Eu sou professor e esta crónica é sobre avaliação. Mas não é sobre a
avaliação dos professores. É sobre a cultura da avaliação ou a
religião da avaliação.
Qualquer trabalhador deve ser avaliado. Mas ser avaliado não é o mesmo
que uma cultura da avaliação. A cultura da avaliação leva-nos a uma
espécie de fascismo da avaliação que, a par do fascismo higiénico,
sanitário ou estético, tendem a tornar as nossas sociedades
democráticas mais totalitárias e opressivas.
É fácil avaliar o desempenho de um trabalhador. Em qualquer empresa,
hospital, escola, loja ou oficina, sabe-se quem desempenha bem ou mal
o seu papel. Se é assíduo ou não, se chega ou não atrasado, se produz
ou não produz, se faz bem ou não o que lhe pedem para fazer.
Mesmo na minha profissão, uma das mais difíceis de avaliar, sabe-se
perfeitamente quem são os dois ou três profissionais que, em cada
escola, por isto ou aquilo, desempenham mal as suas funções.
Ora, se em cada serviço há pessoas que, por inépcia ou
irresponsabilidade, desempenham mal as suas funções, será apenas uma
questão de intervir superiormente para corrigir os erros e, se não
houver da parte do avaliado qualquer interesse em corrigir, intervir
disciplinarmente.
Porquê então esta obsessão pela avaliação, por esta moderna cultura da
avaliação? Comecemos pelo mais óbvio a questão financeira. Pagar menos
ao maior número de pessoas. Mas, depois, falta a parte ideológica: a
manipulação das ideias, uma mentalidade que legitime esta cultura e
que leva as pessoas a aceitar a cultura da avaliação como sendo a
coisa mais óbvia do mundo.
O que está, então, por detrás da avaliação? A ideia de que nunca somos
suficientemente bons, que podemos fazer melhor, que há sempre alguma
coisa que ainda não fizemos. E quando se trata de pensar no que é
ainda possível vir a fazer, a imaginação fica descontrolada e pode
começar mesmo a delirar.
Há tempos, na minha escola, estive a analisar os critérios de
avaliação que permitiriam atribuir um "Excelente" ao professor.
Fiquei
em estado de choque. Caso um professor os aplicasse para ser
excelente, deveria ser expulso do ensino. Só um alienado poderia
cumpri-los. Admito que haja professores assim. O problema é quando
tais professores, considerados pelo poder como uma espécie de elite
sacerdotal, passam a funcionar como modelos.
Mas atenção. Ninguém fica abandonado. Aí está a avaliação para nos
ajudar, inspirar, ensinar o caminho. Ser avaliado é um privilégio, uma
catequese que visa uma perfeição profissional cada vez maior. Devíamos
mesmo beijar a mão daqueles que zelam por nós, que pensam e trabalham
para nos avaliar e nos ajudam a superar-nos a nós mesmos.
Isaiah Berlin é um filósofo muito cá de casa. Um dos seus principais
contributos é a célebre noção de liberdade positiva. Em si mesma, não
é má de todo representa o desejo do indivíduo ser dono de si próprio,
autónomo. Belíssimo.
Só que há aqui um problema. Eu não sou ainda o que, num mundo ideal,
deveria ser. Sou imperfeito, tenho limitações, erro. Se ficar entregue
a mim próprio não sou capaz de ser eu próprio, cumprir o meu desejo de
ser eu próprio.
Mas não há problema. Há quem me possa proteger, ensinar, guiar: o
Estado, o Partido, esta ou aquela instituição. Mais: há regras para
nos ensinar o que todos devemos fazer para uniformizarmos os nossos
comportamentos, para que ninguém fique isolado, marginalizado,
perdido. Há um farol que nos ilumina, que nos tira as imperfeições,
que não nos deixa errar.
A actual cultura da avaliação serve para os trabalhadores terem
consciência que ainda não estão a conseguir ser o que gostariam de ser
mas que, com a sua permanente auto-avaliação, poderão lá chegar.
Décadas depois de Hitler e Estaline, chegou a vez das nossas
democracias liberais nos protegerem de nós próprios, dos nossos erros
e imperfeições. Ensinam a sermos o que nós, no íntimo de nós mesmos,
gostaríamos de ser: belos, saudáveis, perfeitos no trabalho, mais
eficazes.
O actual PS não deixa os seus créditos por mãos alheias. Infestado de
sociólogos, engenheiros sociais, planificadores, avaliadores, o PS não
nos abandona, o PS protege-nos do mau azeite, das bolas de Berlim, da
obesidade.
Como professor, também o PS me quer ajudar. Avalio-me e poderei então
dizer, feliz: errei, falhei, sou imperfeito, mas, graças ao PS, pude
descobri-lo e assim melhorar. Melhorar, melhorar, melhorar, como ovos
que se vão sucessivamente partindo para fazer uma omelete que nunca
chega verdadeiramente a aparecer.
Será que não posso explicar melhor a matéria aos alunos? Não haverá
ainda mais estratégias para eu poder explorar? E projectos? Será que
estou a desenvolver os projectos que façam de mim um professor ainda
mais activo e dinâmico? E será que estou a usar suficientemente as
novas tecnologias? Estarei a ser suficientemente moderno? E será que
não posso ter ainda mais um bocadinho de compreensão e paciência com
um aluno que me chama "filho da puta"? Será que estou a dar o meu
total contributo para poder melhorar o ensino? Não poderia dar um
bocadinho mais de mim mesmo? Não poderia ir mesmo a casa do aluno que
abandonou a escola e trazê-lo de volta? Posso ou não posso? Posso ou
não posso? Claro que posso, há professores que o fazem: os excelentes.
Pois, sabem o que eu digo a todos esses patifes do PS que nos
governam? Vão dar banho ao cão. E não digo outra coisa porque sei que
há senhoras de idade que lêem este jornal.
José Ricardo Costa
(Jornal Torrejano, 5 de Dezembro de 2008)
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