O agravamento da crise já faz parte do panorama quotidiano. Os meios de comunicação incluem frequentemente o desmoronamento de algum banco, o despenhamento das bolsas e anúncios de despedimentos massivos. A intensidade do tremor está à vista, mas as suas causas permanecem na obscuridade. As explicações neoliberais e keynesianas que ocupam o primeiro plano, não dão respostas significativas.
O destravar
Quando os bancos começaram a desmoronar-se, os neoliberais ficaram afónicos e só pensaram em exigir a protecção do estado. Arquivaram as suas doutrinas de livre concorrência e reclamaram o socorro para o sistema financeiro. Argumentaram que as entidades privadas bombeiam o dinheiro requerido pela sociedade e que devem ser preservadas com fundos públicos
Mas se o coração do capitalismo requer essa sustentação, não têm sentido todos os elogios ao risco e à concorrência como pilares de uma nova era desse sistema. A consistência desses cimentos verifica-se nos momentos críticos e nas áreas estratégicas. É incongruente postular que as privatizações e as desregulações são válidas apenas para momentos de prosperidade. O importante é registar a sua viabilidade em momentos revoltos e é evidente que não passaram essa prova.
Os neoliberais ignoraram todas as advertências do estalar da situação. Ignoraram o descontrolo do endividamento, as alavancagens e os colapsos bancários registados em numerosos países. Quando era evidente que estas eclosões conduziam a um vendaval no centro do sistema reforçaram as suas superstições mercantilistas. Designaram essas comoções de impactos passageiros e atribuíram a sua irrupção a réstias de uma "cultura populista". Essa cegueira exprimiu os interesses de uma elite que rivalizou por açambarcar os lucros do negócio financeiro.
Os neoliberais descobrem agora o lado inverso dessa concorrência exacerbada e explicam o desmoronamento das entidades pela cobiça dos banqueiros. Mas esquecem quão absurdo é reclamar moderação numa actividade tão competitiva. A rivalidade que rege o capitalismo exige a maior crueldade nas finanças. Todos os sermões em voga para restaurar a "ética dos negócios" omitem essa compulsão
Os economistas ortodoxos detectaram repentinamente as consequências adversas da predisposição para o risco. Esquecem-se dos elogios que prestaram a essa postura, em detrimento do conservadorismo empresarial. No auge enalteceram as virtudes do aventureiro e na crise fazem ressaltar as vantagens da precaução. Mas ignoram sempre que as grandes explosões financeiras não obedecem a uma ou outra conduta individual.
O que determina a marcha ascendente ou descendente da acumulação são as próprias contradições do sistema e não podem impedir os desequilíbrios sistémicos que essa atitude gera.
Alguns economistas premiados atribuem a actual crise aos sofisticados mecanismos de intermediação que iluminaram as finanças. Destacam que "o mercado não valoriza adequadamente esses complexos títulos" . Mas onde ficou a infinita sabedoria da oferta e da procura, em comparação com o estreito horizonte humano dos funcionários? Se agora descobrem a inoperância desse princípio na órbita financeira, porque razão deveria essa mesma norma governar o resto da economia?
A crise em curso enterra o mito que atribui aos banqueiros (e aos seus matemáticos) a qualidade de perceber e gerir de forma rentável os sinais de risco transmitidos pelo mercado. Na realidade esses administradores subvalorizaram as ameaças de colapsos, uma vez que participaram num jogo em que é obrigatório subir sempre a aposta. A regra do benefício crescente impede-os de avaliar os riscos envolvidos nos empréstimos que manuseiam. E quando essas falhas se verificam, descarregam as suas traumáticas consequências sobre o resto da sociedade.
Falta de confiança
Alguns neoliberais atribuem as causas imediatas do tsunami a desacertos das políticas monetárias. Estimam que a redução das taxas de juro praticadas pela Reserva Federal obrigou as entidades a aumentar a concessão de empréstimos. Consideram que a massiva concessão de créditos hipotecários de baixa qualidade (subprime) reproduziu a pauta estabelecida pelo governo norte-americano, na gestão das entidades semi-públicas do sector (Fannie e Freddie). Seguindo esta lógica, desculpam os bancos pela bolha imobiliária.
Mas na verdade, a objectada diminuição das taxas destinou-se a reactivar a economia e a permitir uma lubrificação dos empréstimos, o que enriqueceu os financeiros. Por isso não questionam neste momento uma política monetária que, além do mais, não os obriga a conceder créditos de qualquer natureza.
Por outro lado, a caprichosa divisão de responsabilidades entre funcionários e banqueiros omite a estreita vinculação que estes grupos mantêm entre si. Os personagens que chegam à administração do FED ou do Tesouro desenvolvem a sua carreira nos grandes bancos e querem retomar esses cargos quando se retirarem da actividade oficial. Longe de sofrer os rigores de certa política monetária, os financeiros participam activamente na fixação dessas orientações, através de distintos comités governamentais.
