Estou a viajar pela Europa há três semanas para discutir a crise financeira global com responsáveis de governos, políticos e líderes trabalhistas. O mais notável é quão diferentemente o problema financeiro é percebido aqui. É como estar em outro universo económico, não apenas em outro continente.
Os media dos EUA estão silenciosos acerca dos tópicos mais importantes que os decisores políticos discutem aqui (e suspeito que na Ásia também): como proteger os seus países de três dinâmicas inter-relacionadas: (1) o excesso de dólares que está a ser despejado no resto do mundo para ainda mais especulação financeira e takeovers corporativos; (2) o facto de os bancos centrais serem obrigados a reciclar estes influxos de dólares com a compra títulos do Tesouro dos EUA e assim financiar o défice do orçamento federal dos EUA; e, ainda mais importante (mas suprimido nos media dos EUA), (3) o carácter militar do défice de pagamentos dos EUA e do défice orçamental federal interno.
Por estranho que possa parecer e irracional como seria num sistema de diplomacia mundial que fosse mais lógico, a "inundação de dólares" é o que financia o crescimento militar global da América. Ela força bancos centrais estrangeiros a arcarem com os custos da expansão militar do império americano, uma efectiva "tributação sem representação". Manter reservas internacionais em "dólares" significa reciclar seus influxos de dólares na compra de títulos dos Tesouro dos EUA, emitidos pelo governo dos EUA em grande medida para financiar o sector militar.
Até à data, os países têm sido impotentes para se defenderem contra o facto de este financiamento compulsório dos gastos militares dos EUA estar embutido dentro do sistema financeiro global. Economistas neoliberais aplaudem isto como "equilíbrio", como se fosse parte da natureza económica e dos "mercados livres" ao invés de diplomacia claramente exercida com crescente agressividade por responsáveis dos EUA. Os mass media intrometem-se, pretendendo que reciclar a inundação de dólares para financiar os gastos militares estado-unidenses é "mostrar a sua fé na fortaleza económica dos EUA" com o envio dos "seus" dólares aqui para "investir". É como se houvesse nisto uma opção, não compulsão financeira e diplomática para simplesmente optar entre o "Sim" (da China, relutantemente), o "Sim, por favor" (do Japão e da União Europeia) e o "Sim, obrigado" (da Grã-Bretanha, Geórgia e Austrália).
Não é "a fé estrangeira na economia dos EUA" que leva os de fora a "colocarem o seu dinheiro aqui". Isto é um tolo quadro antropomórfico de uma dinâmica mais sinistra. Os "estrangeiros" em causa não são consumidores a comprar exportações dos EUA, nem são "investidores" do sector privado a comprar acções e títulos dos EUA. As maiores e mais importantes entidades estrangeiras que colocam o "seu dinheiro" aqui são bancos centrais, e não é os "seu dinheiro" de modo algum. Eles estão a remeter de volta os dólares que exportadores estrangeiros e outros receptores entregam aos seus bancos centrais em troca de divisas internas.
Quando o défice de pagamentos dos EUA enche de dólares economias estrangeiras, estes bancos têm pouca opção além de comprar títulos do Tesouro dos EUA os quais são gastos por este no financiamento de um crescimento militar enorme e hostil destinado a cercar os principais recicladores de dólares, China, Japão e produtores de petróleo árabes da OPEP. Mas estes governos são forçados a reciclar influxos de um modo que financia políticas militares dos EUA a cuja formulação eles são alheios e que os ameaça cada vez mais beligerantemente. Foi por isso que a China e a Rússia tomaram a iniciativa de formar a Organização de Cooperação de Shangai (SCO) uns poucos anos atrás.
Aqui na Europa há uma consciência clara de que o défice de pagamentos dos EUA é muito maior do que o défice comercial. Basta simplesmente olhar a Tabela 5 dos dados da balança de pagamentos dos EUA compilados pelo Bureau of Economic Analysis (BEA) e publicados pelo Departamento do Comércio no seu Survey of Current Business para ver que o défice não se deve simplesmente ao facto de consumidores comprarem mais importações do que os Estados Unidos exportam quando o sector financeiro desindustrializa a sua economia. As importações dos EUA estão agora a afundar quando a sua economia se contrai e os consumidores estão agora a descobrir que são obrigados a pagar as dívidas que assumiram.
