os tribunais de trabalho alemães criaram a figura do despedimento por suspeita. Como explica numa entrevista à revista Stern [1] um advogado especialista em direito de trabalho, Thomas Berger, nestas questões de despedimentos, os tribunais de trabalho desenvolveram a jurisprudência no sentido de que eles próprios não precisam de estar convencidos da culpa do trabalhador: basta-lhes uma suspeita fundada. A entidade patronal só tem que provar que, com “alta probabilidade”, poderia ter sido este ou aquele trabalhador a praticar este ou aquele facto, e considera-se o despedimento legítimo. Ou seja, “não sei se foste tu, mas como através dos factos de que eu disponho é muito provável que fosses, és despedido como se tivesses sido”. Contrariamente ao princípio vigente no direito penal, aqui desenvolveram os tribunais de trabalho o princípio inverso, “na dúvida contra o réu”, no caso, contra o trabalhador.
Dirá o leitor, querendo ainda talvez confiar na imparcialidade e na justiça, que apesar de tudo os tribunais não exigem uma suspeita qualquer, sempre terá que haver uma “alta probabilidade”. É verdade. Só que, e como também explica o dr. Thomas Berger, já a prova dessa “alta probabilidade” obedece a critérios diferentes. Ou seja, o tribunal dá-se ao trabalho de examinar cuidadosamente todos os factos paralelos, dos quais indirectamente possa extrair uma “alta probalidade” no sentido da validade do despedimento, e só secundariamente examina os factos paralelos alternativos, dos quais pudesse resultar a inconsistência da tal “alta probabilidade”.
No caso concreto, isto era particularmente importante. É que a senhora em causa era sindicalizada e tinha sido a única da sua filial a participar numa greve recente. Alegava por isso, não só que a acusação era falsa, mas também que a verdadeira razão do despedimento era o exercício da sua actividade sindical. Ora estes factos, que levariam à inconsistência da “alta probabilidade” da suspeita, porque atribuiriam ao despedimento uma outra motivação que não a formalmente alegada, não foram investigados com o mesmo interesse que os factos laterais, que poderiam confirmar, pela via da suspeita, a validade do despedimento.
E, além do mais, põe-se a questão: como é que podem surgir suspeitas do género da que fundamentou este despedimento sobre o trabalhador? Dito de outra forma, que meios está a entidade patronal a empregar para vigiar os seus trabalhadores? É que muitas vezes já são as medidas de vigilância que em si mesmas são ilegais e, como também refere o dr. Thomas Berger, representam violações do Direito piores do que os actos dos trabalhadores, mesmo que provados.
Ora, o tribunal não averiguou estas circunstâncias, limitando-se a fundamentar a sua decisão com uma daquelas frases, certamente cheias de pompa e circunstância, mas que, pela sua indefinição, apenas servem para legitimar tudo: «o trabalhador da caixa tem que merecer uma confiança incondicional e actuar com uma correcção absoluta. Por isso, o fundamento do despedimento é a perda da confiança e não o valor da coisa apropriada».
O abuso resultante da formulação de semelhantes premissas, como confiança incondicional e correcção absoluta, para julgar um caso destes, em que a suposta conduta ilícita do trabalhador se traduziu num prejuízo de 1,30 €, é evidente: absolutizam-se as exigências para que mesmo actos insignificantes do trabalhador possam, depois, caber dentro da formulação da premissa absoluta.
É claro que este autêntico processo de intenções contra todos os trabalhadores, legitimando a sanção mais grave, o despedimento, por faltas insignificantes, mesmo que fossem provadas, está a merecer na comunicação social alemã o repúdio generalizado. Porém, e independentemente dessa circunstância, vamos fazer de conta, por um momento, que aceitamos este critério como critério jurídico. Mas então será necessário aplicá-lo coerentemente: diremos assim que se «o trabalhador da caixa tem que merecer uma confiança incondicional e actuar com uma correcção absoluta», o mesmo deve ser exigido do administrador. Porque as regras de responsabilidade e de punibilidade profissional que se aplicam a quem lida com pouco dinheiro devem-se por maioria de razão aplicar, de forma ainda mais exigente, a quem lida com muito dinheiro… e não ao contrário, que é o que está a acontecer. Do administrador exige-se pois que, no exercício do seu cargo, seja digno de confiança incondicional e que actue com uma correcção absoluta. Caso contrário, teremos dois pesos e duas medidas.
Agora, lembremo-nos dos bancos falidos e das empresas endividadas, lembremo-nos das suas chefias, a transferirem para si mesmos centenas de milhões de euros em ordenados e prémios, enquanto as empresas vão à falência e os postos de trabalho se perdem. Mas, no entanto, lá continuam nos seus lugares, agora a reclamar dinheiros do Estado, como se nada se tivesse passado. São todos dignos de confiança incondicional? Actuaram todos com uma correcção absoluta? Enquanto estas perguntas não forem colocadas e respondidas, subsistirá a suspeita, esta sim historicamente mais do que fundada, de que a medida das leis é uma para os fracos e outra para os fortes, uma para os trabalhadores e outra para os patrões, enfim, uma para os ricos e outra para os pobres.
http://infoalternativa.org/spip.php?article627
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