Perante a falta de argumentos, os neoliberais recorrem a crenças. Converteram a confiança numa palavra mágica, que explica a explosão, a continuação ou a superação da crise. Supõe que o despenhar financeiro irrompeu com a perda dessa qualidade e dissipar-se-á com o seu restabelecimento. O estado de espírito dos empresários é visto como a chave mestra do ciclo económico.
Mas ambos os processos estão ligados por uma causalidade inversa. Os capitalistas investem quando têm ganhos e subtraem capital nos períodos inversos. Por esta razão, enquanto a crise continuar a deteriorar os lucros, nenhuma exortação transformará a inquietação em optimismo. Todas as divagações sobre a confiança retratam somente os diálogos que a classe dominante mantém consigo mesma, na busca de uma luz ao fundo do túnel.
Os porta-vozes mais experientes das finanças reconhecem que "o capitalismo encontra-se encurralado" pela gravidade do descalabro. Mas apostam igualmente numa crise curta e manobrável, que seria coroada com o restabelecimento pleno da "economia de mercado". Mas esta expectativa contradiz os sombrios diagnósticos que enunciam e choca-se com uma certa perda de consenso neoliberal entre as classes dominantes. Há muita ilusão e pouco realismo na esperança de um tremor irrelevante ou benigno .
Especulação e regulação
Os keynesianos afastaram os seus adversários da cena mediática. Atribuem-se o mérito de ter pressagiado a crise, mediante reiterados questionamentos à desregulação financeira. Mas na sua maioria acompanharam as prioridades da elite bancária e só apresentaram objecções nos últimos anos.
Quando o establishment aplaudia os atropelos sociais inaugurados por Reagan e Thatcher, Stiglitz presidia ao Banco Mundial, Soros enriquecia especulando contra as divisas europeias e Jeffrey Sachs instrumentalizava o ajuste das economias periféricas. Esta mesma mudança de lado regista-se actualmente no sentido inverso. Greenspan modera o fervor neoliberal e Feldstein promove o gasto público. Mas esta flexibilidade de cheirar para onde sopra o vento não é sinónimo de lucidez para caracterizar a crise.
Uma explicação que compartilham as duas vertentes da economia convencional associa o colapso actual com as "bonificações exageradas dos gestores" . Este prémio à especulação é condenado com o mesmo vigor com que se questionam as fraudes perpetradas por personagens como Bernard Madoff. Essas condutas são invariavelmente apresentadas como excepções e não como expressão dominante na actividade bancária actual.
O roubo de 50 mil milhões de dólares de Madoff a poderosas entidades (Santander, BBVA, HSBC, Paribas) através de uma simples pirâmide foi apenas mais um episódio do negócio financeiro. Prometia altos rendimentos por investimentos inexistentes, que disfarçava com a chegada de novos clientes. Com essa manobra estendeu às fortunas das elites os enganos que caracterizam a intermediação. As suas apropriações indevidas caíram em desgraça porque flanquearam a permeável fronteira que separa as actividades toleradas das ilegais.
No ambiente de impunidade neoliberal dos últimos anos cometeram-se todo o tipo de fraudes. Os seus principais artífices foram os bancos e as empresas construtoras que montaram a bolha imobiliária. Os desfalques foram coroados com os 140 mil milhões de dólares que Bush concedeu aos seus banqueiros predilectos, mediante uma manobra obscura de isenção fiscal impositiva.
Este reinado generalizado da espoliação não deveria ocultar que o próprio capitalismo gera periodicamente marés de especulação para aumentar o crédito. Esta expansão requer financeiros com habilidade para inventar refinados instrumentos de endividamento. Como estes indivíduos obtêm ganhos proporcionais às jogatinas que montam, tendem sempre a violar as regras vigentes.
Alguns keynesianos – como Krugman e Samuelson – explicam o excesso de especulação pela ausência de regulação e esperam emendar esta carência com normas mais restritivas . Mas estas regras abundam na selva legislativa manejada por distintos lobbys de banqueiros nos bastidores do poder. Esta estrutura – e não a abstracta ausência de regulamentação – precipitou a crise. Algumas normas tenderam a delegar nos próprios banqueiros a gestão consensual das operações (acordos de Basileia) e outras incentivam uma gestão mais estreita com as autoridades (através da independência dos bancos centrais). Mas as entidades nunca operaram no vazio.
A fantasia de evitar a repetição do estalido financeiro com novas disposições legais recuperou força. Mas estas comoções são inerentes ao capitalismo e não existe nenhuma forma de impedir a sua reiteração. O próprio sistema gera periodicamente pressões para valorizar o capital e cria anticorpos para esterilizar as regulações precedentes. Esta reacção verificou-se, por exemplo, no início do neoliberalismo e voltará a aparecer quando o capitalismo necessitar recompor as taxas de lucro.
