Em referência ao meu artigo "Promessas Eleitorais", que transcreve, desafia-me o Francisco Trindade, do Anovis Anophelis, a "dar o salto político para a visualização dum modelo societário alternativo a este, porque pseudo-democrático e supostamente livre".
Quanto ao pseudo-democrático e supostamente livre, estamos de acordo. Acho mesmo que vivemos, um pouco por todo o Hemisfério Norte, num regime político esquizofrénico, onde nunca o discurso politicamente correcto manifestou tanta repulsa pela escravatura, mas onde as relações de trabalho são provavelmente mais esclavagistas do que nunca. Quem trabalha hoje por conta de outrem dá em tributo aos seus Senhores uma proporção maior do seu tempo de vida do que um escravo grego ou romano ou um servo medieval (cf. Belmiro de Azevedo em reunião com Manuela Ferreira Leite: "entrar às oito e sair quando o trabalho está pronto").
A minha dúvida em relação à proposta do Francisco Trindade centra-se na palavra "alternativo." Se o que o Francisco me está a propor é uma ruptura com o modelo de democracia liberal prometido pela Revolução Francesa e pela Revolução Americana, não estou preparado para essa ruptura. Estou preparado para o transcender, o que é diferente: entendo que as revoluções francesa e americana deixaram o trabalho pela metade e que hoje a tarefa fundamental da esquerda é levá-lo até ao fim.
Separou-se, ainda que imperfeitamente, o poder político do poder religioso; esta foi uma conquista civilizacional importante, mas não chega: o que é preciso hoje é separar o poder político do poder económico. Sem esta separação, a corrupção não será uma doença, nem uma aberração, nem uma anomalia dos sistemas políticos actuais, mas sim o seu próprio centro definidor.
Há todas as razões para fazer desta separação o núcleo central dum projecto de esquerda. Não sei - e não me interessa especialmente - se o capitalismo lhe sobreviria enquanto sistema económico. Não lhe sobreviveria, com certeza, enquanto regime político - que é o que ele, na essência, é. Se a Economia trata da produção e da distribuição da riqueza, a Política trata da criação e da distribuição do poder. Quem sabe se a separação entre riqueza e poder não tornaria possível, pela primeira vez na História, o funcionamento dum verdadeiro mercado livre? Mas isto, a acontecer, seria um meio e não um fim. O fim é libertar as pessoas, não os mercados.
Pela primeira vez desde há décadas, as ideias da esquerda radical são "vendáveis" às opiniões públicas, mas para isso é preciso que a esquerda radical seja radicalmente democrática, e que tenha um âncora ideológica simples e facilmente compreensível em que as pessoas se reconheçam. Essa âncora poderá ser a nova separação de poderes que referi: certamente que não lhe falta procura no "mercado político" de hoje.
Claro que não se poderá resumir a isto o pensamento político da esquerda. Por isso falo duma "âncora" e não dum sistema ou de uma ideologia. A elaboração teórica será necessariamente muito mais complexa e é impossível prever por que caminhos irá o debate. Mas posso arriscar algumas possibilidades: uma delas é a esquerda começar a ler os pensadores "de direita" que a direita deixou de ler. Em Hobbes, por exemplo, poderá a esquerda recuperar a ideia de contrato social que a direita neoconservadora e neoliberal tentou destruír. Em Burke, para dar outro exemplo, poderá a esquerda encontrar os instrumentos para desmontar o discurso da inovação sem raízes que a direita actual vem repetindo.
Ao mesmo tempo que as direitas dos interesses procuram excluir a Economia do Contrato Social (ao qual ela claramente pertence), as direitas religiosas, tanto as cristãs como as judaicas ou as muçulmanas, têm procurado forçar os Estados a intervir fora dele, ou seja: a legislar em questões morais. Certas esquerdas têm feito o mesmo, por via do "politicamente correcto". A isto, há que contrapor que não há crime sem vítima (e esta será uma "âncora" subsidiária a propor aos cidadãos): comportamentos privados são comportamentos privados e o Estado não tem nada com eles. A nova esquerda tem que lutar contra a Sharia islâmica, mas também contra as "sharias" de direita e esquerda em vigor nos países ditos democráticos: sem isto, nem a meia Revolução do Séc. XVIII estará cumprida, e muito menos a parte dela que ficou adiada para o Séc. XXI.
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