O Congresso disse aos investidores estrangeiros do maior possuidor de dólares, a China, para não comprar nada excepto talvez lojas de automóveis usados e talvez mais pacotes de hipotecas e acções da Fannie Mae, o equivalente de investidores japoneses a serem pilotados para o gasto de US$1 mil milhões no Rockefeller Center, nos quais a seguir tiveram uma perda de 100%, e ao investimento saudita no Citigroup. Esta é a espécie de "equilíbrio internacional" que os responsáveis dos EUA gostam de ver. "CNOOK [NT] go home" é a palavra-de-ordem quando há tentativas sérias de governos estrangeiros e seus fundos de riqueza soberana (departamentos de bancos centrais a tentarem imaginar o que fazer com a sua inundação de dólares) de fazerem investimentos directos na indústria americana.
De modo que somos confrontados com a extensão em que o défice de pagamentos dos EUA tem origem nos gastos militares. O problema não é só a guerra no Iraque, agora a ser estendida ao Afeganistão e ao Paquistão. É o dispendioso crescimento de bases militares dos EUA na Ásia, Europa, países pós-soviéticos e do Terceiro Mundo. A administração Obama prometeu tornar o montante real destes gastos militares mais transparente. Isto presumivelmente significa publicar um conjunto revisto dos números da balança de pagamentos bem como estatísticas do orçamento federal interno.
A sobrecarga militar é como uma sobrecarga de dívida, extracção de receita da economia. Neste caso é para pagar o complexo militar-industrial, não simplesmente os bancos da Wall Street e outras instituições financeiras. O défice do orçamento federal interno não brota só do "estímulo" de distribuir enormes somas para criar uma nova oligarquia financeira. Ele contém um enorme componente militar em crescimento rápido.
De modo que europeus e asiáticos vêm companhias dos EUA a despejarem cada vez mais dólares para dentro das suas economias, não só para comprarem as suas exportações sem lhes proporcionar bens e serviços em retorno, e não só para comprarem as suas companhias e "postos de comando" de empresas públicas privatizadas sem lhes dar o direito recíproco de comprar companhias importantes nos EUA (recordar que os EUA rejeitaram a tentativa da China de comprar negócios de distribuição de petróleo nos EUA), e não só para comprar acções, títulos e imobiliário estrangeiro. Os media dos EUA de certa forma esquecem de mencionar que o governo estado-unidense está a gastar centenas de milhares de milhões de dólares no exterior não só no Médio Oriente no combate directo, mas também para construir enormes bases militares a fim de cercar o resto do mundo, para instalar sistemas de radar, sistemas de mísseis guiados e outras formas de coerção militar, incluindo as "revoluções coloridas" que tem sido financiadas e ainda o são em torno da antiga União Soviética. Paletes de notas de US$100 envolvidas em plástico, cada uma das quais soma dezenas de milhões de dólares, tornaram-se imagens familiares em algumas emissões de TV, mas não se faz a ligação com os gastos militares e diplomáticos dos EUA e com os haveres em dólares de bancos centrais estrangeiros, os quais são relatados simplesmente como a "maravilhosa fé da recuperação económica dos EUA" e presumivelmente na "mágica monetária" que está a ser montada no Tesouro por Tim Geithner da Wall Street e pelo Helicóptero Ben Bernake no Federal Reserve.
Aqui está o problema: A companhia Coca-Cola recentemente tentou comprar o maior produtor e distribuidor de sumo de frutas da China. A China já possui aproximadamente US$2 milhões de milhões (trillion) em títulos dos EUA a mais do que precisa ou pode utilizar, visto que o Governo dos Estados Unidos recusa-se a deixá-la que compre companhias significativas nos EUA. Se a compra estado-unidense tivesse sido permitida, isto teria confrontado a China com um dilema: A Opção 1 seria deixar a venda consumar-se e aceitar pagamento em dólares, reinvestindo-os no que o Tesouro dos EUA lhes diz, em títulos do Tesouro que rendem cerca de 1%. A China assumiria uma perda capital sobre isto quando as taxas de juros dos EUA ascendessem ou quando o dólar declinasse pois os Estados Unidos estão insistindo isoladamente em políticas expansionistas keynesianas numa tentativa de permitir às companhias dos EUA que arquem com o seu fardo de dívidas.