Se todo o reboliço em curso derivasse de uma falta de supervisão, não haveria tanto temor pela evolução futura das finanças. Já existe um amplo consenso para modificar o funcionamento dos bancos, verificar as operações bolsistas e limitar o alcance das actividades com maior risco. Mas é óbvio que estas iniciativas só introduzirão correctivos menores.
Os keynesianos idealizam as regulações que os estados capitalistas estabelecem para ordenar o funcionamento dos mercados financeiros. Supõe que estas normas definirão a dinâmica do negócio bancário, omitindo que o essencial é a garantia conferida pelo poder público aos distintos papéis em circulação. O que permite comercializar títulos é a percepção de solidez no aval estatal. Com este apoio fluem as moedas, colocam-se os títulos públicos e intercambiam-se os documentos privados. Quando essas garantias falham, as regulamentações perdem relevância e as crises assumem a gravidade que se observa na conjuntura actual.
Os economistas heterodoxos desconhecem por completo este problema. Como são fiéis do capitalismo e do estado supõem que basta estabelecer óptimas regulações para favorecer o bem comum. O salvamento dos bancos refutou categoricamente essa presunção. Mas, além disso, abriu-se uma crise que pôs em dúvida a capacidade do estado de proteger os títulos em circulação. Esta vulnerabilidade não depende de uma ou de outra regulação, mas sim da gravidade e da evolução do crack financeiro.
Mas o que mais chamou a atenção nos últimos meses foi o temor reverencial exibido pelos keynesianos em relação aos financeiros. Krugman e Stiglitz propiciaram o salvamento dos bancos sem olhar a custos nem impor penalidades. Constatam a "armadilha de liquidez" propagada pelos bancos – ao receberem auxílios estatais que os enriquecem sem reactivar o crédito – mas não aplicam nenhum correctivo.
As estrelas do pensamento económico actual também notam o escasso impacto que têm as decrescentes taxas de juro sobre a melhoria do investimento ou do consumo. Sabem que os bancos aproveitam os preços baixos dos fundos disponíveis para compensar as quebras, reconverter as suas operações ou adquirir outras entidades. Este bloqueio poderia reverter-se com medidas de expropriação, mas os novos mimados do establishment arquivaram qualquer estratégia de eutanásia do rentista.
Os keynesianos pretendem dissuadir a especulação sem obstruir a rivalidade pelo lucro. Nas crises enfatizam o primeiro objectivo e na prosperidade apontam-lhe o segundo propósito. Mas ignoram sempre que ambas são periodicamente soterradas pela própria reprodução capitalista.
Coordenação e reactivação
Muitos keynesianos atribuem a propagação global da crise à "escassa coordenação que os governos mantêm". Especialmente Krugman e Stiglitz destacam esta carência . Advertem contra a expansão não consensual dos gastos públicos, as desvalorizações sem consulta e o proteccionismo comercial.
A sua exigência de sincronização reflecte o carácter internacional da crise. Como o temor sacode a principal economia do planeta, o contágio à Europa e Japão é tão acelerado como a fracassada separação da semi-periferia emergente. Nem sequer a Suíça ou o Golfo Pérsico conseguiram afastar-se do tsunami financeiro que já travou a locomotiva chinesa e ameaça reproduzir as comoções de que padecem a América Latina e o Sudeste Asiático.
Este alcance planetário induz a procura de remédios coordenados pelos economistas heterodoxos. Por isso objecta-se à salvação à custa do vizinho que predominou no início da crise. Especialmente na Europa, a disputa brutal entre os países para preservar os depósitos bancários conduzia à sua fusão. O mesmo efeito tendia a gerar a política simultânea de aumentar (Banco Central Europeu) e reduzir (Reserva Federal) as taxas de juro.
Todos os keynesianos agora aplaudem a adopção generalizada do modelo inglês de capitalização bancária como correctivo da crise. As diferenças de aplicação que separam os franceses (ingerência estatal nas administrações) dos norte-americanos (ausência de interferência na gestão) e a pressão britânico-americana para manter o livre movimento de capitais em Nova York e Londres não alteram esta busca de uma resposta comum ao descalabro financeiro.
Nas propostas em debate os economistas heterodoxos reivindicam as iniciativas que tendam a diminuir a gravitação dos paraísos fiscais, reduzir o protagonismo das classificadoras de risco e introduzir mecanismos de alerta bancário. Também dão o seu aval ao corte das retribuições aos executivos e à modificação das normas de funcionamento bancário global (Basileia II). Mas nenhuma destas mudanças é substancial e a sua aplicação exige um fim (ainda incerto) do despenhamento financeiro.
