quinta-feira, março 05, 2009

Contra argumentos não há factos?

Durante anos, os defensores do neoliberalismo responderam a todas as críticas fazendo um apelo a que se abandonassem as ficções socializadoras e estatizantes que a história, sobretudo após a queda do Muro de Berlim, mostrava estarem ultrapassadas. Ao contrário do que acontecia com o pensamento neoliberal, cuja difusão a nível global era visível, as ideias dos que advertiam para os impactos socioeconómicos, políticos ou ambientais muito negativos da exclusiva regulação pelo mercado pecavam por não resistirem ao teste da realidade. E, insistiam os neoliberais, contra factos não há argumentos.
Tudo à sua volta eram argumentos ideológicos, contrários à organização “natural” e ao impulso para a livre troca – de mercadorias, bem entendido. A denúncia desse carácter ideológico, além de favorecer uma conveniente fuga a discussões menos simplistas sobre os ditos “factos”, cimentou a própria ideologia neoliberal e eximiu-a do ónus da prova da sua própria adequação a um contrato social em que as sociedades, democraticamente, se revejam. É mais fácil liberalizar, desregulamentar e flexibilizar, mesmo quando tais medidas são acompanhadas de pesadas consequências para as sociedades e o planeta, se se incutir a ideia de que ninguém tem propostas alternativas, porque outras formas de organização social até já foram tentadas e não resultaram. A falta de alternativas é um poderoso mecanismo disciplinador.
Dizer que ninguém previu a crise que hoje se instalou na economia global, com o seu cortejo de devastações sociais, faz parte desta mesma narrativa neoliberal. Contribui para a invisibilidade de perspectivas diferentes e diminui a pressão sobre a mudança, na esperança de que tudo, ou quase tudo, possa ficar na mesma. Há muito que vem sendo analisado o carácter cíclico de crises cada vez mais graves, o facto de os “acidentes” serem afinal sistémicos, de a instabilidade e o risco estarem instalados no âmago do próprio modelo liberal [1]. Evocar a falência deste modelo não significa, note-se, qualquer convencimento de que ele esteja prestes a desaparecer. Significa antes uma opção por recentrar o debate sobre o nosso futuro comum na procura, certamente conflitual, de um modelo que coloque os seres humanos e o planeta no centro de um novo contrato social.
O disfuncionamento sistémico hoje observável na esfera financeira, que se inicia com a crise no crédito hipotecário subprime e o sobreendividamento das famílias, contagiando-se à economia real, apanha o cidadão comum numa armadilha montada ao longo de décadas e que não deixa de ser perversa. Após os “trinta anos gloriosos” de crescimento económico (1945-1973) em que vigorou o “consenso keynesiano”, assistiu-se a uma conjugação de medidas que liberalizaram as trocas comerciais e os mercados financeiros, introduziram a disciplina orçamental e reformas fiscais regressivas, desmantelaram o sector empresarial do Estado e desregulamentaram o “mercado de trabalho”. Este período do “consenso de Washington”, com a liberalização dos anos 80 e 90 e a crescente financeirização da economia, ilustra bem, como assinala o economista João Rodrigues para o exemplo dos Estados Unidos, «a conjugação de medíocre crescimento dos rendimentos e de injustiça social, indissociáveis da configuração de capitalismo sob hegemonia da finança de mercado» [2]. Como lembra o economista Frédéric Lordon [3], as «lógicas puras da finança de mercado» alimentam bolhas especulativas sem se preocuparem com o «risco global», desde que consigam «monitorizar o risco individual» e alcançar a «máxima rendibilidade financeira». São essas lógicas que acabam por expor «directamente os assalariados à instabilidade da finança, tentando torná-los solidários» com o mesmo sistema que aumenta as desigualdades.
Esta armadilha dos baixos rendimentos e do sobreendividamento em que se vêem muitos cidadãos começa justamente no mundo do trabalho. Como mostrou Carlos Farinha Rodrigues para o caso de Portugal, que aliás é um dos países mais desiguais da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) [4], os salários e os ordenados são «a componente de rendimento monetário que mais contribui para a desigualdade total» [5]. Num contexto potenciado pela globalização financeira, essas desigualdades têm também impactos negativos sobre o conjunto da economia e da sociedade (instabilidade macro-económica, fraudes, corrupção, criminalidade, diminuição das condições de saúde e da esperança de vida, etc.), como mostra um recente relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) [6].
Algo vai mal num contrato social em que é justamente a estes cidadãos que depois se pede para compreenderem a necessidade de salvar o sistema financeiro. Sobretudo quando foram adoptadas medidas públicas de salvamento de bancos, mas parecem mais difíceis de concretizar medidas eficazes de regulação do sector (eliminação de offshores, criação de taxas de juro diferenciadas para investimentos especulativos e produtivos, etc.). E também porque continua a insistir-se no regresso do Estado ao papel de bombeiro (depois de socializadas as perdas, volta-se aos lucros privados?), no dogma do comércio livre e na pressão para reduzir salários (mas nunca, por exemplo, para actuar ao nível da redistribuição, aumentando a justiça fiscal).
Os que entenderem que, como sociedade, de facto podemos fazer melhor, apostarão na regulação da esfera financeira, na justiça salarial e fiscal, no combate ao desemprego e às desigualdades, no investimento público, no reforço do Estado social e no desenvolvimento sustentável. Empenhar-se-ão num novo contrato social orientado para o interesse público e que exija uma maior participação cidadã na vida pública, desenvolvendo formas múltiplas de cooperação que contrariem a mercadorização do viver comum. Quanto aos defensores do neoliberalismo, se puderem reagirão à crise dizendo, desta vez, que contra argumentos não há factos.
[1] Frédéric Lordon, O mundo refém do poder financeiro, Le Monde diplomatique, Setembro de 2007.
[2] Ver dados em João Rodrigues, Lições da crise: A história não acabou, Jornal de Negócios, 30 de Setembro de 2008.
[3] Cf. “Crises financeiras: não tirar qualquer lição…”, Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Março de 2008.
[4] A par dos Estados Unidos, o México e a Turquia – www.oecd.org/document/53/0,3343,en_2649_33933_
41460917_1_1_1_1,00.html.
[5] “Desigualdade económica em Portugal”, Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Setembro de 2008.
[6] www.ilo.org/public/english/bureau/inst/download/world08.pdf.
http://infoalternativa.org/spip.php?article645

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