A Opção 2 é não reciclar os influxos de dólares. Isto levaria o renminbi a subir em relação ao dólar, desgastando dessa forma a competitividade das exportações chinesas nos mercados mundiais. Assim, a China optou por um terceiro caminho, o qual provocou protestos dos EUA. Ela descartou a venda da sua companhia tangível por simples dólares "de papel" os quais combinavam-se com a "opção" de mais uma vez financiar o cerco militar dos EUA aos países da Organização de Cooperação de Shangai (SCO). As únicas pessoas que parecem não estar a perceber isto são os mass media americanos e portanto o público. Posso assegurar a partir de experiência pessoal que isto é percebido aqui na Europa. (Eis uma boa questão diplomática a discutir: Qual será o primeiro país europeu além da Rússia a aderir ao SCO?)
Os manuais académicos nada têm a dizer acerca de como o "equilíbrio" em movimentos de capital especulativo estrangeiro bem como em investimento directo é infinito só até ao ponto em que a economia dos EUA é afectada. A economia dos EUA pode criar dólares livremente, agora que eles já não são convertíveis em ouro ou mesmo em compras de companhias dos EUA, na medida em que a América permanece a economia mais protegida do mundo. Isto só é permitido para proteger a sua agricultura mediante quotas de importação, tendo aberto esta excepção ("grandfathered") nas regras do comércio mundial meio século atrás. O Congresso recusa-se a deixar fundos de "riqueza soberana" investirem em importantes sectores dos EUA.
Assim, somos confrontados com o facto de que o Tesouro dos EUA prefere que bancos centrais estrangeiros se mantenham a financiar o seu défice orçamental interno, o que significa financiar o custo da guerra da América no Médio Oriente e o cerco de países estrangeiros com um cordão de bases militares. Quanto mais "saídas de capital" os investidores gastarem para comprar os sectores mais lucrativos de economias estrangeiras, onde os novos proprietários estado-unidenses podem extrair as mais altas rendas de monopólio, mais fundos acabam em bancos centrais estrangeiros para suportar o crescimento militar global da América. Nenhum manual de teoria política ou relações internacionais sugeriu axiomas para explicar porque os países actuam de um modo tão adverso aos seus próprios interesses políticos, militares e económicos. Mas isto é exactamente o que tem estado a acontecer durante a última geração.
Assim, a questão final acaba por ser o que podem os países fazer para conter este ataque financeiro. Um sindicato de trabalhadores basco perguntou-me se eu pensava que o controle de movimentos de capital especulativo asseguraria que o sistema financeiro actuasse no interesse público. Ou seria necessária a nacionalização sem rodeios para melhor desenvolver a economia real?
Não é simplesmente um problema de "regulação" ou de "controle de movimentos de capital especulativo". A questão é como nações podem actuar como nações reais, no seu próprio interesse, ao invés de serem amarradas ao serviço do quer que seja que diplomatas dos EUA decidam ser do interesse da América.
Qualquer país que tentasse fazer o que os Estados Unidos tem feito durante os últimos 150 anos seria acusado de ser "socialista" e isto pela mais anti-socialista economia do mundo, excepto quando recorre a salvamentos para os seus bancos, "socialismo para o ricos", também conhecidos como oligarquia financeira. Esta retórica quase não deixa alternativa senão a nacionalização completa do crédito como um serviço público básico.
Naturalmente, a palavra "nacionalização" tornou-se um sinónimo para o salvamento dos bancos maiores e mais temerários dos seus maus empréstimos, e para salvar hedge funds e contrapartes não bancárias por perdas no "capitalismo de casino", jogando com derivativos que a AIG e outras seguradoras ou actores no lado perdedor destes jogos são incapazes de pagar. Tais salvamentos não são nacionalização no sentido tradicional do termo, de devolver a criação de crédito e outras funções financeiras básicas ao domínio público. Trata-se do oposto. Ela imprime novos títulos governamentais para submetê-los, juntamente com poder auto-regulatório, ao sector financeiro, bloqueando a cidadania de assumir estas funções.
Enquadrando a questão como uma escolha entre democracia e oligarquia traz a questão de quem irá controlar o governo que faz a regulação e "nacionalização". Se for feita por um governo cujo banco central e os principais comité do Congresso que tratam de finanças são dirigidos pela Wall Street, isto não ajudará a dirigir o crédito para usos produtivos. Isto meramente continuará a era de Greenspan-Paulson-Geithner de mais e mais amplos almoços gratuitos para os seus clientes financeiros.