O desenho de "um novo Bretton Woods" apregoado por Stiglitz é mais ambicioso, mas flutua no ar . Definir um novo prestamista internacional de última instância e estabelecer os critérios de outra moeda (cabaz, multilateral, Bancor) requer uma certa estabilização da tormenta financeira. E este compromisso, por sua vez, pressupõe um desenlace das relações de força entre as potências, que apareceria mais no final e não no início da crise.
A indefinição que impera em volta do dólar e do euro é um nítido sintoma do carácter inicial deste tremor. O bilhete estado-unidense transformou-se no refúgio espontâneo de todas as classes dominantes do planeta. Mas o descomunal défice fiscal e comercial dos EUA põe em dúvida a continuidade dessa tendência.
O euro também ofereceu protecção aos capitais que abandonam as divisas dos países europeus mais ameaçados (Polónia, Dinamarca, Suécia, Islândia). Mas não se sabe como responderá esta moeda ao descalabro dos convénios orçamentais de Maastricht. Mais perigoso ainda é o transbordante endividamento que registam vários países do Velho Continente (Itália, Grécia, Espanha).
Todos os apelos angelicais à "coordenação internacional" disfarçam as duras regras da realpolitik que imperam nos encontros oficiais. Na cimeira que em Novembro passado reuniu 20 presidentes, os Estados Unidos exigiram um compromisso geral com o seu resgate financeiro. Pretendem garantir especialmente a contínua afluência em direcção ao Norte dos fundos acumulados pela Ásia e pelos países exportadores de petróleo.
Com esta finalidade, ao "Grupo dos 7" foram adicionadas a China, Rússia, Brasil, Índia e Arábia Saudita. A presença de outros países é um formalismo diplomático, uma vez que a Argentina, Indonésia, México ou Turquia figuram na lista de países receptores de dinheiro, e não na de países provedores do mesmo. Nas próximas cimeiras, Obama tentará continuar esta política de atracção de capitais para os EUA.
Todas as mensagens keynesianas para "reformar o FMI" com a "nova arquitectura financeira" caíram, subjugadas pela prioridade da reconstrução dos bancos malparados.
Com a finalidade de relançar o Fundo como administrador desse socorro, já se discute a concessão de atribuições aos novos contribuintes de capital. Essas iniciativas poderiam também ser acopladas ao trespasse de acções dos bancos mais aflitos aos seus mecenas da Ásia ou do Mundo Árabe. Mas em qualquer caso o FMI continuará a actuar como representante dos credores contra os povos da periferia.
Este papel – que não perturba Stiglitz ou Krugman – desmente as fantasias que exibem alguns presidentes latino-americanos sobre uma viragem benevolente do FMI. As expectativas de "empréstimos sem condições para os mais necessitados" foram destruídas pelos recentes créditos concedidos à Ucrânia ou à Hungria (e negociados com a Islândia e o Paquistão). Estes acordos incluem todas as exigências de ajuste neoliberal.
Os keynesianos vivem como um triunfo a aplicação actual das suas orientações. Supõe que esta implementação confirma a superioridade do seu programa. Mas esta viragem apenas ilustra a afinidade que mantêm com os seus adversários. O FMI e todos os governos conservadores abraçaram as propostas da reactivação porque na crise as classes dominantes recorrem aos gastos públicos para travar a recessão.
Obama prepara-se para lançar o maior plano de infraestruturas dos últimos 50 anos (136 mil milhões de dólares). Este mesmo tipo de gastos será instrumentalizado pelos presidentes neoliberais da Europa (170 mil milhões de euros) e o mandatário de direita do Japão (255 mil milhões de dólares). O propósito comum destas iniciativas é auxiliar os banqueiros e industriais afectados pela implosão financeira.
Os keynesianos aplaudem o socorro mas advertem contra o seu eventual fracasso, se as decisões se aplicarem de forma tardia, com instrumentos inadequados ou com doses reduzidas. A obviedade deste tipo de raciocínio salta à vista: se as medidas dão resultado confirmam a sua conveniência e se falham demonstram a sua insuficiência.
Mas a severidade da crise induz os papas da heterodoxia a reclamar também maiores impostos a ricos e menores gastos militares (Stiglitz) ou o bombear directo de mais dinheiro oficial, ultrapassando a intermediação bancária (Krugman). Em comparação com as iniciativas que debatem outros economistas do mesmo círculo, estas propostas sobressaem pela sua cautela .
Todos os keynesianos esperam o ressurgimento do capitalismo com políticas anticíclicas. Desconhecem as limitações destas orientações e o seu escasso impacto fora de certas condições. Para compreender o que está a acontecer é necessário recorrer a outras teorias.
Claudio Katz
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/
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