A ideia de "regulação" da oligarquia financeira é garantir que os desreguladores sejam instalados em posições chave e que se lhes dê um quadro de pessoal reduzido e pouco financiamento. Apesar do anúncio do sr. Greenspan de que tinha chegado a ver a luz e percebera que auto-regulação não funcionava, o Tesouro ainda é dirigido por um responsável da Wall Street e o Fed é dirigido por um lobbyista para a Wall Street. Para os lobbyistas, a preocupação real não é a ideologia como tal e sim o auto-interesse dos seus clientes. Eles podem procurar patetas com boas intenções, conduzidos como são pelos seguidores de Milton Friedman na Universidade de Chicago. Tais indivíduos são colocados no lugar como "porteiros" das principais publicações académicas a fim de impedir a entrada de ideias que não sirvam adequadamente os lobbyistas financeiros.
O pretexto para excluir o governo da regulação significativa é que as finanças são tão técnicas que só alguém da "indústria" financeira é capaz de regulá-la. Para aumentar ainda mais a infâmia, é feita a afirmação adicional e contra-intuitiva de que uma marca da democracia é tornar o banco central "independente" do governo eleito. Na realidade, naturalmente, isso é exactamente o oposto de democracia. As finanças são o centro do sistema económico. Se não forem reguladas democraticamente no interesse público, então estão "livres" para serem dominadas pelos interesses especiais. Assim, isto torna-se a definição oligárquica de "liberdade de mercado".
O perigo é que os governos deixem o sector financeiro determinar como serão aplicadas as "regulações". Os interesses especiais procuram ganhar dinheiro a partir da economia e o sector financeiro faz isto de um modo extractivo. Aqui está o seu plano de marketing. Financiar hoje é actuar de um modo que desindustrialize economias, não que as construa. O "plano" é austeridade para o trabalho, a indústria e todos os sectores fora das finanças, como nos programas do FMI impostos sobre infelizes países devedores do Terceiro Mundo. A experiência da Islândia, Letónia e outras economias "financiarizadas" deveria ser examinada como lições objectivas, mesmo porque eles estão no topo da classificação dos países feita pelo Banco Mundial quanto à "facilidade para fazer negócio".
A única regulação significativa só pode vir de fora do sector financeiro. De outra forma, os países sofrerão o que os japoneses chamam "a descida do céu": os reguladores são seleccionados entre as fileiras dos banqueiros e dos seus "idiotas úteis". Ao saírem do governo eles retornam ao sector financeiro com empregos lucrativos, convites para conferências bem pagas e pagamentos afins. Sabendo disto, regulam em favor dos interesses financeiros especiais, não o do público em geral.
O problema dos movimentos do capital especulativo vai além da formulação de um conjunto de regulações específicas. Refere-se ao âmbito do poder do governo nacional. Os artigos do Acordo do Fundo Monetário Internacional impedem os países de restaurar os sistemas de "taxas de câmbio duplas" que muitos adoptaram ao longo da década de 1950 e mesmo nos anos 60. Era prática generalizada de muitos países haver uma taxa de câmbio para bens e serviços (por vezes várias taxas de câmbio para diferentes categorias de importação e exportação) e uma outra para "movimentos de capital". Sob pressão americana, o FMI impingiu a ficção de que há uma taxa de "equilíbrio" que acontece ser a mesma tanto para bens e serviços como para movimentos de capital. Os governos que não adoptaram esta ideologia foram excluídos da condição de membros do FMI e do Banco Mundial ou foram derrubados.
A implicação hoje é que o único meio com que um país pode bloquear movimentos de capital é retirando-se do FMI, do Banco Mundial e da Organização Mundial de Comércio (OMC). Pela primeira vez desde a década de 1950, isto parece uma possibilidade real, graças à tomada de consciência à escala mundial de como a economia dos EUA está a inundar a economia global com um excesso de dólares "de papel" e à intransigência estado-unidense em travar este seu benefício gratuito. Na perspectiva privilegiada dos EUA, isto é nada menos do que uma tentativa de restringir o seu programa militar internacional.
Michael Hudson
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/
Sem comentários:
Enviar um comentário